“Eu comecei a ser abusada aos 9 anos. Na vida adulta, permiti outros abusos. Foi como morrer um pouco para aprender a ter respeito e gentileza por mim mesma.”

Gabriela (pseudônimo)

Anamaria Legori
Nua e Crua
9 min readMar 8, 2020

--

Depoimento a Anamaria Legori
Fotos por Sâmara Correia

Meus pais se separaram quando eu tinha cinco anos. Minha mãe estava insatisfeita com o casamento e o meu padrasto serviu como o gatilho para ela pedir a separação. Logo depois de se separar, fez uma janta com os filhos e perguntou se podia namorar. Hoje, acho essa atitude um absurdo, porque ela iria namorar de qualquer jeito e só íamos ficar frustrados, caso não aceitássemos. E foi o que aconteceu comigo. Meus três irmãos falaram que sim e somente eu disse que não aceitava. Minha mãe achou que eu estava com ciúmes e ponderou que eram três votos a favor e um contra. Então, ela resolveu namorar sem o meu consentimento. Nunca gostei do meu padrasto, e isso aconteceu desde o primeiro momento em que o vi. Desde muito pequena, nunca me senti confortável com a presença dele. Eu era a “menininha do papai” e estava muito triste pela separação. Nesse processo, meu pai se afastou de mim. Hoje, ele se sente triste por eu ter sido criada longe dele, por não termos tido mais convivência. Em compensação, ele nunca me procurou fora do período acertado de nos vermos a cada 15 dias. Apenas cumpriu o combinado. Nunca me convidou para fazermos qualquer outro programa fora desse período. E sempre que nos encontrávamos, ele parecia muito cansado e não demonstrava que estava a fim de estar comigo. Tive uma infância complicada.

Minha mãe casou com meu padrasto e eu e meus três irmãos mais velhos fomos morar com eles. Nas fotos do casamento, estou seríssima. Ele não havia me dado motivo para não gostar dele, eu simplesmente não gostava. Dali em diante, eu teria que suportá-lo. Nesse período, meu pai também casou e, para piorar a situação, naquela época a minha madrasta me tratava muito mal e meu pai a defendia. Hoje ela mudou. Me trata muito bem e também aos meus filhos.

Quando a minha mãe viajava — e ela viajava muito — a gente ficava com o meu padrasto. Eu tinha 9 anos quando tudo começou. Numa noite em que minha mãe não estava, meu padrasto me convidou para brincar. Ele me deitou no chão e começou a pisar de leve em mim, não com força. Depois, ele disse pra eu pisar nele. Falou para fazermos essa brincadeira mais vezes, que esse era o nosso segredo e por isso não era pra eu contar para a minha mãe. Fiquei confusa com essa história de segredo. Não sabia o porquê de eu não poder contar pra ela. O fato é que realmente nunca contei.

Toda vez que minha mãe viajava, ele incrementava a brincadeira. De início, eu ficava até curiosa e não enxergava como um abuso. Lá pelas tantas, ele começou a tirar a minha roupa e pisava em cima do meu peito e da minha vagina. Sempre que ele fazia isso, usava uma cueca samba-canção e, como eu ficava deitada, enxergava as partes íntimas dele. Mais tarde, além de tirar a minha roupa e pisar em cima de mim, ele amarrava as minhas mãos e os meus pés. Isso aconteceu entre os meus 9 e 12 anos e eu não entendia o que ele estava fazendo. E não sei por que ele sentia prazer com isso.

Como disse, levei a sério essa história de segredo. Achava que não era certo contar para a minha mãe. O segredo perdurou porque a própria disposição da casa favoreceu: os quartos dos meus irmãos eram fora, tipo um “puxadinho”. À noite, eles iam para o quarto dormir. Hoje, eu consigo falar sobre isso, mas o engraçado é que parece que não aconteceu comigo. Passei muitos anos sem falar nesse assunto. Não sei como minha cabeça processou, mas parece que isso aconteceu com outra pessoa. Me acho insensível, porque não sinto nada ao contar essa história. Acho que é o meu mecanismo de defesa.

