Ilustração de uma mão robótica e uma borboleta indo pousar em sua direção | imagem por Jorm Sangsorn em shutterstock

O estabelecimento e a possível queda do antropocentrismo

Pós-humanismo e a superação do especismo

Julio Cesar Prava
Published in
20 min readOct 10, 2023

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O estabelecimento do antropocentrismo

O antropocentrismo é a crença de que os seres humanos ocupam uma posição central, única e privilegiada no universo ou no planeta. Essa visão coloca os interesses e a importância dos seres humanos acima de tudo o mais, no topo de uma hierarquia, seja do ponto de vista metafísico, ético ou político. Ela tem raízes profundas na história da filosofia e da cultura humana. Sua origem pode ser rastreada desde os primeiros grandes pensadores, que ajudaram a moldar o pensamento predominante em todo o planeta.

O antropocentrismo não é restrito à filosofia, muitas tradições e doutrinas religiosas ao redor do mundo também contribuíram para o desenvolvimento e estabelecimento dessa perspectiva. Nas principais religiões do mundo, a ideia de que os seres humanos foram criados à imagem de deus e receberam o dom da razão reforçou a ideia da centralidade humana no plano divino, ajudando a traçar uma hierarquia moral entre as diferentes espécies. Muitas tradições religiosas com menor expressão têm conceitos semelhantes.

A visão autocentrada e com os humanos no topo também foi endossada por propostas que, em diferentes níveis, recusaram a religiosidade. Durante o Renascimento, um período de renovação cultural e intelectual na Europa nos séculos XIV a XVII, o antropocentrismo foi parcialmente abalado, mas migrou e se manteve apoiado em visões mais naturalistas e científicas. Os humanistas desse período enfatizaram a dignidade e a capacidade dos seres humanos e promoveram a busca pelo conhecimento separado de uma base religiosa. Posteriormente, o Iluminismo do século XVIII também continuou adotando o antropocentrismo, destacando a importância da razão, da ciência e da liberdade individual como instrumentos para o progresso humano.

O antropocentrismo porém não saiu ileso, a teoria heliocêntrica de Copérnico, as descobertas em biologia evolutiva de Darwin e a revolução na física quântica alteraram fundamentalmente nossa compreensão do lugar da humanidade no universo e a natureza do conhecimento. Na teoria, essas mudanças minaram as noções tradicionais de hierarquia, centralidade e supremacia humanas, mostrando as diversas falhas do antropocentrismo, mas na prática não foi bem assim que aconteceu.

Uma nova roupagem antropocêntrica

As descobertas científicas, como o heliocentrismo de Copérnico e as leis de Kepler e Newton, reconfiguraram nossa compreensão da realidade e do universo, diminuindo a importância da humanidade e do antropocentrismo em termos cósmicos, alterando as compreensões sobre a realidade.

Apesar da maioria das pessoas ao redor do mundo ainda não ter superado visões antropocêntricas religiosas e sobrenaturais, houveram mudanças significativas no sentido contrário. Atualmente, há muitas indivíduos sem crenças religiosas ou agnósticas, epistemologicamente responsáveis e desconfiadas de pseudociências e de ideias transcedentais. No entanto, mesmo com a mudança para uma visão mais secular e científica do mundo, muitos aspectos do antropocentrismo persistem.

A teoria da evolução de Charles Darwin demonstrou que os seres humanos compartilham uma ancestralidade comum com os outros animais e com as outras formas de vida, mas ainda assim, muitos mantiveram uma visão hierárquica, considerando os humanos como superiores às outras espécies. Ao invés de questionarem as visões morais da humanidade em relação aos indivíduos de outras espécies, a teoria resultou em uma forma de antropocentrismo naturalista e científico, onde os seres humanos são vistos como o ápice da evolução ou mais importantes por suas capacidades racionais e linguísticas, capacidades essas que os outros animais não têm no mesmo grau. Inclusive, muitas vezes os humanos defendem outros humanos simplesmente por pertencerem à espécie humana, não por terem essas capacidades.

