O olho do Sucesso

Crônica

Abreu Ferreira
Notícias de um tempo ausente
5 min readJul 13, 2020

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Ilustração por Gleisson Cipriano

Quando criança ele era um terror. Tanto que sua própria mãe, dona Dalva, lhe apelidou de Peidinho: estava sempre metido em coisa que não cheirava. Eu poderia contar de quando ele acendeu um cigarro escondido debaixo da cama, quase pondo a casa em chamas, ou quando ele espiou por sob a saia de uma visita e anunciou a todos no recinto que ela estava sem calcinha (a moça, escandalizada, jurou nunca mais pisar naquela casa), ou das manhãs dominicais que ele passava jogando pelada, em vez de comparecer à missa, como dona Dalva cria que ele fazia. A lista vai longe. Mas vou falar de um episódio em que Peidinho estava, na verdade, cheirando muito bem. É que a gente muda quando se apaixona.

A história aconteceu quando a família de Peidinho ainda morava em Santo Cristo, na Zona Portuária do Rio de Janeiro. A gata da vizinha deu cria, e dona Dalva resolveu trazer um dos filhotes para casa. Ele era uma graça, com o pelo todo fofo e branquinho, e (o que era mais charmoso) os olhos de cores diferentes, um verde e o outro azul. Lembrava até o Zé Roberto, o gato que acompanhava Célia Biar na apresentação do Festival de Sucessos, sessão noturna de filmes da Globo. Não deu outra: o filhote foi batizado de Sucesso.

Com o Sucesso, Peidinho parecia outro garoto. Tratava de manter o gato bem asseado, escovando seus pelos todo dia e dando banho de sabão toda semana. Quando o Sucesso ganhou um pouco de corpo, Peidinho criou o costume de passar os fins de tarde na janela de casa, que dava para a rua. Ficava ali afagando seu Sucesso, da mesma forma como Célia Biar afagava seu Zé Roberto. Quem passava na calçada ficava encantado com a elegância da dupla.

— Ah, como é bonito! Parece o gato da televisão! — diziam.

— O nome dele é Sucesso — Peidinho revelava, para a alegria do transeunte.

Quem ouve acha até que Peidinho gostava de bicho. Mas nosso protagonista tem uma faceta que o narrador ainda não fez revelar: os gatos da vizinhança inteira conheciam o garoto, e tinham medo dele.

Peidinho inventou um jeito especial de brincar com os felinos: o arremesso de gatos. Tinha uma goiabeira nos fundos da casa, boa de escalar. Vinha gato de Santo Cristo inteiro visitar a árvore. Quando Peidinho estava por perto, porém, não passavam do muro. Ficavam ali em cima, só observando. Já conheciam o gênio da peste. Mas sempre acontecia de chegar um gato desavisado e Peidinho pôr as mãos no coitado. Agarrava ele pela cauda, rodopiava três, quatro vezes em torno do próprio eixo e o arremessava em direção à árvore, feito aqueles arremessadores de martelos das olimpíadas. No arremesso de gatos, porém, mais importava a precisão que a distância percorrida pelo projétil. O objetivo era acertar o gato na goiabeira e ver o bicho se agarrar, fincando as unhas no tronco com todas as forças contidas em suas sete vidas felinas (alguns gatos já tinham menos vidas, porque Peidinho nem sempre acertava).

O Sucesso teve a sorte de ser sósia de astro de televisão e mexer com a vaidade de Peidinho. O gato pouco sofreu em suas mãos. Foi na verdade muito bem tratado, e dá para contar na mão as vezes que foi arremessado à goiabeira.

Naquela casa a vida do gato era boa. Seu Laudeniz, pai de Peidinho, trabalhava no cais do porto, e quase todo dia trazia peixe fresco. Dona Dalva limpava o peixe para o jantar, e as tripas ficavam para o Sucesso, para quem tais sobras constituíam um verdadeiro banquete. Quando dona Dalva comprava uma galinha para abater, também fazia dos pés, do gogó e da cabeça uns agradinhos para o gato.

Apesar da mordomia, porém, o Sucesso acabou crescendo, e a natureza introduziu seu corpo felino a novas urgências. Volta e meia o gato dava um sumiço de casa. Depois de dois, no máximo três dias, ele sempre retornava, sem que se soubesse com precisão por onde andara. Mas seu corpo trazia claros indícios: seus pelos, outrora brancos, vinham todos manchados de graxa, de se arrastar pelas oficinas que Santo Cristo tinha aos montes. Vinha também cheio de feridas, resultantes de brigas com outros gatos. Aí Peidinho cuidava dele, dava comida, dava banho, escovava os pelos, como sempre fizera. Não ficava zangado, mas sim orgulhoso, como um pai que assiste a prole ganhar o mundo.

Em um dos sumiços do Sucesso, porém, o gato não voltou. Os dois, no máximo três dias, se tornaram uma semana, que se tornou duas, e o tempo continuou se estriando sem dó. Peidinho até saiu em expedições por Santo Cristo, atrás do Sucesso, mas todas se mostraram infrutíferas. O garoto estava até se conformando em virar a página…

O Sucesso apareceu por conta própria, uns dois, talvez três meses depois do sumiço. Estava quase irreconhecível. Antes fofo e robusto, era agora fininho, com o pelo encardido e maculado por várias feridas. E o pior: agora ele só tinha o olho azul. Onde costumava ficar seu olho verde, as pálpebras estavam coladas, afundadas sobre a órbita vazia. Na época havia um rumor de que gente com problema de vista arrancava olho de gato para fazer implante, e foi essa explicação que ficou.

Depois que voltou, o Sucesso deu uma sossegada. Se fugisse de novo, tinha o risco de roubarem o outro olho, e aí o gato não conseguiria enxergar o caminho de volta para casa.

A partir daí o Sucesso foi muito bem cuidado, tanto que logo ficou forte e bonito outra vez. Só o olho que nunca voltou. O Sucesso teve uma vida feliz e bastante longeva, para os padrões felinos. Morreu de velhice, pouco antes de a família se mudar para a Vila da Penha.

Hoje Peidinho já é um peido idoso, e às vezes tem gente que até o chama de senhor. No apartamento onde ele mora, em São Paulo, agora vive um cachorro e nenhum gato. Mas tem um hábito que ele nunca perdeu: quando caminha pelas ruas, analisa atentamente o rosto das pessoas. Ele procura um homem, ou talvez uma mulher, de idade bem avançada, com um olho verde de gato onde deveria haver um olho de gente.

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