“Apanhei, fui molestada, engordei e pensei em suicídio. Passei por isso tudo e quero buscar a minha melhor versão.”

Sâmara Correia
Nua e Crua
Published in
13 min readJun 11, 2015

Kamila

Depoimento a Anamaria Legori
Fotos por Sâmara Correia
Edição:
Leandro Demori

Eu morava com meus pais e dois irmãos. Eu tinha uns seis anos. Minha mãe começou a trabalhar e pouco tempo depois já ganhava mais que meu pai, mesmo ele tendo dois empregos. Por conta disso, meu pai falou que ia parar de trabalhar — ela que sustentasse a casa sozinha. Nossa vida virou um inferno. Meus pais tinham uma conta conjunta, ele sacava dinheiro e gastava, dava pra outras pessoas, vendia coisas da casa.

Minha mãe foi se virando e dando conta. Estava grávida do meu irmão, mas meu pai não queria um filho homem. Foi mais um motivo para a nossa vida piorar. Brigavam porque ele tinha ciúmes: falava que, com o nascimento de um menino, ia ter que dividir a atenção da minha mãe com a criança. Ele queria ser o único homem da casa. Mas ela seguia na luta, trabalhando pra caramba, enquanto eles só brigavam. Quando meu irmão nasceu, era ano de campanha, acho que 1998, e por isso ela trabalhava muito — era assessora de uma candidata.

Antes de ele nascer, minha mãe se converteu, e passaram a brigar ainda mais porque ela ia pra Igreja Protestante e ele pro terreiro.

Ele nunca bateu nela, mas descontava a raiva em mim e no meu irmão. A gente apanhava sem motivos. Só não batia na minha irmã, porque ela chorava muito. Lembro dele chacoalhando meu irmão, que na época era um bebê de 9 meses. Minha mãe chegava em casa e estávamos com hematomas. Às vezes, íamos pra casa da minha avó com essas marcas, mas ninguém se intrometia. Ninguém falava nada. Quando a ela saía, a gente apanhava. Nós aguentamos isso por mais ou menos três anos. Mas, na época, a minha mãe achava que o casamento era pra sempre e tinha que fazer dar certo. Minha vó contava que meu vô era assim: chegava em casa bêbado e batia em todo mundo.

Mesmo com esse empenho em manter o casamento a situação chegou ao limite, e minha mãe decidiu tomar uma atitude. Meu pai jogava futebol, voltava pra casa muito cansado e dormia profundamente. Num desses dias, ela nos vestiu com um monte de roupas e disse: “quando teu pai dormir, a gente sai”. Fugimos no meio da noite, andando pelas ruas. Não tínhamos carro, não tínhamos nada. De algum modo meu pai se deu conta, levantou, nos achou na rua e nos levou de volta pra casa. Essa cena se repetiu umas 10 vezes. Até arrebentávamos as portas das casas dos amigos pra poder entrar, tentar fugir. Às vezes íamos à delegacia, mas o delegado falava que meu pai era o homem da família e não podia fazer nada, no máximo forçar ele a pagar uma cesta básica. Que era melhor a esposa ficar quieta e voltar pra ele. E quando voltávamos, as brigas entre eles eram piores.

Minha mãe passava muito tempo fora de casa e meu pai foi ficando maluco com isso. Tem médico que diz que ele ficou esquizofrênico. Ele quebrava tudo, TV, mesa de vidro, e nos trancava no quarto. Se ela chegasse um pouco mais tarde, trancava a porta pra ela não entrar.

O dia fatídico chegou quando meu irmão tinha um ano e 9 meses, em 2000. Minha mãe estava trabalhando muito numa campanha de um candidato a prefeito e, na volta de uma jornada, ele não a deixou entrar em casa. Ela argumentou que não era assim que as coisas funcionavam e tentou falar com a minha avó, mas nada. Quando cheguei da escola, minha irmã estava chorando e soube o que tinha acontecido. Briguei com meu pai, gritei. Lembro exatamente desse dia e sei que tomei uma surra e fiquei toda roxa. Eu era muito bocuda e quanto mais falava, mais apanhava. Fomos dormir e no outro dia de manhã ele me pediu desculpas. Mas por dois meses não deixou a minha mãe entrar em casa.

Ela se mudou pra outra cidade e foi morar com uma amiga. No dia do aniversário dela, conheceu um cara que viria a se tornar o meu padrasto. Era 20 de setembro de 2000. Ele carregava um passado: tinha acabado de sair da prisão, preso por assalto a mão armada. Minha mãe precisava de um motorista para a campanha e o contratou. Uma semana depois, ele disse que estava apaixonado e queria se casar com ela. Ela aceitou. Ele conhecia a nossa história e queria ajudar a resolver. Então eles tramaram um plano.

