Ilustração de uma cérebro formado por linhas, metade simulando sistemas biológicos e metade simulando sistemas informáticos | imagem de shutterstock

O que é a consciência?

Animais e máquinas

Julio Cesar Prava
Published in
10 min readSep 24, 2023

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Uma câmera fotográfica consegue ver as coisas num sistema parecido com o nosso olho mas não é consciente, da mesma maneira, um sistema de inteligência artificial consegue classificar informações e fazer predições mas também não é consciente. Então o que nos diferencia destas coisas?

Assim como as câmeras e inteligências artificiais, nós conseguimos processar informações a partir de estruturas mecânicas. Ao ver, ouvir, cheirar, nós conseguimos fazer classificações de diferentes coisas, identificando padrões. O que nos diferencia de coisas que conseguem fazer isso é a percepção subjetiva do mundo, a chamada consciência.

As câmeras tem sensores de luz, convertem essas informações e códigos e gravam eles, mas não interpretam esses dados da mesma maneira que nós, é como se elas fossem nossos olhos com uma pequena memória mas sem a capacidade de sentir, interpretar e dar significados à estas entradas de informação.

Diferente de máquinas e objetos, é bastante aceito que cada ser senciente (capaz de ter experiências negativas e positivas a partir de um cérebro) vivencia conscientemente a realidade, numa perspectiva única. Isso quer dizer que cada indivíduo com cognição ostenta a capacidade de ter experiências relacionais diante da realidade e dos seus objetos, num sentido subjetivo, valorando elas. É por isso que nós temos sentidos e as máquinas não (ainda!), porque nós temos consciência.

As grandes perguntas que surgem então são por que esse processo físico é acompanhado por uma experiência subjetiva? Como a natureza dessa experiência consciente pode ser determinada?

O problema de definir a consciência

A maioria dos pesquisadores concorda que a consciência é um fenômeno que surge do cérebro. No entanto, mesmo diante disso, é bastante difícil compreendê-la.

Em 1995, o filósofo David Chalmers popularizou a ideia do “problema difícil” da consciência. Ele introduziu essa noção em um artigo intitulado “Facing Up to the Problem of Consciousness” (Enfrentando o Problema da Consciência), no qual argumentou que a consciência é um fenômeno tão peculiar e desafiador que não pode ser totalmente explicado em termos de processos cerebrais e físicos, mesmo que compreendamos completamente a neurobiologia.

“É amplamente aceito que a experiência surge de uma base física, mas não temos uma boa explicação de por que e como ela surge. Por que o processamento físico deveria dar origem a uma rica vida interior?”

O “problema difícil” da consciência refere-se à questão de por que e como os estados mentais conscientes, ou qualia, surgem a partir de processos físicos no cérebro. Em outras palavras, por que somos conscientes de nossas experiências e sensações, em vez de apenas processá-las como informações sem consciência?

Chalmers argumenta que a abordagem tradicional da ciência, que se concentra em explicar os aspectos “fáceis” da mente, como a percepção, a memória e a linguagem, não é suficiente para abordar o problema da consciência. Ele sugere que existe uma lacuna fundamental entre as explicações físicas e a experiência subjetiva da consciência, e essa lacuna é o “problema difícil” que precisamos resolver.

Somos computadores biológicos superpotentes

O fisicalismo é uma posição filosófica que sustenta que tudo o que existe no mundo é, em última instância, redutível à matéria física. O fisicalismo é uma posição central na filosofia da mente e tem implicações significativas para questões sobre a natureza da mente, da consciência e da relação entre mente e corpo.

Antes da introdução do conceito do “problema difícil” da consciência por David Chalmers, a discussão sobre a consciência na filosofia e na ciência frequentemente se concentrava em questões mais limitadas e acessíveis relacionadas à mente e ao cérebro.

Uma das correntes predominantes na ciência e na filosofia era o reducionismo materialista, que afirmava que a mente e a consciência podem ser reduzidas a processos físicos no cérebro e que eventualmente seria possível explicar completamente a consciência em termos de neurobiologia, embora o caminho para fazê-lo não estivesse totalmente claro.

Outra corrente forte era o funcionalismo que se concentrava na função e na computação realizada pela mente. De acordo com essa perspectiva, o que importava era como os estados mentais processavam informações e interagiam com outros estados mentais, independentemente dos detalhes físicos subjacentes.

Uma série de teorias sobre a consciência surgiram como resultado do problema difícil dando outras perspectivas, no entanto, muitas delas estão relacionadas à tentativa de descrever como as relações entre a consciência e o cérebro ocorrem.

Muitos cientistas cognitivos e neurocientistas continuam aderindo ao materialismo ou ao fisicalismo, correntes importantes e amplamente consideradas na filosofia da mente e na neurociência. Eles argumentam que a consciência emerge a partir de processos físicos no cérebro, apesar de haver aspectos ainda não completamente compreendidos sobre a natureza da consciência.

