Vó Augusta

Crônica

Abreu Ferreira
Notícias de um tempo ausente
6 min readJul 30, 2020

--

Foto por Victor Rodríguez Iglesias, obtida no Unsplash

Se aproximava o meio-dia quando a muito custo saí da cama, só para deparar com uma geladeira vazia. Após imprecar ofensas contra a máquina sem vida, decidi tomar café da manhã na padaria, para não ter de lidar, além do coração combalido, com uma barriga vazia.

Eu me dirigia até a padaria da rua de trás, um lugar que nem nome tinha, onde eu costumava comprar pães borrachudos, mas mudei minha rota no meio do caminho. Decidi me regalar um pequeno agrado, comendo na Vó Augusta, uma padaria chique da qual eu só conhecia a fachada. Uma vez na vida não haveria de comprometer minhas finanças, e a tristeza não é momento de chafurdar em privações desnecessárias. Ficava mais longe que a da rua de trás, mas o sol estava gostoso, aquecendo sem agredir a pele.

Na fachada da padaria havia a ilustração de uma velha sorridente. Entrei e pedi um cardápio. Demorei a escolher uma boa combinação de comida e bebida, despendendo mais atenção às informações à direita que às da esquerda. Acabei escolhendo um misto-quente e um café com leite, que somaram dez reais. A funcionária me disse para escolher uma mesa que ela levava para mim.

Sondei o recinto em busca de um assento que me apetecesse. Escolhi um banco alto, nos fundos, rente à janela. Antes que pudesse me dirigir até lá, porém, fui interpelado pela funcionária que me atendera: “Moço, você quer o café com leite agora, ou prefere junto com o misto-quente?”

Aquilo me comoveu intensamente. Fazia dias que ninguém me dirigia uma pergunta, ainda mais uma de ordem tão íntima quanto minhas preferências de deglutição.

“Pode ser junto”, respondi. Não queria dar a alma tão gentil a labuta desnecessária de visitar minha mesa uma segunda vez.

Acomodei-me no assento selecionado e me pus a assistir o movimento. Era bom ter a rua à disposição dos olhos, mas o lado de dentro estava mais interessante que o de fora. A maioria das pessoas passava pouco tempo na padaria; entrava na fila para comprar pão e logo desaparecia. Mas havia também gente como eu, com o tempo e a disposição de sentar à mesa. Algumas das mesas estavam ocupadas por gente sozinha, lendo um jornal ou mexendo no celular, ou olhando o movimento, como eu. Havia também mesas ocupadas por casais, e alguns desses casais estavam com seus filhos, e havia também gente uniformizada, abastecendo o corpo para o dia produtivo. Mas a mesa que mais me interessou estava bem na minha frente. Era um casal de idosos, de mãos dadas por cima da mesa, trocando olhares com tal ternura que eu e o resto do mundo parecíamos carecer de importância.

Cinco minutos depois já chegou uma garçonete com uma bandeja na mão. Era uma pessoa diferente da que me atendera ao balcão. Ela pousou o misto-quente e o café com leite sobre a mesa, com tanta suavidade que eu não teria reparado, se não estivesse olhando. Agradeci, e ela sorriu antes de se retirar.

Não toquei o café-com-leite. Meus lábios estavam magoados demais para líquidos em tão intenso estado de fervura. Limitei-me a me deleitar com o odor acre do café. Com o misto-quente, contudo, fui incapaz de me conter. O pão estava bonito e brilhoso, era seccionado em duas partes perfeitamente simétricas e tinha o queijo derretido transbordando.

Com o amparo de um guardanapo, peguei uma das metades e dei a primeira mordida, no que de chofre senti a vista arder. Que tolice! Que humilhação! Escondi o rosto nas mãos, como uma criança se esconde na saia da mãe, para resguardar as mesas vizinhas da visão abjeta de um adulto se desfazendo em lágrimas, sem qualquer desculpa convincente.

Após controlar o choro e enxugar o rosto nas mangas, arrisquei nova mordida. E foi então que se desvelou a razão do choro, junto com uma enxurrada de novas lágrimas e soluços convulsivos. Acontece que aquele não era um misto-quente ordinário, mas sim um sanduíche composto de ingredientes da mais sublime qualidade. Eu não vi, de própria vista, o que estou prestes a relatar, mas sinto no meu âmago a verdade contida em minhas palavras.