Algo curioso é que os avanços contra o antropocentrismo tiveram um impacto maior nas visões metafísicas e epistemológicas, mas não afetaram na mesma medida as visões morais e políticas, que dentro da área de filosofia moral, também parece já ter sido superado. Isso mostra que, se por um lado as revoluções científicas ajudaram a desmistificar o antropocentrismo religioso, por outro elas mantiveram uma visão naturalista que atribui maior valor moral à espécie humana.

Portanto, enquanto as revoluções científicas questionaram as crenças religiosas que colocavam os humanos como o centro do universo, elas não eliminaram completamente a visão hierárquica e antropocêntrica na prática. Em vez disso, essa visão evoluiu e se adaptou ao conhecimento científico e ao naturalismo e também foi transferida para as ideologias, ainda impactando fortemente a sociedade em muitos aspectos.

Ao crer em divindades o homem se colocou como centro do universo. Ao descobrir que não era o centro do universo o homem se colocou como centro do planeta. Ao descobrir que não é o centro do planeta, o homem nega a razão que o tirou do centro de tudo.

Antropocentrismo e especismo

As visões morais e políticas baseadas no antropocentrismo se mostram muito mais resistentes à mudança que as visões metafísicas, epistemológicas e religiosas. Enquanto no mundo atual se consegue questionar parcialmente as religiões, apontando suas incoerências argumentativas e ausência de evidências para suas alegações, a visão de que os animais de outras espécies não são inferiores moralmente e que seus interesses semelhantes importam igualmente é aceita e aderida por poucos.

Ao ter seus argumentos incoerentes e não sendo moralmente justificados, o antropocentrismo moral é uma perspectiva que tem sido criticada por sua tendência a negligenciar ou menosprezar o valor e os interesses dos indivíduos de outras espécies. A atribuição de um valor maior para membros da espécie humana, fundamenta a discriminação moral dos animais não-humanos, que é chamada de especismo. O especismo é uma face moral do antropocentrismo. Endossada ao redor do mundo, essa perspectiva têm grandes consequências práticas negativas, fazendo um número estratosférico de vítimas todos os anos.

O progresso tecnológico sem o acompanhamento do progresso moral e do questionamento do antropocentrismo e do especismo, ocasionou as fazendas industriais e a pesca industrial promovendo a miséria, o sofrimento e a morte de trilhões de animais vertebrados anualmente, se incluídos os artrópodes, como os insetos, que também são sencientes, os números atingem os quintilhões. Esses números são absurdamente gigantescos, mas devido à visão especista e à nossa limitação cognitiva, eles não nos chocam.

É certo que todos os vertebrados são sencientes. Quanto aos invertebrados, muitos também já são comprovadamente sencientes, como diversos moluscos, e existem cada vez mais evidências de que os insetos podem experimentar uma grande variedade de sentimentos e que os crustáceos possuem vidas sociais.

Hoje é bastante aceito que escolhas morais devem levar em conta não apenas nossas ações mas também nossas omissões. Assim, a crítica ao antropocentrismo não revela só nossas ações que prejudicam os animais de outras espécies, como também mostra que ao negligenciarmos ajuda aos animais que sofrem na natureza também estamos fazendo escolhas morais questionáveis. E indo além, indica que se no futuro surgirem outros indivíduos sencientes, como a partir de meios digitais e de tecnologias, ou se forem descobertos em outros planetas, eles deverão ter seus interesses levados em consideração de maneira semelhante, o que será outro grande desafio para o viés antropocêntrico.

A queda do antropocentrismo

O antropocentrismo, a visão que coloca os seres humanos no centro de preocupação moral, tem sido uma ideia predominante ao longo da história da filosofia e da cultura ocidental. Durante séculos, essa perspectiva moldou nossa compreensão do mundo, destacando a importância e a supremacia da humanidade sobre todas as outras espécies. No entanto, com o avanço da ciência, da filosofia e das preocupações com os outros seres sencientes, o antropocentrismo enfrenta grandes desafios.