Minha mãe tinha lido um livro, se inspirou na história e resolveu nos buscar. No início de novembro, os dois foram na casa da minha vó, onde eu estava com meus irmãos e meu pai. Ela disse que queria nos levar pra ficar uma semana. Eles discutiram, mas meu pai deixou que ela levasse dois de nós. Ela pegou meu irmão no colo e olhou pra mim e pra minha irmã, que estava com mais ou menos seis anos e começou a chorar muito. Então meu pai pediu que ela a levasse, que não queria criança chorona com ele, me deixando como garantia de que ela ia voltar e devolver os meus irmãos.

Quando eles foram embora, briguei com meu pai. Eu queria ter ido junto. Apanhei muito dele, fiquei marcada nos braços, nas pernas e na barriga. Naquele dia decidi tomar uma atitude: fui na casa de um tio e mostrei o meu estado pra ele. Ele e outros dois tios acharam meu pai e bateram nele, devolveram a mesma surra que ele tinha me dado. Eu ouvi tudo do lado de fora da casa.

No outro dia, fui pra escola de uniforme e levei dentro da mochila a roupa que minha irmã tinha se batizado um tempo antes. Chegando lá, vesti essa roupa — que ficava curta em mim — pra mostrar pra professora o que meu pai tinha feito. Queria que fizessem alguma coisa, que vissem as marcas e me ajudassem. Mas me disseram que não podiam fazer nada, que eu não podia agir daquela maneira e me instruíram a ficar quieta.

Com medo que eu fosse sequestrada pela minha mãe, meu pai mudou a minha rotina: eu entrava mais tarde na escola e saía mais cedo. Percebendo isso, ela foi à escola durante o horário das aulas e disse à diretora que ia me levar embora. Ela argumentou que somente meu pai poderia fazer isso, mas deu a opção da minha mãe assinar um termo avisando que iria me deixar na casa da minha avó. Ela assinou e depois disso eu nunca mais voltei, nunca mais morei com meu pai. Soube mais tarde que meu pai ficou louco e mais uma vez quebrou toda a casa.

Finalmente fui morar com meus irmãos. A vida parecia se ajeitar: minha mãe e meu padrasto estavam bem, nossa casa era legal, eu estava feliz. No outro ano, comecei numa escola nova. Íamos pra igreja juntos, éramos uma família unida. No começo de 2001, eu tinha quase nove anos. Minha mãe sempre ia para as vigílias da igreja. Eram bem longe. Nessa época, meu irmão fazia xixi na cama e precisei emprestar o meu colchão pra ele. Então, nessa noite que ela não estava em casa, eu dormi na cama dela, junto com meu padrasto. E naquela noite ele começou a me tocar.

Os primeiros toques foram estranhos, eu não entendia. Não sabia se era uma brincadeira. Era muito raro no começo. Mas, depois, se tornou frequente. Quando minha mãe saía, meu padrasto me molestava e depois dizia que se eu contasse pra alguém a nossa família ia acabar. Ele me ameaçava perguntando se eu queria morar debaixo da ponte. Então eu ficava quieta, mesmo sabendo o que estava acontecendo: por ironia, a minha professora de português me fez decorar os 30 direitos fundamentais da ONU e na escola, eu era “delegada dos direitos da criança”. Nessa época, eu já entendia o que estava acontecendo. Os abusos duraram dois anos.

Sempre fui uma criança muito alegre, espoleta, falante. Mas, fui ficando estranha, sabe? Quando fiz dez anos decidi me batizar em uma igreja evangélica. Ouvia falar de perdão e que as pessoas erravam. Desesperada, um dia perguntei pra deus por que isso não parava de acontecer. Eu queria acabar com aquele sofrimento. Como que por milagre, depois do meu pedido a coisa ficou menos frequente, como se deus tivesse interferido no meu destino. Na época fiquei maravilhada, e agradeci muito. Hoje, adulta, estudei sobre patologias e descobri que existe uma faixa etária mais específica que atrai doentes como meu padrasto — quando a criança começa a crescer, perde a graça. É algo fisiológico, mas naquela época eu achava que tinha sido obra de deus.

Decidi contar tudo pra minha mãe aos 13 anos. No dia 31 de dezembro de 2004 nós estávamos numa Assembléia de Deus, porque a gente sempre passa a virada de ano na igreja, e saí de lá decidida a contar pra ela. Já não acontecia mais, mas aquilo me sufocava. Ela me ouviu e, no dia seguinte, mandou meu padrasto embora. Ele me pediu desculpas, e saiu. Só que não demorou a voltar: depois de três meses, ela o perdoou. Ela me disse que o tempo tinha passado e que não ia acontecer mais, que era preciso seguir adiante, era melhor orar e dar a ele uma segunda chance. Na época eu não tinha opção, mesmo não concordando. Eu não queria que ele voltasse.

