Galáxia 187

Crônica

Giovana Valadares
Notícias de um tempo ausente
5 min readSep 7, 2020

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Foto por Gemma Evans, obtida no Unsplash

“Foto de um buraco negro é revelada pela primeira vez na história”, diz uma notícia da Revista Galileu.

No instante em que li a manchete, um choque interno. Não acreditava que estava viva para presenciar esse feito. Ao abrir a imagem, vi que se tratava de um fundo preto com um círculo laranja no meio.

Em 2005, o mesmo buraco negro, maior que nosso Sistema Solar, localizado no centro da galáxia Messier 187 — a 5 milhões de anos-luz da Terra — já vinha sendo investigado fazia uns 11 anos. Não era possível olhar diretamente, então os astrônomos procuravam indicativos de sua existência entre as estrelas.

Nessa época, no auge dos meus 8 anos, eu só queria descobrir uma forma da imagem do buraco negro não aparecer mais nos meus sonhos.

Eu costumava comprar revistas na banca todas as semanas, aqui nesse caso as revistas Recreio da Editora Abril. Nelas eu lia sobre uma variedade de assuntos, inclusive ciência. Carregava o conhecimento de que uma vez sugado pelo buraco negro, não tem mais volta. Nada consegue escapar.

Não seria capaz de explicar o motivo, muito menos o que era espaço-tempo, mas eu achava esse tipo de informação o máximo. Dava um frio na barriga. Meu inconsciente passou a ficar obcecado por isso. Comecei a ter uma quantidade considerável de sonhos em que eu encarava cara a cara o tal do buraco negro, esse grande vazio escuro. E todas as vezes acordava no pulo, com o pavor de que eu não estivesse mais ali e sim me transformado em apenas mais um punhado de partículas.

Um receio desse desaparecimento repentino e bizarro que na minha cabeça não se tratava exatamente de uma morte. E, de alguma forma, tudo isso despertou em mim um peso profundo: o de ser responsável pelo não sumiço das pessoas que eu gostava.

A partir daí, instaurei um círculo na minha rotina. Não aquele laranja que vem lá da foto, mas um círculo de proteção que só era possível nos momentos em que todos da minha família mais próxima estivessem em casa. Seguros, sem nenhum risco próximo. Meus dias eram preenchidos pela ansiedade de restaurar o círculo antes de eu dormir.

Sete horas da manhã, em algum dia de 2005. Os que existiam ao meu redor se preparavam para ir trabalhar. Mamãe e papai costumavam fazer quase tudo juntos, pelo menos era o que eu imaginava. Antes de irem para a realidade que lhes pertencia, me deixavam na casa de portão branco, enferrujado e um pouco menor que eu, na Avenida João Pessoa. Ou a rua dos ipês rosas, como eu gostava de descrever. A partir daí, eles saíam do círculo de proteção que eu conduzia.

Apesar do tamanho do portão, a casa era ampla, com vários cômodos. Um deles, a sala principal, tinha um aspecto elegante, embora não muito acolhedor. Seus sofás eram daqueles com apoios laterais feitos de madeira, e havia diversos objetos de vidro e outros tipos quebráveis espalhados pela mesa de centro. Ainda assim, eu queria ter passado mais tempo a frequentando. Alguma coisa nela me deixava curiosa, talvez o lavabo com a parede amarela que ficava ao canto ou a televisão velha, que às vezes era ligada para meu irmão mais novo se divertir com um jogo do Monstros S.A. no Playstation 1.

Tudo realmente parecia uma casa de vó, com seu quintal repleto de vasos de plantas, tendo também duas árvores de acerola mais ao fundo. Eu não sabia o tamanho do universo inteiro e, tendo aquele quintal a minha disposição, não me interessava mesmo.

Chegava o almoço e depois dele a hora de ir para a escola, que ficava algumas quadras dali. O encontro com alguns colegas, o intervalo, o banco cinza da quadra, o abraço da professora. Me questionava se eu estava no círculo de proteção de alguém e não sabia, enquanto o que eu construí estava inativo temporariamente.

Afinal, eu não contei pra ninguém. Nem pra minha melhor amiga, que era ruiva, muito inteligente, tinha o mesmo nome que o meu e me seguia para todo o canto. Eu também queria proteger ela, mas achava que seria ambicioso demais da minha parte.

E havia o medo. Medo do desconhecido. Medo de eu mesma não conseguir voltar pra casa, medo de precisar mais das pessoas do que elas de mim. Medo de entender que nada disso adiantava. Medo da ausência, medo de ser tarde demais. Medo de falhar.

Ao chegar o fim de tarde e o término do dia de escola, o alívio passava a tomar forma. O caminho para a rua dos ipês eu fazia a pé, e era uma alegria enorme. Era entrar na casa da minha vó, ver que ela seguia seus afazeres —como costurar, preparar a mesa do jantar, corrigir as provas de matemática, esticar as pernas — e esperar meus pais me buscarem para eu ir dormir na outra casa, também de paredes amarelas.

Eu me via como sendo a protetora de todos ali e não sei até que ponto isso era paranoia ou o absurdo do afeto. E foi assim por uns meses, a rotina na escola, casa da minha vó e de meus pais.

Mas, seis dias antes do natal de 2006, o que era visto como possibilidade virou algo concreto.

Era uma noite esquisita, eu olhava para o céu e não tinha nenhuma estrela. Parecia que algo estava se esvaindo. Eram onze horas, quase meia noite. O telefone tocou e ninguém foi me acordar para falar o conteúdo da ligação, mas eu acabei ouvindo algumas frases cortadas.

“Tiro? Nas costas? Não é possível!”

Pra mim, tiro lembrava faroeste americano, meus pesadelos — eu sonhava muito — com aqueles caras de chapéu, andando em cima de cavalos junto com suas espingardas. Foi uma explosão cheia de destroços dentro de mim. O círculo de proteção foi destruído, como pude deixar?

Era meu pai que tinha levado o tiro. Não o moço da novela.

O buraco negro estava pelos meus órgãos. E nada de irem me salvar ou avisar que meu pai ainda respirava.

Um ano e meio depois, eu tinha tido um dia de brincadeiras, em que fingia ser atriz ou cantora. Sabia que papai estava longe, em um hospital em São Paulo. Encontrei seu RG em cima da estante do quarto da minha mãe, olhando para a sua foto 3x4 com um pressentimento. Eu o amava tanto e sentia uma certa esperança, mas me via incapaz de controlar o que quer que fosse.

Até que minha mãe chamou meu irmão e eu para sentar ao seu lado no sofá azul da sala. Azul como o céu.

Contou que foi para lá que o papai tinha ido.

Uma lágrima única, solitária e comprida escorreu pela minha bochecha. Se eu pudesse me desmanchar, acho que a sensação seria parecida com aquela.

A título de curiosidade, na semana passada, quase um ano da escrita deste meu texto, foi divulgada a notícia de uma colisão de buracos negros que ninguém sabe dizer como aconteceu. “É provavelmente o achado mais importante neste campo desde a descoberta da primeira onda gravitacional em 2016, que renderia o Nobel de Física no ano seguinte.”

O meu eu de 8 anos continua em mim, sigo fascinada e com medo.

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