A medida que a ciência expandiu nossos horizontes, principalmente com com as descobertas científicas relacionadas ao universo e a evolução das espécies, a visão dos humanos no topo da hierarquia foi parcialmente superada. Essas descobertas e pensadores mostraram que o antropocentrismo não é justificado à luz das evidências e da razão, nem na metafísica e epistemologia, nem da ética e política. No entanto, a ideia de que os humanos estão no topo de uma hierarquia moral ainda persiste.

A descoberta de que a Terra não é o centro do universo desempenhou um papel significativo em minar a ideia antropocêntrica que prevalecia na cosmologia e na filosofia durante a maior parte da história humana. O antropocentrismo, que enfatizava a supremacia da humanidade, foi desafiado pela nova visão científica que colocava os seres humanos em um planeta periférico em uma vastidão incomensurável do espaço.

Já a descoberta da Teoria da Evolução, formulada por Charles Darwin no século XIX e reforçada ao longo do tempo, mostrou que os humanos não são seres especiais. Somos apenas frutos de um longo e contínuo processo sem propósito, aleatório e adaptativo, onde as espécies mudam ao longo do tempo através da seleção natural. Essa teoria revolucionária lançou luz sobre a interconexão de todas as formas de vida na Terra e demonstrou que os seres humanos compartilham um ancestral comum com as outras espécies. Isso desafiou ainda mais a visão antropocêntrica, que postulava que a humanidade era a coroa da criação.

A teoria da evolução influenciou nossa compreensão da natureza humana. Ela mostra que os humanos são animais e que muitos aspectos do comportamento humano, características físicas e emocionais têm raízes evolutivas, isso revelou grandes implicações éticas, pois é contra a ideia de que os humanos estão em uma hierarquia moral.

Em resumo, essas descobertas mostram que nós não somos uma criação especial. Tanto a compreensão de que a Terra não é o centro do universo quanto a Teoria da Evolução desafiam o antropocentrismo e estão ajudando a redefinir nossa visão de nós mesmos, nos convidando a adotar uma perspectiva mais humilde e respeitosa em relação à todos os seres sencientes que compartilham o planeta com a gente, sendo eles igualmente dignos de respeito.

A contraintuitiva humildade intelectual

Os limites da ciência não são fixos, muitas crenças de conhecimento que estiveram corretas no passado, hoje são consideradas implausíveis, por falta de evidências ou contradições aparentes. O pensamento crítico foi fundamental para essas descobertas. A ciência envolve um princípio da revisão epistêmica, o que demanda uma abordagem de constante revisão e atualização do conhecimento e das crenças com base em novas informações e evidências disponíveis, mas isso não é fácil. No entanto, as pessoas têm dificuldade em revisar suas crenças, tanto sobre conhecimento quanto crenças morais.

Revisar as crenças é difícil por dois motivos. O primeiro é que raciocinar criticamente demanda um grande esforço cognitivo e muito gasto de energia, não somos bem adaptados para raciocinar dessa forma. No entanto, essa dificuldade não deve ser vista como uma razão para evitar a revisão de crenças, mas sim como um incentivo para aprimorar nossas habilidades de pensamento. O esforço investido pode levar a uma compreensão mais precisa da realidade e a crenças mais fundamentadas.

O segundo é que, historicamente, fazer parte de um grupo poderia aumentar a proteção e a sobrevivência e desafiar as crenças desse grupo poderia resultar em ostracismo ou exclusão, o que poderia ser prejudicial à sobrevivência em certos contextos. Por isso, como seres sociais, desafiar o tribalismo tem uma tendência a nos colocar em uma situação desconfortável e poderia reduzir a garantia de sobrevivência. No entanto, a sociedade evoluiu ao longo do tempo, e a dinâmica social é muito mais complexa hoje em dia. A diversidade de opiniões e a análise crítica delas são cruciais para o progresso e a sobrevivência da sociedade contemporânea. Além disso, a ciência e a tecnologia permitiram que as pessoas colaborassem em escalas globais, tornando o tribalismo menos relevante em muitos aspectos.

