A última ligação

Crônica

Giovana Valadares
Notícias de um tempo ausente
3 min readJul 27, 2020

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Foto por Donald Edgar, obtida no Unsplash (adaptada)

Sentada na cama que a avó lhe deu de presente quando mudou de cidade para estudar, Gabi refletia sobre seu último ano na universidade. Não se sentia mais como antes, os tempos mudaram. Viagem para sua cidade natal toda semana por conta do estágio, cobranças a todo vapor, dias escapando pelos dedos.

Seu desejo era ter o cheiro dela por perto. Vê-la passar seu creme por todo o cabelo fino, colocar o bolo de milho quentinho na mesa ou viver só mais uma vez o dia que ela ficava pra lá e pra cá ao cozinhar uma polenta.

Foi a sua primeira neta de três e, como suas casas dividiam o mesmo quintal, passou a primeira parte da infância muito próxima a ela. Até os sete anos a via todos os dias. Apesar de Zulmira trabalhar diariamente desde de manhãzinha, com um salário pequeno, ela sempre encontrava tempo para brincar com a neta. Uma vez Gabi chegou a fazer xixi nas calças de ansiedade, enquanto ficava atrás de um armário esperando ser encontrada no jogo de esconde- esconde.

Se hoje se vê como uma mulher forte, foi muito graças a Zulmira. Baixinha e corajosa, a avó era muito vaidosa. Embora não gostasse de usar maquiagem, adorava pentear o cabelo, se arrumar e usar colares e pulseiras.

Ajudava todos ao seu redor e cuidava de várias pessoas: do marido que tinha Alzheimer — com quem casou um tempo depois que se separou do avô de Gabi –, do irmão, da mãe. Cultivava uma alegria que a tornava alguém de quem era gostoso estar perto e se mantinha religiosa com uma fé que ia além da religião.

No período de transição que vem passando, Gabi resgata essa fé e tenta acreditar em si mesma também. Consegue até sentir a presença dela. Sua avó torcia tanto por ela, fazia perguntas e, mesmo não entendendo tudo, buscava amparar. Uma das melhores pessoas que já conheceu na vida inteira. Tudo que ela fez para a estudante estar onde está hoje a fez ter mais perspectivas positivas sobre seu futuro.

Desde pequena, se Gabi pensasse na morte, não conseguia se ver sem a avó. Não era algo que cogitava. “Ah, um dia ela não vai mais estar aqui.” Parecia impossível.

Até que, em uma das ligações que fazia para agradecer mais um presente que tinha recebido, disse, repentinamente:

“Vó, eu te amo.”

Foi a última coisa que falou para ela.

Nos primeiros meses, foi quase insuportável. Achava que não era real, que não tinha como viver daquele jeito. Com o tempo, foi assimilando melhor. É uma saudade que nunca vai passar, tem dia que dói mais, tem dia que dói menos. Aprendeu a direcionar o olhar para as coisas boas, compreender o espaço que ela deixou de uma forma diferente. Sempre se quer ter mais tempo com a pessoa, mas ela criou muitas memórias com Zulmira.

Depois da perda, a jovem tentava se afastar da casa da avó enquanto sua mãe queria manter as coisas, morando lá atualmente. Foi difícil para Gabi entrar no quarto onde a avó dormia antes e ter a súbita percepção de que quase nada tinha mudado, exceto a companhia se transformando em falta. Agora, se aproximou ainda mais da mãe, algo que foi importante dentro do processo de cura. O luto também a fez mudar sua relação com a outra avó, buscando se esforçar mais para estar presente.

Sua irmã, quando era bem nova, havia ganhado um tablet e ficava constantemente fotografando e gravando vídeos de Zulmira. “Para de tirar foto de tudo!”, às vezes Gabi reclamava. Hoje ela se agarra a essas lembranças, podendo agradecer e pensar: ainda bem que ela nos deixou esses registros.

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