O dia que eu não sonhei

Conto

Elisa Dias
Notícias de um tempo ausente
3 min readSep 14, 2020

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Foto obtida no Pikist

Aos quatro anos de idade passei pela fatídica fase dos porquês. Perguntava sobre qualquer inseto, qualquer mancha na parede, e o limite de estresse dos meus pais foi testado como nunca na história da minha casa. Minha irmã era dois anos mais nova que eu, e naquela primeira experiência (um tanto assombrosa) do grande tsunami de perguntas, todo e qualquer meio de escape era muito mais que bem-vindo. Nessa impaciência toda, algumas questões foram malmente resolvidas, mesmo porque eu era só uma criança e provavelmente não entenderia, e a mentira se mostrou o melhor caminho em forma de uma quase ficção.

Lembro que a pergunta mais polêmica naquela época foi sobre o sonambulismo de minha mãe. É claro, eu não sabia o que era isso com a pouca idade, mas houve momentos em que eu acordava no meio da noite — e isso acontecia com mais frequência que o esperado — e via minha mãe vagando de olhos abertos pela casa, falando coisas que eu não entendia, e eu ficava apavorada com medo de ser por causa dos espíritos que a minha avó vivia falando. Por algum motivo meus pais pareceram se incomodar com a pergunta, mas decidiram explicar e eu aprendi o que um sonâmbulo era, provavelmente depois de mais umas 8 perguntas para complementar a informação superficial oferecida ali.

Acabei ficando com isso na cabeça de sonambulismo, e já na adolescência fui procurar a respeito. Achava muito esquisito esse estado meio zumbi que as pessoas não podiam controlar e nem se lembravam depois, essa era a visão que eu tinha de pessoas bêbadas, não de pessoas dormindo. Nesse período, voltei a fazer perguntas para minha mãe, dessa vez das histórias dos casos sonâmbulos que ela teve. Acabei descobrindo grandes momentos, como a vez em que ela empurrou a televisão do criado, a que ela ligou o chuveiro e acordou molhada e de pijamas no banheiro, a que meu pai acordou levando socos nas costas porque ela sonhava que havia cobras na cama. Também descobri pelo meu avô Jairo que ela já havia sofrido um acidente com uma faca enquanto dormia, pois provavelmente sonhava que estava cortando cenouras para o almoço ou algo assim (quase perdeu o movimento de um dedo por isso) e que já havia acordado enquanto subia a grade do terraço não se sabe por quê. Aparentemente ela acordou porque sentia frio, e bendita seja a brisa de inverno.

Fiquei ligeiramente assustada, não esperava o lado perigoso da coisa. Vô Jairo me tranquilizou, disse que tinha sido uma fase de muito estresse e isso fazia aumentar a frequência dos casos de sonambulismo. Na minha cabeça o sentido se fez e eu fiquei aliviada com a pequena garantia de que o tal estresse não estava mais deixando ninguém andar dormindo em casa. No fim das contas, não descobri especificamente o que causou isso tudo, mas também não me esforcei em descobrir. Minha mãe sumiu no meio da madrugada três meses depois dessa conversa.

Fiquei sem entender por muito tempo, não é o tipo de coisa que passa fácil pela cabeça. Ela se deitou, leu algumas páginas de uma revista qualquer, se virou de lado, apagou as luzes e não foi mais vista desde então. Meu pai parecia confuso, minha irmã se desesperou e a única coisa que eu consegui sentir foi um grande buraco que custou muito a diminuir, e que com o tempo foi preenchido tão porcamente quanto calçadas quebradas; ele se ocultava mas continuava ali, e os tropeços vinham de tempos em tempos. Apesar de tudo, segui sem escolha e sem pausa analítica suficiente para pensar num buraco, mas não me entrava na cabeça que a havia perdido para a noite.

O que sonhava quando desapareceu? Sonhou que fugia ou ia de encontro? Não, descobri que não se tem sonhos na crise sonâmbula, e isso passou a me afligir. Comecei a anotar todos os meus sonhos logo que acordava para garantir que eles existiram, tinha receio de cair no esquecimento do meu inconsciente; talvez também tivesse uma vaguíssima esperança de, na verdade, entender o que havia acontecido tantos anos antes.

Na última semana, porém, não fiz nenhuma anotação e meu marido me disse que levantei da cama falando abobrinhas de madrugada. Ontem dormi com os braços amarrados à cabeceira.

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Elisa Dias
Notícias de um tempo ausente

Mineira, jornalista não-tão-praticante, amante da gastronomia de todas as avós e de conversas especialmente ordinárias.