Então, mesmo que sejamos biologicamente mal adaptados para ter humildade intelectual e um raciocínio crítico constantes, isso não justifica que tenhamos ausência deles ou os recusemos. O antropocentrismo se apresenta tanto em visões religiosas quanto em visões naturalistas, decorrente de ambas, o especismo está fortemente estabelecido, no entanto, quando é colocado à luz da razão, ele se mostra um ponto cego da humanidade. A visão antropocêntrica tem sido cada vez mais desafiada. Este processo contínuo de mudança de paradigma, que indicam a superação de toda forma de antropocentrismo, tem o potencial de nos tornar mais conscientes de nossa responsabilidade e das nossas escolhas éticas, algo que demanda humildade e a revisão das crenças ainda endossadas pela maioria da população mundial.

Um confronto completo ao antropocentrismo

Questionar o antropocentrismo é, de fato, uma mudança significativa nas perspectivas tradicionais que colocam os seres humanos no centro de tudo. As visões decorrentes da negação do antropocentrismo suscitam mudanças em diversas áreas da filosofia:

  • Na epistemologia: Crenças epistemologicamente justificadas; Conhecimento baseado em evidências (epistemologia científica); Revisão epistêmica constante
  • Na metafísica: Ateísmo (ausência de crenças religiosas); Agnosticismo (ausência de posicionamento religioso por causa da incognoscibilidade); Revisão metafísica constante
  • Na ética: Sencientismo (dar importância a todos os seres sencientes); Revisão ética constante
  • Na política: Laicismo/secularismo (separação entre religião e esferas moral e política); Direitos Animais (proteção legal dos interesses dos animais sencientes); Revisão política constante

Mesmo com as visões metafísicas e epistemológicas mudando, as estruturas morais e políticas resistiram, muitas vezes devido ao egoísmo, à inércia cultural, resistência à mudança ou a interesses poderosos, todos esses motivos convenientes para os humanos indo contra o razoável. Assim, a maioria das sociedades continua a manter sistemas éticos e políticos que priorizam os interesses humanos sobre os de outros animais, mesmo quando a razão questiona essa visão egoísta com consequências ruins que poderia ser evitada. Isso destaca a complexidade da mudança de paradigmas em diferentes áreas do pensamento.

Tanto o teocentrismo, quanto o humanismo têm uma base antropocêntrica, mas ao longo da história, com as descobertas humanas, essa visão antropocêntrica foi sendo destruída. Atualmente, esse questionamento crítico do antropocentrismo fornece uma ruptura com a herança intelectual, religiosa e moral predominante de milhares de anos, passada de geração em geração pela família, educação e cultura.

Apesar de já existir antes, foi só na filosofia contemporânea, que propostas de superação do antropocentrismo na Ética começaram a ganhar destaque. A ascensão de teorias éticas contra o sofrimento, principalmente as consequencialistas, somadas a ética prática e a bioética, colocaram os animais em pauta ao se oporem inicialmente às fazendas industriais. Assim movimentos como o veganismo e o sencientismo, se tornaram discutidos e notados.

Algumas tecnologias emergentes podem ajudar a reduzir a exploração animal oferecendo produtos iguais aos que consumimos provindos dessa prática cruel. Isso pode acelerar a mudança da postura moral predominante de que os animais são inferiores, mas por si só não garante a garante. Por isso, a crítica contra o antropocentrismo e uma visão ética mais inclusiva, precisam ser espalhadas, tornando a transição para um mundo melhor e com menos sofrimento mais rápida, evitando catástrofes morais ainda maiores no futuro.