O queijo, quando ainda era leite, saiu das tetas de uma vaca que tinha todo um pasto montanhoso, tão largo quanto a vista alcançava, só para si e sua família bovina. Ela era tão forte e tão bela que parecia não uma vaca, mas um ser fantástico e desconhecido, de pureza tal que, se fosse tocado por mãos humanas, é capaz que morresse. Mas a vaca foi ordenhada por gente e sobreviveu, porque, apesar de forte e bela e fantástica, era ainda uma vaca. Já o pão foi moldado por mãos grossas e cabeludas, tão firmes e tão delicadas que, se te estrangulassem, te despachariam para o céu antes mesmo de seu cérebro apagar por completo. O presunto, por sua vez, não passava de lixo ultraprocessado, e não tinha nenhuma extraordinariedade que o apartasse do presunto convencional. Mas o presunto não comprometeu a qualidade do sanduíche — muito pelo contrário! Lixo ultraprocessado é sempre uma delícia.

Devorei rapidamente a primeira metade, sentindo todos me julgarem com seus pares de olhos vívidos. A sorte é que o choro deixou o mundo embaçado, e não pude ver o que minha intuição já confirmava.

Querendo postergar o fim do misto-quente, decidi tomar o café com leite, mesmo que em detrimento de meus pobres lábios. Arrisquei uma bicada e me surpreendi. Não só estava no estado ideal de mornitude, como também era uma delícia. A suavidade do leite e o amargor do café se espalharam por todos os meus membros, despertando meu corpo de uma maneira que eu nunca havia experimentado e ainda hoje julgo impossível.

Logo antevi toda a história daquele café. Os idosos apaixonados que estavam bem à minha frente também tomavam café, originário dos mesmos grãos. Intuí que eles costumavam morar no bairro, mas resolveram passar a aposentadoria em um sítio do interior. Lá havia um cafeeiro em cujos galhos os bem-te-vis se empoleiravam, construindo ninhos e cantando. E assim o arbusto foi crescendo, bem-visto e vistoso, e se tornou tão alto e frondoso que era preciso chamar o filho da vizinha para trepar o tronco e apanhar as cerejas maduras. Depois a senhora deixava as frutinhas secando ao sol por 30 dias, mantendo-as protegidas dos bichos e das intempéries. Quando estavam bem esturricadas, ela descascava as frutinhas uma a uma (eram centenas!) e, para finalizar, torrava os grãos numa panela de ferro — tinha que ficar mexendo direto, porque senão queimava.

Sempre que os grãos ficavam prontos, o casal fazia uma viagem até a cidade para visitar a Vó Augusta, a padaria que frequentavam em sua mocidade. A senhora ia com os grãos de café, já tostados, dentro de uma vasilha, que carregava sobre o colo, e o senhor ia dirigindo. Eles punham a tocar no rádio discos que lhes remetiam à juventude, e se emocionavam mais do que eram capazes de suportar. A senhora usava um lencinho de seda para enxugar os olhos marejados do senhor, para ele continuar vendo a estrada. Quando enfim chegavam na padaria, pediam que fizessem café dos grãos que haviam trazido. O funcionário usava uma máquina para moer os grãos, e o que o casal não consumia era dado para a padaria alimentar os outros clientes.

Foi por sorte do destino que acabei tomando aquele café, feito não só com conhecimento e dedicação, mas também com amor. Apertei os olhos, na tentativa de conter as lágrimas, mas elas só saíram com mais força, como o suco espremido de uma laranja.

Continuei comendo, falhando em manter a discrição. Uma funcionária e dois clientes vieram falar comigo, perguntaram se eu estava bem. Eu disse que estava incrível, como nunca antes estivera. Quando me sentei para escrever este relato, inclusive, custei a me lembrar da tristeza que me levara à Vó Augusta para começo de conversa. E o casal de idosos sorria para mim, em muda compreensão. Terminei o café da manhã, paguei e voltei para casa.

Sempre que estou triste, ou que preconizo um dia difícil pela frente, eu retorno à Vó Augusta para tomar café da manhã. O lugar se tornou para mim quase que uma terceira avó, que eu frequento na tentativa de compensar a ausência de uma e a distância da outra. Mas aquela perfeita concatenação de fatores foi um evento único. Nunca é a mesma coisa: a moça do caixa está de mau-humor, a vaca fantástica foi transferida para um pasto mais eficiente, as mãos cabeludas do padeiro estão trêmulas devido ao alcoolismo, o café ordinário me queima os lábios. Depois de experimentar aquele café da manhã tão impecável, eu geralmente me decepciono. Mas eu nunca, nunca deixo de voltar.

--

--