“A gente estava no carro quando minha mãe perguntou pelos meus namoradinhos. Eu disse: e que tal namoradinhas?”

Sâmara Correia
Nua e Crua
Published in
6 min readJun 11, 2015

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Bruna

Depoimento a Anamaria Legori
Fotos por Sâmara Correia
Edição:
Leandro Demori

Eu tinha 17 anos. Faz cinco anos que tudo aconteceu. E foi algo muito diferente, com uma pessoa que eu não tinha muita proximidade, só amigos em comum. Um dia eu comecei a me interessar por ela e não sabia bem como era aquilo, e o que era aquilo. Quando eu percebi, comecei a pensar muito mais nela, a toda hora, mas eu não tinha coragem de falar pra ninguém. Tanto que eu não falei, por vários anos foi um segredo só meu. Até eu conseguir aceitar o que eu sentia demorou dois anos. Foi quando eu fiquei com a primeira menina.

Não foi a minha primeira paixão. Era uma outra colega minha. E, depois dela, eu tive certeza de tudo.

Não me considero bissexual, mas também acho que isso é só um rótulo. É difícil classificar as coisas, porque eu não penso quando acordo: hoje eu sou lésbica. A gente não pensa. A gente só faz as coisas! E quando eu fiquei com uma menina, não pensava também. Eu tinha vontade. Era o que me deixava mais satisfeita. Só que eu demorei pra descobrir, talvez por causa da sociedade esperar que a gente faça uma coisa e a gente não querer ir contra aquela norma. Estudei em colégio católico, então não tinha muito espaço para que eu pudesse me descobrir naquela época. Mas, quanto mais eu fui tendo autonomia, mais eu tive oportunidade de conhecer outras coisas. Eu já sentia quando eu estava em casa, mas tinha todo um histórico social que eu não ia derrubar naquele momento. Eu nem sabia muito bem o que estava acontecendo comigo, só sentia que a cada dia que passava aquele sentimento ia aumentando dentro de mim, aquela vontade ficava maior e maior. Era isso: uma vontade. A gente não sabe muito bem quando acontece.

Saí de casa aos 18 anos. Uma fase não só de independência, mas de várias questões em formação. Acredito que ter conhecido outras ideias, longe da minha cidade, me ajudou no fim desse processo de descoberta. Fui morar sozinha. Foi um tempo onde eu conheci muitas coisas e já estava mais preparada, confiante. E em outra cidade não tem todo aquele passado onde as pessoas podem pensar “ah, como assim? Até ontem você gostava de caras”. Em outra cidade, as pessoas te conhecem pelo que você é a partir daquele momento.

Atribuo a minha autodescoberta às coisas novas que vieram nessa fase. Comecei a sair em balada gay, me aproximei do ambiente, porque eu me senti mais familiarizada, pertencente àquele universo que antes eu nem conhecia. E fazendo parte tudo fica mais fácil.

A primeira pessoa que eu contei foi a minha melhor amiga. Sou amiga dela desde os quatro ou cinco anos. A gente se conhece muito, mas mesmo pra contar pra ela foi difícil. Tínhamos toda a intimidade do mundo pra falar sobre tudo e mesmo assim eu só contei quando tive certeza. Contei pra ela e ela respeitou.

Hoje eu namoro uma menina. Faz uns dois meses que estou com a minha namorada, mas a gente sai juntas há oito. Não assumimos publicamente porque a família dela não lida bem com isso. Ela já tentou se assumir algumas vezes, mas eles não aceitam.

As pessoas mais próximas da minha família sabem do nosso namoro, porque eu contei. Contei pra minha mãe como se fosse uma brincadeira. Foi a primeira vez que ela soube de tudo. A gente estava no carro, eu, a minha tia e a minha mãe, e ela perguntou pelos meus “namoradinhos”. Eu disse: “e que tal namoradinhas?” Ela riu. Não levou muita fé no começo, porque na época eu namorava um menino, que na verdade foi fundamental para eu me assumir, porque ele era bissexual e me ajudou a entender.

Minha mãe aceitou de boa. Sempre tem brincadeirinhas, né? Mas não com preconceito. Tenho uma irmã que também é assumida, mais nova que eu. Ela é filha do meu padrasto e a gente se criou juntas. Minha família sempre aceitou, nunca foram cabeça fechada, me criaram fazendo respeitar e entender as coisas. Não só questões sexuais, mas de religião, de tudo. Procurando entender que as pessoas são formadas por sentimentos que você não precisa concordar, só respeitar.

Foi engraçado isso da minha mãe. Acho que a primeira reação é a surpresa mesmo. Eu mesma já fiquei surpresa com algumas pessoas que me contaram, ainda mais quando você não tem o estereótipo. E eu não tenho o estereótipo. Esperam que a lésbica não seja uma pessoa atraente, não seja uma pessoa sexualizada, alguém que um cara não quis. E na verdade não é nada disso. Não somos “as minas que os caras não quiseram”. A maioria de nós, inclusive, quando sai pra noite, os caras abordam, sem respeito nenhum muitas vezes — se estamos com outra menina pedem “pra participar”. Ridículo.

Eu respeito muito a decisão da minha namorada em não se assumir, porque ela é ainda muito nova. Dois anos mais nova que eu. Pode parecer só dois anos, mas pra mim fizeram muita diferença. Então eu entendo quando ela tem essa questão em aberto, até porque ela mora com os pais, depende deles. É uma situação muito complexa quando se depende de outras pessoas, então eu respeito.

Somos um casal normal, só deixamos de lado alguns compromissos mais específicos como almoçar com a família no domingo. Quando eu namorava meninos isso era comum, apresentar à família e tal. A minha família sabe quem ela é, os meus amigos também a conhecem. Alguns já saíram com a gente. Só fica faltando esse contato com os pais dela.

Mas saímos de mãos dadas na rua, vamos a todos os lugares. No geral é tranquilo, mas ainda rolam aquelas olhadas de reprovação. Quando isso acontece, geralmente tem uma questão de proteção entre nós: ela não queria que eu estivesse passando por aquilo e eu não queria que ela estivesse passando por aquilo. Então, quando a gente sofre esse tipo de situação, ou a gente aperta mais as mãos, ou fica mais juntas. No sentido de se proteger mesmo — pelo menos eu sinto assim. Mas a gente nunca foi agredida, não aconteceu nada dessas coisas, nunca passamos por isso. O que sofremos é mais verbalmente, em festas, ou comentários na rua. A gente sofre, porque mulher acaba sofrendo sempre. É mais uma coisa de desrespeito vindo dos homens, do tipo “ah, que desperdício”, essas coisas.

Hoje em dia está melhor, de todo modo. A mídia está publicando mais e o pessoal tem medo de ser homofóbico. Acaba se tornando uma coisa mais mais discreta, pelo menos eu percebo assim. Está tendo uma mudança de consciência.

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Sâmara Correia
Nua e Crua

Fotógrafa no coletivo Nua e Crua: as mulheres e suas histórias