Ao confrontar o antropocentrismo de maneira geral, sem se colocar como centro do universo ou em uma espécie no topo de uma hierarquia de valor, isso levou muitas pessoas à visões baseadas em evidências e filosóficas imparciais e inclusivas. Reforçando o conhecimento como crença verdadeira justificada (baseado em evidências), o ateísmo e o agnosticismo, o laicismo/secularismo moral e político e requerendo uma expansão na esfera de consideração moral, agregando o sencientismo.

Pós-humanismo e pós-antropocentrismo

A questão mais negligenciada no combate ao antropocentrismo foi a ética. Antes do humanismo, que passou a considerar os seres humanos iguais, os humanos também eram vistos em diferentes hierarquias por separações religiosas ou características biológicas. Hoje os animais são discriminados e vistos abaixo numa hierarquia por características ou relações também.

Visões humanistas trouxeram princípios de universalidade e imparcialidade importantes para a superação do tribalismo e da discriminação entre humanos, no entanto, esses mesmos princípios não foram usados para os indivíduos de outras espécies, apenas por não pertencerem à espécie humana.

Essa autoatribuição de importância sem uma justificação válida é conhecida com falácia de petição de princípio. Sua delimitação sugere uma especialidade nos interesses e capacidades humanas, mas fracassam ao não conseguir explicar porque a posse dessas capacidades são relevantes para sabermos se alguém deve receber consideração moral ou para o grau de consideração que deveria receber, e também, porque os interesses semelhantes dos outros seres sencientes não deveriam ser tratados de maneira semelhante.

No texto “O que importa é pertencer à mesma espécie dos que tem certas capacidades?”, o filósofo moral Luciano Carlos Cunha, mostra o seguinte:

O que está em jogo em questões de consideração moral é a possibilidade de nossas decisões prejudicarem ou beneficiarem os afetados por elas. Então, o que parece ser relevante para saber a quem dar consideração moral é saber quem é passível de ser prejudicado ou beneficiado. A posse daquelas capacidades ou relações não determina quem é passível de ser prejudicado e beneficiado. O que determina isso é a senciência (isto é, ser capaz de ter experiências positivas e negativas).

Já no artigo “O que é relevante para saber a quem devemos consideração?”, ele apresenta o argumento da relevância:

Todas as defesas do antropocentrismo simplesmente assumem que o critério que adotam é relevante para saber a quem deveríamos dar consideração moral, sem oferecer nenhuma explicação de por que o mesmo seria relevante.

Isso vale para todas as tentativas de justificar o antropocentrismo, sejam as baseadas no critério do pertencimento a certa espécie, na posse de certas características metafísicas, na posse de certas capacidades ou relações, e também nas que se baseiam no fato de uma distinção ser baseada em uma característica biológica ou no fato de um comportamento ser natural ou tradicional.

Além disso, há razões para pensar que nenhum desses critérios é relevante para saber a quem dar consideração moral. Isso é apontado pelo argumento da relevância […]

O argumento da relevância defende que nenhuma das defesas do antropocentrismo adota critérios relevantes para determinar quem deveria receber consideração moral. Isso seria assim porque o que está em jogo em questões de consideração moral é saber como nossos atos e omissões poderiam afetar positiva ou negativamente quem fosse atingido por eles. Dar consideração moral a alguém é agir de modo a evitar prejudicá-lo e a buscar beneficiá-lo. Se é assim, então o critério adequado para saber a quem dar consideração moral é saber quem é passível de ser prejudicado e beneficiado.

A espécie à qual alguém pertence; ter sido ou não criado à imagem e semelhança de uma divindade, possuir ou não uma alma imortal; ter ou não certas capacidades e certas relações; ter ou não o potencial para tais capacidades ou relações; saber se um comportamento é ou não natural ou tradicional etc., nada disso determina quem é passível de ser prejudicado ou beneficiado. […]

Por outro lado, ser capaz de ter experiências positivas e negativas (isto é, ser capaz de desfrutar e de sofrer) determina se alguém é passível de ser prejudicado e beneficiado. É por essa razão que os proponentes do argumento da relevância defendem que a senciência é o critério adequado de consideração moral.

