Eu e o pássaro

Crônica

Giovana Valadares
Notícias de um tempo ausente
3 min readJul 16, 2020

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Ilustração por Gleisson Cipriano

A menos de um metro do meu banco, há um pássaro marrom. Virado de lado, com o pescoço se esverdeando, as asas em tons de branco e dourado se tornam caminho para formigas. Ao redor, uma mosca ronda as penas espalhadas e muito lixo, como sachês de ketchup, bitucas de cigarro e um tijolo.

É possível ver algumas pombas curiosas andando e escutar os ruídos do parquinho infantil, com duas mulheres cuidando dos filhos que correm em ziguezague pelos brinquedos. Enquanto escrevo, moscas me desconcentram e formigas tentam subir no meu braço. Me pergunto se elas sabem que estou viva.

Ao redor da praça, amigos voltam do horário do almoço do trabalho, batidas musicais estranhas tentam animar uma academia meio vazia e a reforma desorganizada de uma casa continua a todo vapor.

Logo que me sentei, passou uma mãe perguntando a sua família sobre um estabelecimento específico. “Vocês lembram onde fica?”, os questionou. Foi quando o olhar da mulher se direcionou até meu rosto e ela transferiu a pergunta para mim. Coloquei meus ouvidos à disposição, embora minha expressão possa ter indicado o contrário. Por um instante não havia entendido que eu ainda respirava e podia ser vista, ainda que minha existência ali para ela não tenha ajudado tanto. “Desculpe, não conheço as direções”, eu respondi, com a voz trêmula.

Ela mal agradeceu e já pude ver seu corpo apressado a muitos passos de mim. Se eu fosse um pássaro, poderia descobrir o trajeto para eles. Será que este ao meu lado, já sem respirar, tinha noção de suas habilidades? É provável que não. Pode ser que sua existência se contentasse com o prazer de, simplesmente, ir e vir.

Mas eu estou aqui, voltando de algum compromisso que nem me lembro mais e fazendo o papel que nos é oferecido desde o começo. O de um ser que não se satisfaz. Repleto de percepções que não se dissolvem por inteiro. Com garantia de nada. Uma consciência que precisa de refúgios ao pensar no fim.

Apenas um corpo que corre o risco de brincar com fogo ao menor sopro de realidade. Posso morrer antes de tirar tarot com minhas colegas de apartamento para saber como será meu próximo mês, antes de passar a tomar apenas café sem açúcar ou antes de confessar meu amor para alguém que ainda me é desconhecido.

Olho mais uma vez para o pássaro e lembro de uma crônica da Rachel de Queiroz,“O caso dos bem-te-vis”. Conta a história de um casal de bem-te-vis apaixonados que morrem eletrocutados ao se beijarem em cima dos fios de um poste. Por consequência, causam um curto-circuito e, assim, desligam a energia de toda a rede de trens elétricos da Central do Brasil, uma das estações situadas na cidade do Rio de Janeiro. Trágico e pontual.

O sol está forte e o corpo do pássaro segue seu processo de decomposição. Sua morte não ocasionou nenhuma catástrofe, talvez ninguém além de mim tenha notado seus restos, que se camuflam na grama desgastada. Em meio aos meus devaneios, a pergunta de como o pássaro marrom perdeu a vida permanece. Sua liberdade pode ter o matado. Acordou um dia, resolveu encarar o céu de uma maneira diferente e foi surpreendido, deixando o coração, que quando voa pode bater até 1000 vezes por minuto, parar subitamente. Ou a sua paz interior. Estava tão contente que não se deu conta do gato laranja à espreita.

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