Não é só biologia

Na contramão das teorias mais difundidas, existem as visões não-fisicalistas. Elas argumentam que a mente ou aspectos da consciência não podem ser completamente reduzidos a processos puramente físicos, no entanto, estas visões não são respaldadas por evidências empíricas sólidas elas apenas apelam para as lacunas de conhecimento. Na filosofia da mente, essas posições são frequentemente debatidas e exploradas em um nível conceitual e teórico, mas elas geralmente não são apoiadas por evidências empíricas concretas. Essas abordagens não-fisicalistas negam a física como conhecemos e questionam não apenas a essência da consciência, mas também a própria estrutura da realidade como um todo.

Uma corrente que escapa às evidências, por exemplo, é o panpsiquismo. Esta teoria sugere que a consciência é uma propriedade fundamental da matéria e do universo, presente em todos os níveis da realidade, desde partículas subatômicas até organismos complexos. Nessa visão, a consciência não é gerada pelo cérebro, mas é uma característica intrínseca do cosmos. Os panpsiquistas geralmente não afirmam que tudo possui experiências conscientes mas sim propriedades proto-conscientes. No entanto, esta visão é bastante problemática, porque dada a falta de cognição (e a ausência dessa potente central de processamento de informação chamado sistema nervoso) nos outros objetos da natureza, ela é uma visão altamente especulativa e pode ser considerada uma pseudociência. Ainda que seja considerada verdadeira, esses seres protoconscientes dificilmente teriam experiências positivas e negativas.

Consciência em animais humanos e não-humanos

Em seu ensaio intitulado “What Is It Like to Be a Bat?” (O que é ser um morcego?), publicado em 1974, o filósofo Thomas Nagel abordou a questão da consciência e explorou as limitações da compreensão humana da experiência subjetiva de outras criaturas, como os morcegos. Nagel argumentou que, mesmo que possamos conhecer muitos fatos objetivos sobre a biologia e o comportamento dos morcegos, ainda não podemos realmente compreender o que é ser um morcego do ponto de vista de sua consciência. Nagel forneceu então uma definição não-estrita da consciência:

“Um organismo possui estados mentais conscientes somente se houver algo que é como ser esse organismo — algo que é assim para o próprio organismo.”

Essa frase significa que, de acordo com Thomas Nagel, um organismo só pode ser considerado consciente se ele tiver uma experiência subjetiva, ou seja, se houver algo que seja deve haver uma experiência subjetiva associada a ser esse organismo em particular.

Por exemplo, imagine que estamos falando sobre um animal, como um cachorro. Thomas Nagel, disse que um animal só tem estados mentais conscientes se ele sabe o que é ser ele mesmo, ou seja, se ele tem uma experiência de ser aquele animal em particular. Nagel argumentou que, se um organismo (como um cachorro) tem consciência, então deve haver algo que é “como ser” esse organismo, ou seja, o organismo deve ter uma experiência subjetiva de ser ele mesmo. Isso pode incluir a capacidade de perceber, sentir emoções e até mesmo ter uma sensação de identidade, mesmo que não tenham linguagem como a dos humanos para expressar isso.

A frase de Nagel parece sugerir que a consciência desempenha um papel fundamental na identidade individual de um organismo, ou seja, o que é alguém e não algo. Um organismo ter uma experiência subjetiva, de “saber o que é ser ele mesmo”, é o que o torna um indivíduo distinto e consciente.

Apesar de não podemos prever exatamente como é ser um animal de outra espécie de forma subjetiva, pois eles experimentam alguns fenômenos diferentes de nós e vice-versa, podemos dizer de maneira razoável e objetiva se eles têm consciência ou não dada as características básicas que entendemos como suficientes para este fenômeno, estas características podem ser observadas por testes científicos empíricos.

O artigo “Consciousness in Artificial Intelligence: Insights from the Science of Consciousness” (Consciência em Inteligência Artificial: Insights da Ciência da Consciência), lançado em 2023, apresenta diferentes condições conjuntamente suficientes para a consciência. Essas condições precisariam ser atendidas para que possamos observar a consciência em sistemas de inteligência artificial, o que nos proporciona uma base sólida para compreender o fenômeno da consciência em seres humanos e animais não humanos.

Tais características parecem ser satisfeitas pela maioria dos animais, como mamíferos, aves, répteis, anfíbios, peixes, moluscos, entre outros. No entanto, no caso dos artrópodes, embora eles atendam a várias características da lista, a situação em relação a outras características ainda não está clara. Apesar disso, pesquisas já indicam que diversas espécies de insetos têm sentimentos.

Veja abaixo as características propostas inicialmente:

Acessibilidade global que integra informações sensoriais, avaliativas e mnemônicas

Significa que na consciência, todas as informações que recebemos dos sentidos (como ver, ouvir, sentir) se misturam e são combinadas. Imagine que seu cérebro é como um centro de controle que recebe informações de todos os seus sentidos e as une para formar uma única experiência.