Dessa maneira conseguimos compreender que, diante da razão, o humanismo está correto apenas quando suscita a igualdade entre humanos, mas errado quando suscita uma superioridade humana injustificada diante das outras espécies. É por esse e vários outros motivos que assim como o antropocentrismo têm uma base metafísica e epistemológica questionáveis ele também ostenta uma base moral e política injustificada.

O pós-antropocentrismo, preserva os avanços metafísicos, epistemológicos, éticos e políticos do humanismo ao mesmo tempo que critica suas falhas e pontos que foram ignorados. É na percepção desses erros que correntes pós-humanistas e pós-antropocentricas exigem uma expansão do círculo de consideração moral, considerando os interesses semelhantes de forma semelhante, independente da espécie do ser senciente. O pós-humanismo baseado na senciência requer não só visões metafísicas e epistemológicas responsáveis, mas também visões morais imparciais, o que na prática suscita uma transformação na ética, na política e no direito.

Como o antropocentrismo é injustificado, toda teoria ética e política precisa rejeitar essa visão.

O pensamento crítico na metade do caminho

Foi o pensamento crítico que permitiu que os humanos questionassem o próprio antropocentrismo, mas os humanos ao invés de combatê-lo, transferiram sua suposta especialidade que respaldavam na religião para a moral racionalista-naturalista e para a ciência.

Inicialmente, a religião desempenhou um papel central, com muitas crenças religiosas considerando os seres humanos como a criação especial de um ser supremo. No entanto, com o advento do pensamento crítico e do Iluminismo, a ciência começou a desempenhar um papel cada vez mais importante na compreensão do mundo. Enquanto a religião gradualmente cedia espaço para explicações científicas, o antropocentrismo muitas vezes encontrou refúgio na moral e na ética, com a ideia de que os seres humanos ainda eram superiores.

Esse deslocamento do antropocentrismo da religião para a moral e para a ciência pode ser visto em várias áreas. Mesmo quando a ciência começou a revelar a interdependência de todos os seres vivos e a importância da preservação ambiental, o antropocentrismo muitas vezes encontrou maneiras de contornar essas descobertas em nome do progresso humano. Superar essas tendências antropocêntricas cheias de viéses que persistem em nossa moralidade, ciência e cultura é um desafio até mesmo para os que se consideram mais críticos.

Muitos cientistas e ateus/agnósticos se orgulham de estar ao lado da razão e da verdade, ostentando uma orientação para o pensamento e para a razão crítica. No entanto, ao continuarem aderindo uma visão antropocêntrica e negando uma postura ética inclusiva, se mostram apenas parcialmente do lado da razão, mantendo falsidades confortáveis e não tendo uma aplicação cuidadosa da razão para suas crenças e ações. Podemos observar isso porque ao mesmo tempo que sugerem que os outros se adequem à ideias mais racionais e bem justificadas, ignoram ideias mais racionais e bem justificadas que lhes são sugeridas, demonstrando uma profunda hipocrisia e insensatez.

Não é possível pensar de forma critica plenamente, dando pesos morais com pesos diferentes em situações semelhantes, seguindo viéses egoístas e tribais, com visões éticas e epistemológicas exclusivistas e/ou relativistas, com ideais cheio de contradições lógicas e sem uma revisão constante das próprias visões morais. Sem romper completamente com o antropocentrismo, os humanos estão à mercê do pensamento irracional e instrumental que muitos tanto dizem desprezar. Apesar disso, essa incoerência do anti-antropocentrismo pela metade é bastante comum.