Quando fiz 14 anos, passei num teste de emprego em uma multinacional perto de onde eu moro. Eram 1200 adolescentes e 24 vagas e eu fui selecionada. Estudava 16 horas por dia, fiz curso de mecânica de usinagem e soldagem. Não pensava mais no que tinha passado, não sofria mais tanto. E comecei a crescer sozinha. Ajudava minha mãe do jeito que podia, e às vezes ela me ajudava.

Nunca contei essa história para o meu irmão, mas acho que a minha irmã desconfia. Fiz terapia e descobri que ele teve uma aproximação maliciosa, mas não tinha sido violento. O tempo foi passando. Fui crescendo. Comecei a achar que eu não era digna de nada. Achava que era melhor não casar ou ter uma família, porque isso poderia acontecer com os meus filhos também. Pensava que isso poderia influenciar a minha vida inteira e que nada ia dar certo. Lembrava e tinha vontade de chorar, não conseguia dormir.

Minha mãe só decidiu terminar o relacionamento com ele mais tarde, por outro motivo: ele parou de trabalhar, deixando ela sustentar a casa, exatamente como meu pai tinha feito. Como ela já tinha visto aquele filme, decidiu se separar. Faz dois anos e meio que ele não mora mais com a gente.

Eu já estava com quase 21 anos quando eles se separaram. Frequentava uma igreja chamada Bola de Neve. Lá, eles criaram um coletivo de fotógrafos que tem a filosofia de transformar a vida das pessoas através da arte. Entrei pra esse projeto sem nem saber o que era uma câmera. Nossa primeira ação foi na Fundação Casa Feminina de Paiva, em 2011. Nosso plano era fazer um fashion day, para as meninas da Fundação terem um dia de princesa com manicure, cabelo, maquiagem e produção de moda. No final do dia, elas desfilam em um tapete vermelho para as famílias e são fotografadas.

Enquanto arrumava as meninas, tive tempo de conversar e ouvir várias histórias de outras mulheres que também foram violentadas. Violentadas de verdade, não só pelo pai, mas também pelo tio, pelo avô, enfim, pelas pessoas que tinham o dever de protegê-las. Foi quando descobri que podia conversar sobre isso, que podia abraçá-las e dar uma palavra de conforto. E faço isso todos os anos.

Em março do ano passado foi especial porque fotografei o casamento da primeira menina que posou pra mim e vi que os meus conselhos deram certo. Ela saiu da Fundação Casa e encontrou o atual marido pelo Facebook. O casamento foi super simples, porque ela é de uma família bem humilde. Aquela menina estava dando certo, vi que a ajudei de alguma forma e fui importante na vida dela. À medida que as meninas se abriam pra mim eu contava sobre mim pra elas. Antes disso, não conversava com ninguém e aquilo estava me remoendo.

A terapia me ajudou a entender quem eu sou. Sempre fui alegre e era raro não acordar sorrindo e de bom-humor. Mas, só eu sabia que à noite eu chorava e tinha vários pensamentos ruins. Em 2014, fiz planos mirabolantes de suicídio. Por sorte ficou só em pensamento. Um dia, um pastor estava orando e disse que ali havia uma pessoa com pensamentos suicidas. Uma amiga me abraçou, mesmo sem saber de nada, e eu chorei muito nos braços dela. Depois disso, essa ideia foi embora. Mas eu ainda tinha muita tristeza dentro de mim. Toda semana, conversava com a terapeuta sobre isso e ela dizia que, conforme o tempo fosse passando, a tristeza iria diminuir. Fui diagnosticada com depressão e tomei alguns remédios para o humor e para dormir tranquila.

Cuidei disso, mas comecei a engordar muito. De 2013 até o final de 2014 engordei quase 27 kg relacionados à tristeza, falta de auto-estima, insatisfação comigo mesma e com a minha vida. Não me arrumava, estava sempre com o cabelo bagunçado, não tinha vontade de levantar da cama, sequer de tomar banho. Minhas amigas falavam que eu tinha um corpo bonito que devia usar vestido, mas eu dizia que não gostava. Sempre falava que ia emagrecer, mas ficava triste e comia mais. E ainda tive uma alta forçada da terapia por causa de grana, porque é muito caro.