Em torno dos meus 10 ou 11 anos, comecei a não achar mais essa “brincadeira” legal. Conforme eu fui crescendo, ela se tornou desconfortável. Era uma coisa que eu não queria fazer. Mas, não conseguia dizer não pra ele. Então, quando minha mãe viajava, eu tentava fugir dessa situação de todas as maneiras. Ia cedo pra cama e fingia estar dormindo para evitar ficar sozinha com meu padrasto. Mesmo assim, ele entrava no meu quarto, me acordava e dizia para fazermos a nossa “brincadeira”. Eu ficava sem reação, como se fosse obrigada a fazer aquilo. Eu nunca disse: “eu não quero fazer isso”. Se ele perguntasse se eu queria brincar, eu diria não, mas como ele não perguntava, eu simplesmente obedecia. Achava que ele estava cuidando de mim, afinal ele era o meu padrasto.

Quando fiz 12 anos, nos mudamos de cidade. E ele parou com a “brincadeira”. Não sei se algum dia eu disse “não”, ou se minha mãe parou de viajar, ou se era o fato de eu estar crescendo. Ele parou de pisar em mim, mas seguiu fazendo algo que ele também fazia desde os meus 9 anos: quando estava sozinha em casa, deitada, ele beijava os meus pés. Eu odiava. Ele não perguntava se podia fazer isso, simplesmente beijava. Sentia que era errado, porque ele não fazia isso na frente da minha mãe, só fazia escondido dela. Ao mesmo tempo, achava que se contasse para a minha mãe, ela não veria problema nele beijar os meus pés. Me sentia bastante desconfortável. Mas, por algum motivo que eu não sei o qual, eu não dizia não.

Ele seguiu beijando os meus pés até os meus 15 anos, quando voltamos para Porto Alegre. A partir daí, não fez mais porque quase nunca ficávamos sozinhos. Logo, comecei a namorar. Tinha 16 anos e sempre estava com meu namorado. Quando completei 8 meses de namoro, minha mãe perguntou se eu já havia transado com meu namorado e eu disse que não. Ela perguntou o por quê e eu não soube explicar. Então, ela me perguntou se meu padrasto havia feito alguma coisa. O abuso estava enterrado na minha cabeça. Se ela não tivesse me perguntado acho que jamais teria falado nisso, seria algo que teria ficado guardado comigo para sempre. Eu desabei a chorar, chorar, chorar, sem parar. E contei tudo para a minha mãe. Minha sensação foi de me libertar desse segredo que eu jamais havia sequer ensaiado contar à ela. A reação da minha mãe foi estranha: ela tirou meu padrasto de casa, mas seguiram casados. Achei bizarro minha mãe continuar casada com ele depois de eu ter contado tudo pra ela. Não a culpo por isso, tenho certeza que ela jamais faria por mal. Mas não era a reação que eu esperava e isso me intriga até hoje. Nunca tive coragem de conversar com ela sobre isso. Sigo sem entender porque ela manteve o casamento. Acabei transando com meu namorado e foi muito bom. Adoro transar. Nesse aspecto, o abuso que sofri não me causou nenhum tipo de bloqueio.

Logo que ingressei na faculdade, aos 18 anos, houve uma greve. Então, para eu não ficar parada durante esse período, minha mãe disse para eu trabalhar com meu padrasto por um tempo. Sempre fui uma criança extremamente obediente, me libertei muito tarde da obediência aos pais. E, como previsto, eu não hesitei em obedecer. Achei que o ambiente de trabalho fosse seguro, já que lá não iríamos ficar sozinhos. Um dia ele ia ao médico, mas antes me deixou em casa e pediu para esperar um tempo lá até a hora da consulta. Não vi nenhuma maldade e então deixei. Ele sentou ao meu lado, pegou o meu pé, começou a beijar e disse: você gosta que eu faça isso, né? E eu respondi: gosto que o meu namorado faça. E ele foi embora. Contei o que aconteceu para a minha mãe e finalmente ela se separou dele. Ela entrou em depressão, como se eu fosse a culpada pela separação. Sempre tive a sensação de que a minha mãe se sentia vítima de tudo isso. E entre nós, tudo se quebrou. A minha relação com ela é distante, apesar de nos darmos super bem. Na terapia, converso sobre como não faço questão que minha mãe me faça carinho. Gosto de conversar com ela, meus filhos a amam. Mas, quanto ao carinho, não é algo que eu goste que ela faça.