A humildade intelectual faz parte da ciência, mas também da ética. Essa constante revisão das próprias crenças e o reconhecimento da mudança na conhecimento (que é provisório) quando surgem melhores evidências e justificativas, é um elemento fundamental no pensamento crítico. Isso ajuda a evitar o dogmatismo e a abertura para novas informações e perspectivas, proporcionando o avanço em praticamente todas as áreas da filosofia e da ciência. É preciso então combater o antropocentrismo em ambas as áreas, sem discriminação para obtenção de benefícios.

Uma mudança necessária

O avanço tecnológico sem a expansão do progresso moral, ocasionou grandes catástrofes morais. Isso pode observado em conflitos entre diferentes grupos humanos, que não conseguiram estabelecer o humanismo na prática. Já quando vamos para o antropocentrismo, numericamente a catástrofe é ainda maior: mais vítimas e mais sofrimento agregado.

O humanismo demanda a negação dos viéses egoístas humanos, dando relevância e respeito à todos os indivíduos humanos, mas continua cego e falha ao negar respeito à todos os indivíduos de outras espécies, que também são seres sencientes. Por isso, a exploração animal, é considerada uma catástrofe moral na sociedade contemporânea, ostentando o posto de maior causador de sofrimento e morte de indivíduos de forma intencional no planeta.

Aqueles que romperam com a noção antropocêntrica na questão existencial e religiosa e na questão epistemológica, mas ainda ostentam o antropocentrismo na questão moral, demandam um malabarismo intelectual para tentar justificar uma posição moral injustificável. Por isso, quando um racionalista, um divulgador de práticas baseadas em evidências, ou mesmo qualquer pessoa que se considere justa, consome produtos animais sem necessidade, ela dá um tiro no pé, demonstrando inconsistências e um contraditório desprezo por aquilo que diz defender, defendendo um valor apenas de forma parcial.

Ao fazer isso se revela a inconsistência de manter uma perspectiva moral antropocêntrica que dá prioridade exclusiva aos interesses humanos, ignorando o sofrimento de outros seres sencientes. O sencientismo, que valoriza todos os seres sencientes independentemente de sua espécie, é uma abordagem ética que busca corrigir essa falha.

O antropocentrismo moral permite o especismo, a discriminação baseada em espécie, uma posição parcial que anula a possibilidade de darmos pesos semelhantes à interesses semelhantes. Dessa maneira ignoramos aqueles que podem ser prejudicados e beneficiados, que é o que é relevante para ética.

É comum pessoas que abandonem só algum aspecto do antropocentrismo. Cientistas religiosos ou ateus especistas, por exemplo. Claro, existe entre as crenças diferentes graus, uma pessoa pode ser mais ou menos especista, mais ou menos religiosa, não é preto-no-branco, mas para fins teóricos de um cenário ideal, é preciso requerer a queda total do antropocentrismo.

Combater o especismo pode ser mais efetivo ao se opor à a religião, haja visto que ela é intrinsecamente ligada à uma visão antropocêntrica, mas não é uma condição necessária. É possível que uma pessoa seja antiespecista tendo religiosidade, da mesma maneira que é possível existirem religiosos fazendo ciência.

A crença ética justificada e o comportamento baseado nisso não é uma prerrogativa religiosa. Isto é, uma visão moral bem justificada, como o sencientismo, pode ser adaptada à diversas visões religiosas assim como à pessoas sem crenças religiosas. Da mesma maneira, a consideração com todos os seres sencientes pode ser inserido em diversas teorias éticas e teorias políticas.

Estar disposto à pensar criticamente, baseado em evidências e na razão, implicará na consideração moral e respeito à todos os seres sencientes e não restringindo isso aos humanos (humanismo) ou à grupos específicos de humanos. Esta é uma mudança necessária, para deixarmos de ser cruéis e para evitarmos ainda mais crueldade no futuro.

Grandes intelectuais da atualidade contra o antropocentrismo

Abaixo vou deixar uma lista de alguns dos maiores pensadores nos dias atuais que se opõe ao antropocentrismo moral e ao especismo. Eles fornecem uma base teórica fundamental para o combate à superioridade moral humana e aos nossos viéses, desmontando todas as defesas do antropocentrismo.