Atenção seletiva

Significa que podemos escolher conscientemente focar em uma coisa em detrimento de outras. Por exemplo, você pode escolher focar em ler um livro, ignorando outros sons ou distrações ao seu redor.

Integração ao longo do tempo por meio de formas de memória de curto prazo

Se refere à nossa capacidade de lembrar o passado recente. Imagine assistir a um filme — sua mente é capaz de lembrar as cenas anteriores para entender o que está acontecendo no momento presente.

Incorporação e agência.

Significa que estamos conscientes de nosso próprio corpo e de que somos os agentes (responsáveis) por nossas ações. Por exemplo, você sabe que é você quem está movendo seu braço quando levanta a mão.

Registro de si-mesmo-outro, usado na construção de uma representação do corpo em movimento no espaço

Envolve nossa capacidade de reconhecer a diferença entre nós mesmos e outras pessoas ou objetos ao nosso redor. Você sabe que você é você, e os outros são diferentes de você.

Sistema de valores flexível capaz de reavaliação e ponderação de necessidades

Significa que podemos avaliar e mudar o valor que atribuímos a diferentes coisas em nossa mente. Por exemplo, você pode perceber que algo que antes não era importante se torna mais valioso para você com o tempo.

União/unificação de características para formar estímulos compostos, permitindo a discriminação de padrões complexos

Envolve nossa capacidade de combinar diferentes características (como cor, forma, som) para entender objetos ou situações complexas. Por exemplo, você vê as partes de um quebra-cabeça e sua mente as une para ver a imagem completa.

Intencionalidade, ou seja, representação do corpo e do ambiente

Significa que nossa mente é capaz de representar a intenção ou desejo de fazer algo. Se você planeja levantar a mão, sua mente representa essa intenção antes de você realmente fazer isso.

Consciência em máquinas

A consciência é um fenômeno observado em animais, mas que pode se apresentar de maneiras diferentes por conta das diferentes estruturas cerebrais e cognitivas, isso é ponto pacífico. No entanto, se máquinas não-biológicas, podem passar a ter consciência no futuro é uma questão altamente controversa.

Existem teorias científicas da consciência elas fazem reivindicações sobre quais fenômenos materiais específicos — geralmente processos cerebrais — estão associados à consciência. Já teorias teorias metafísicas da consciência fazem reivindicações sobre como a consciência se relaciona com o mundo material no sentido mais geral. Se nos apoiarmos em teorias científicas apenas e não em um debate mais geral, existe a possbilidade de sistemas computacionais adquirirem consciência, mas debatermos teorias metafísicas, podemos ir para um terreno com previsões que não vão neste sentido.

Na discussão sobre a consciência em máquinas, se argumenta que a consciência é um produto dos processos físicos e/ou computacionais que ocorrem no cérebro. Nesta visão, a mente humana é, em última instância, um sistema de processamento de informações complexo que funciona à base de sinais e matéria. Se consciência é uma propriedade emergente de sistemas altamente complexos, como o cérebro humano, e que máquinas poderiam teoricamente alcançar um nível de complexidade em algo semelhante ao cérebro, à consciência pode surgir, mesmo que não seja idêntico à consciência humana.

Se a consciência surge de processos físicos no cérebro humano, então, em teoria, máquinas que possuam processadores e sistemas adequados poderiam ter consciência.

Do outro lado se diz que a consciência não pode ser completamente explicada em termos puramente computacionais ou físicos. Eles sustentam que a consciência possui qualidades subjetivas ou aspectos qualitativos que vão além da simples computação ou da atividade cerebral. Portanto, a reprodução da consciência em máquinas pode ser vista como algo desafiador ou até impossível, pelo menos com base nas abordagens atuais.

A ideia de que a mente é uma substância não física é chamada de dualismo, nela, portanto, máquinas, que são puramente físicas, não podem ter consciência no mesmo sentido que os seres humanos.

Em resumo, há aqueles que argumentam que a consciência não é estritamente computacional ou meramente física, e, portanto, não pode ser reproduzida. Essa perspectiva sugere que, em princípio, a consciência poderia ser reproduzida em máquinas, desde que sejam capazes de simular esses processos complexos de maneira adequada. Por outro lado, há os que sustentam que o cérebro é uma máquina que opera com base em eletricidade e materiais biológicos, e, consequentemente, acreditam que a consciência pode ser reproduzida, ainda que de maneiras diversas. Indo além, se o funcionalismo computacional for verdadeiro, sistemas de IA conscientes poderiam ser construídos de forma realista a curto prazo.

Apesar de diversos avanços em neurologia para a compreensão de fenômenos psíquicos, ainda não há uma não há uma teoria unificada ou amplamente aceita que explique completamente a consciência. Também não existe consenso sobre se é possível a consciência em sistemas computacionais ou como isso seria alcançado. Enquanto isso, nós que não somos estudiosos da área, podemos especular.

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