Me separei do meu marido há pouco tempo, por isso minha mãe quer estar sempre presente, viajar comigo e fazer coisas de mãe e filha. Aos 18 anos, algo se rompeu dentro de mim em relação à ela. Nunca conversamos sobre isso, nunca colocamos em pratos limpos. E de tudo de ruim que aconteceu, a pior coisa foi a relação com a minha mãe ter mudado. Não tanto com o meu ex-padrasto, porque nos vimos muito pouco ao longo desses anos todos, já que hoje tenho 36 anos. O que aconteceu doeu muito, mas não dói mais. O abuso marcou profundamente a minha infância. Revelou a negligência das pessoas que deviam ter cuidado de mim e especialmente marcou a minha relação com a minha mãe. A mágoa em relação à ela é algo que não consigo processar.

Anos mais tarde, minha mãe voltou a trabalhar com meu ex-padrasto. Se tornaram sócios numa empresa e fiquei contrariada. Não era algo que eu gostaria que ela fizesse. Eu acreditava que ela não tivesse mais contato com ele, mas acho que ela nunca deixou de ter. Por outro lado, era um alívio, porque ela estava muito mal de grana e ele podia dar esse suporte à ela. Não fico à vontade quando ela fala com ele por telefone perto de mim. Mas, isso não me diz respeito. Eu não preciso mais conviver com ele.

Como disse antes, eu achava que tudo isso não doesse mais, que tivesse deixado pra trás. Até eu perceber, depois da minha separação, que eu estava me deixando abusar ainda na vida adulta. Essa descoberta doeu muito. Minha relação com meu ex-marido durou quase 20 anos e ele sempre foi muito cavalheiro, amoroso e respeitoso. Não tenho nada de negativo para falar sobre ele. Mas, depois de me separar, lidei com pessoas as quais eu não conhecia. Eu não estava me respeitando, diante de alguns homens. Quando eu abria a porta pra eles me beijarem, parecia que eu a escancarava para fazerem tudo o que quisessem, mesmo quando eu não queria. Eu ficava por trás da fachada “quero experimentar coisas novas e vou deixá-los fazerem de tudo”. Só que permiti que fizessem coisas nas quais eu não me sentia à vontade. E novamente eu não disse “não”. Algumas situações foram a gota d’água pra mim. Por que não estou me respeitando? Por que não digo “não” quando acho que é preciso? Por que estou aceitando o que está acontecendo? Isso estava se repetindo e seguindo um padrão. Me senti confusa. Minha terapeuta disse que quando eu não tinha idade para discernir as coisas, as pessoas que deviam cuidar de mim foram aquelas que me tocaram, abusaram e me fizeram permitir isso. Vejo que hoje estou repetindo esse padrão, quando deixo as pessoas me tocarem. Eu libero para fazerem o que elas querem sem o meu consentimento, porque foi assim que eu aprendi. Descobrir isso foi muito doloroso. Percebi que eu estava vivendo novamente aquele abuso que eu sofri lá na infância e que estava se repetindo na fase adulta de forma consentida, inconscientemente. Fiquei muito triste e ao mesmo tempo aliviada. Agora que entendo que estava permitindo isso, consigo me libertar desse modelo para poder me respeitar e aceitar somente aquilo que eu quero que de fato aconteça. Doeu, mas também foi muito importante eu ter realizado esse processo. Foi como se eu tivesse morrido um pouco, para trazer isso à consciência. E agora me sinto mais preparada para enfrentar o que for preciso no futuro. Com mais respeito e gentileza por mim mesma.

--

--

Anamaria Legori
Nua e Crua

Escritora no coletivo Nua e Crua: as mulheres e suas histórias | Consultora e Pesquisadora de Tendências |✉ analegori@gmail.com