Brasileiros

De outras nacionalidades

Quando um humano ou grupo atribui mais valor moral para si, ele acaba por faltar com consideração moral aos outros. Por isso, toda vez que um indivíduo, de antemão, achar que o microuniverso dele é mais importante que os outros microuniversos, uma boa revisão ética condenará suas visões. Da mesma maneira, se um grupo de humanos se achar mais importante que os outros grupos humanos isso ocorrerá também. Indo além, toda vez que alguém achar que o universo ou o planeta foi feito para nós humanos, ignorando todos os outros seres que também podem ser prejudicados ou beneficiados, no presente ou no futuro, também não terá qualquer respaldo.

O paradigma antropocêntrico não se sustenta mais, ele leva a humanidade para uma miséria intelectual e moral. Ao superá-lo, conseguiremos reduzir muitos problemas e atrocidades que estão diante de nós mas que insistimos em negar. O pós-antropocentrismo emergiu e é necessário, em praticamente todas as esferas do pensamento.

Diferentes níveis de egoísmo e indiferença permitiram, e ainda permitem, dar importância excessiva para nossos interesses ao passo que não nos importamos com os interesses iguais dos outros indivíduos. Valorizamos coisas banais que nos trazem benefícios infringindo muitos malefícios para aqueles que são fundamentalmente semelhantes. Diariamente fazemos escolhas injustas, aceitando comportamentos parciais, discriminatórios e prejudiciais. Desde os primórdios, a visão predominante no mundo é a de que apenas o bem dos humanos importa ou que importa em maior grau. Essa narrativa de que somos especiais dá garantias de que podemos fazer com os outros o que desejarmos, por isso, ao longo da história, tomamos péssimas decisões e causamos sofrimento em larga escala aos outros animais.

É fundamental reconhecer o erro em nossas visões e atitudes e promover uma mentalidade mais equilibrada que valorize a empatia, a compaixão e o respeito pelos outros. Isso não significa que as pessoas não devem se valorizar, mas que é importante entender que todos os seres sencientes compartilham interesses fundamentais em comum e que nossas escolhas devem ser guiadas pelo respeito e pela sensatez.

A moralidade é uma construção humana que se desenvolveu ao longo do processo evolutivo, mas ainda que tenha se desvinculado de uma visão antropocêntrica baseada em visões religiosas, a moralidade ainda é bastante antropocêntrica, tendo deixado de proteger humanos baseados em deus e passado a proteger humanos baseado em uma visão naturalista. Questionar a moralidade sem a influência de deuses ou religião é uma crítica epistemológica ao antropocentrismo, no entanto, essa mudança não necessariamente questiona o próprio antropocentrismo em termos morais. A simples transição da moral baseada em religião para uma moral naturalista não resolve completamente o problema do antropocentrismo que tem consequências terríveis para outros indivíduos que sofrem desnecessariamente.

O antropocentrismo moral, que leva ao especismo, também é bem frágil, pois é uma visão moral que não se pauta na razão e sim no autointeresse e no egoísmo, o que é relevante para considerar alguém moralmente de forma direta é capacidade de ser prejudicado e beneficiado (ser alguém que tem senciência, capacidade de sofrer e desfrutar), portanto, passa a ser uma discriminação injusta.

Os comunicadores científicos que acompanho há anos são excelentes em epistemologia, mas péssimos em ética. Muitos questionam o antropocentrismo na epistemologia, enxergando a religiosidades e as pseudociências como falsas, mas quando se trata de ética tentam se apoiar no mesmo antropocentrismo, sendo hipócritas. Essas pessoas, envolvidas na comunicação científica e nas práticas baseadas em evidências, deveriam aprender ética com base em bons argumentos, assim o humanismo é limitado neste ponto e deveríamos expandir nosso círculo de consideração moral, buscando as melhores consequências e reduzindo sofrimento que pode ser evitado para todos os seres sencientes.

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