Farinha a vácuo

Conto

Elisa Dias
Notícias de um tempo ausente
4 min readSep 3, 2020

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Foto por Hans Braxmeier, obtida no Pixabay

— Ó, vocês conhecem o Peva? Shh, nada né, nóis samo velho mas tamo na vida — um gole de cachaça — Shh, ó… shh, eu sou linha PCC, sabe o que é PCC? Você sabe? Aah são tudo meus parcero, o Geraldo, o Aranha, o Fino, vocês sabem o Aranha?

— Hmm não…

— Um alto pra cacete parece meu pai, com um bigode de fronte? Ah shh ele foi preso junto comigo em 93, mas eu fui por mim e ele por ele. O Aranha foi desgraça, pegaram suave de domingo à tarde, quietinho conferindo os quilo e fumando paiero de uva. Mas o velho apanhou, menina, hein, os caras bateram no velho, shh, 53 anos! Menina, olha menina, os caras pegaram 5 quilos, um revólver e bateram, bateram 12, 12, teve coronhada na cabeça. Começou a zunir tudo, chutaram de coturno, menina… shh como que você chama?

— Manuela.

— Manuela… shh, naquela época você nem era nascida. Eles disseram “dá o Tadeu que a gente libera”, mas eu não falo nada não, falei “ó, conheço Tadeu nenhum não”. Eu fiquei de nove três a nove sete em Itamonte, depois mandaram pra Caxambu, em Itamonte eu conhecia um pessoal lá. Shhh mas uma vez eu engoli 20 grama de maconha, os cara me pegaram e eu não tinha onde enfiar o negócio HAHAHA. Era um blocão assim ó, shh, grande mesmo, eu engoli e ficou no meu estômago e eu soltei no banheiro da cadeia. 20 grama, embaladinho… Eu mandei uma pizza com guaraná por cima e foi, menina. Qual que é o seu nome?

— É Manuela.

— Manuela, Manuela, shh… cheguei lá “ó, to com 20 grama de maconha que eu engoli” os caras já ficaram tudo atiçado, “Caralho Peva você tá de sacanagem”. É mesmo, menina, eu engoli tudo, mandei guaraná pra dentro. Aí eu fui no banheiro sem nada. Os guarda fica olhando a gente ir e voltar, sabe. Eu vomitei o bloco inteiro menina, fui no banheiro lá rapidão os bota nem viu, engoli água e sabão, aí voltou tudo e o bloco veio junto. Quando eu voltei os cara “Mano, o Peva engoliu um caralho de um bloco de maconha”, “Vamo fumá esse negócio aí memo”. Shh, imagina os cara na seca lá, chega o Peva com 20 grama embrulhadinha dentro, os caras fumaram a maconha que eu engoli e vomitei escondido no banheiro HAHAHA. Shh, como você chama?

— Eu?

— É, como que você chama?

— Lucas.

— Shh, Lucas… shh, aqui nóis manda em tudo e os cara conhece nóis. Eu tenho um sítio, vendo farinha a vácuo. As vaca fica suave, o leite a gente vende. Eu gosto de bicho, vivo tudo na paz, as vaca anda, pasta, as galinha não fica solta muito pra não ficar com carne dura. Mas ovo também dá de pouco, shhh, eu como e dou uns também. Mas o leite que tem nóis vende, leite do bão de formar nata gorda, shh e a farinha nóis embala tudo no processo. Dá aquela chupada no ar e sai a qualidade. Ôôô… Zé, eu conto essas coisa na humildade, quero nada d’ocês não ó — dá outro gole de cachaça — Vocês são tudo daqui? De aonde você é?

— Daqui mesmo.

— Uai daqui tá, mas é no centro, no São Judas, pros lado da Vila…?

— Pra cima do São Judas.

— Alá, eu não tenho nada pra lá, meu ponto é tudo do outro lado. E você, onde que você mora shh… ô menino?

— Eu moro na Pedreira.

— Aaah e você não ouviu do Peva? Aah lá eu vendo muito, os cara é cherador tudo. Tem uns cliente de 7 anos comigo lá, shhh, os cara tão casado até. O Jailson é amigo meu, a Ana Lúcia. Mas vocês não conhecem ninguém mesmo, shh… Aqui nóis samo NPD, o Nando, o Peva e o Damiano, essas parte são tudo a gente. Nóis brinca assim mas eu sou um veinho organizado, shh, aqui é pique PCC mesmo, o Josué organiza e nóis tamo lá… Depois que pegaram o Peva aí que foi coisa de louco, falaram pra eu entregar o Tadeu, que “dá o Tadeu que a gente libera”. É menina, esse dia eu virei patrão mesmo. Os cara perguntavam eu respondia, não botava ninguém junto, era eu. Tinha um cara que era mais louco e o sítio a gente arranjou, e ficamo lá, volta e outra eu faço meus negócio, uns dia a gente fala com as vaca, é assim. Mas vocês são gente fina, eu não esqueço, pode falar que é amigo do Peva que os cara não chega não. Eu tenho um amigo que manda matar mesmo, uma vez teve um cara, sabe o Bizinho? Shh, tava devendo pra mim, eu falei “Me paga meu dinheiro”, ele caiu ali ó. Depois teve um menino da Vila de Trás, ele falou que não paga ninguém. N’outro dia tomou um na cara e virou os pedal da bicicleta, não andou mais nem meio bloco, anunciaram no mesmo dia. Mas pode falá que conhece o Peva, vocês são tudo… Ôôô Mariângela, você sabe do Mael? — e foi em direção à mulher cambaleante que passava do outro lado da praça.

Eu me lembro do silêncio depois que o Peva foi embora. Nos entreolhávamos tentando entender a história toda, o Lucas com uma cara de bobo e eu rindo. Tobias não tinha falado um A até então, só foi reviver quando sentiu o vento gelado passando pelo banco de madeira.

— Será que ele volta?

— Ah, não sei não, só que tá ficando frio pra fazer nada fora de coberta. Aliás é isso, ir eu também vou.

— Iih com cachaça e tudo?

— Só se for pra acordar depois.

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Elisa Dias
Notícias de um tempo ausente

Mineira, jornalista não-tão-praticante, amante da gastronomia de todas as avós e de conversas especialmente ordinárias.