Hoje estou bem. Realmente essa ferida não dói mais. Não namorei ainda, mas não tenho mais problemas com isso. Vi o mundo de mulheres que foram molestadas quando criança e que agora têm família e estão felizes com seus maridos. E quero que a minha vida seja assim também. Comecei a acreditar nisso e a buscar por isso. Ouvia na igreja que tudo o que a gente faz e o que a gente vive é pra fortalecer a mente, ou pra dar coragem pra outras pessoas. Que nada acontece por acaso. E isso foi se tornando forte pra mim. Penso que um dia vou poder dizer que aprendi a perdoar e que consegui conviver com isso. Mas, acho que as pessoas devem se afastar do que as machuca e aprender a não deixar que isso acabe com a vida delas.

Geralmente faço uma lista com metas para o próximo ano. No final de 2014 não fiz, mas resolvi fazer um compromisso comigo mesma. Meu único objetivo desse ano vai ser buscar a minha melhor versão, por dentro e por fora. Sem compromisso com os outros, sem pensar em dinheiro ou nos negócios. Um compromisso comigo e por mim. No dia 4 de janeiro calcei um tênis bem velhinho — o primeiro que encontrei — vesti uma calça e saí pra correr, mesmo estando sedentária. Foram uns 13 km entre correr, caminhar e trotar. Cheguei em casa morrendo de cansaço, mas no outro dia fiz a mesma coisa, e no outro dia também. Assisti a um vídeo sobre técnicas de aprendizado que mostrava que, se você quer aprender uma coisa nova, você deve praticá-la por pelo menos 20 horas consecutivas — e depois de ter algum resultado, você decide se quer se tornar um expert ou se quer fazer aquilo só pra se divertir. Resolvi fazer isso com a corrida.

Comecei a escrever, a postar no Instagram e quatro meses depois do início do projeto que chamo de gente fina emagreci 11 kg. Estou com 75 Kg, antes pesava 90 kg. Agora, me visto melhor e tive o primeiro encontro da minha vida. O clima foi meio estranho, mas foi legal. Eu nunca tinha saído com ninguém: minha mãe casou virgem e acho bacana essa ideia. Então foi meio esquisito. No ano passado, pela minha baixa auto-estima, eu me achava um monstrinho e não saía nem em fotos. E esse ano voltei a cuidar de mim, aos poucos o amor próprio está voltando e quando você começa a gostar de si pessoas também começam a gostar de você. E os meninos também apareceram, olha só!

Eu tinha uma lista dos pré-requisitos do homem perfeito e ele tinha que ser da igreja. Hoje eu mudei. Acho que precisa ser uma boa pessoa e gostar de mim de verdade, entender os meus valores. E vai ter que esperar o tempo que for preciso, sem forçar a barra. Uma amiga falou do Tinder e eu baixei o aplicativo. Passei umas duas horas curtindo vários meninos, parecia um cardápio. Quando acordei no outro dia, tinha recebido um monte de matches. E acabei saindo com um menino. Ele foi super legal, super gentil e me tratou super bem. Tentou me beijar, mas eu fiquei muito tímida. Não conseguia nem olhar nos olhos dele.

Pelo fato da minha mãe ter perdoado meu padrasto, ficou uma mágoa entre nós, e isso ainda me atrapalha em alguns momentos. Mas nunca falei sobre isso com ela. Eu a amo, ela me ama, mas não temos um relacionamento legal, não conversamos, não dividimos as coisas, não falamos sobre a vida.

Meu pai eu só vi três vezes depois que saí da casa dele. As duas primeiras nem o cumprimentei e a última foi no enterro da minha avó. Ele abaixou a cabeça e disse oi, mas não conversamos. Teve uma época que pensei em me reaproximar, mas não fiz. O meu coração está limpo. Não sinto nada, sou indiferente. Nada de ruim, e também não tenho amor. Desejo que ele fique bem, do mesmo jeito que olho para alguma pessoa em estado de necessidade. Antigamente, tinha aversão e medo, pensava nele e chorava. Mas hoje isso não é mais uma lembrança recorrente. Assim como é em relação ao meu padrasto. É a mesma indiferença.

Minha terapeuta dizia que eu tenho uma caixinha onde guardo todas as lembranças ruins. É um quarto bagunçado, onde aos poucos preciso abrir e fazer uma faxina para essas coisas nunca mais me afetarem. Ela dizia que em algum momento vou lembrar de coisas e sentir tristeza, mas vou aprender a lidar. E vou. Hoje tenho 23 anos, fui contratada por uma empresa nova do setor de engenharia, voltei a fotografar, que é o meu hobby, e esse ano já foram quatro casamentos e quatro ensaios. Acho que a vida vai andar.

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Sâmara Correia
Nua e Crua

Fotógrafa no coletivo Nua e Crua: as mulheres e suas histórias