“Liguei para o meu marido e disse: fudeu! Descobri que estava com câncer de mama.”

Deise

Anamaria Legori
Nua e Crua
12 min readJan 28, 2016

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Depoimento a Anamaria Legori
Fotos por Sâmara Correia
Edição Leandro Demori

Saí do consultório da ginecologista e não sabia nem pra que lado ir. Logo adiante, no elevador, não sabia em qual botão apertar. Chegando do lado de fora do edifício onde havia consultado, liguei para o meu marido e disse: fudeu! Eu tinha acabado de descobrir que estava com câncer de mama.

Havia chegado a época de fazer exames de rotina anuais e dessa vez a ginecologista havia solicitado também uma ecografia mamária. No exame, o técnico encontrou algo suspeito e comentou comigo. Mas não fiquei preocupada, porque na família somente uma parente distante já teve câncer e a minha mãe tem cistos benignos. Por isso, voltei à ginecologista confiante para levar o laudo da biópsia já que a ecografia havia apontado uma bolinha no seio. Estava preocupada, mas achava que não ia ser nada, tanto que fui sozinha na consulta para levar o resultado.

Antes da consulta, peguei o laudo no laboratório, mas não tive coragem de abri-lo. Estou sentada com ele na mão na sala de espera, enquanto aguardo a consulta. E penso: quer saber? Vou abrir isso aqui! E li: carcinoma invasor grau II. Parecia que tinha alguém me esgoelando. Entrei em pânico, não conseguia falar, nem chorar. Fiquei com a mão na boca e os olhos arregalados: meu, tô com câncer! Sozinha, olhava para os lados e ninguém me olhava. Comecei a tontear. Até que a ginecologista me chamou para a consulta. Ainda com os olhos arregalados, entrei correndo na sala, joguei o exame na mesa dela: abre e olha! Ela também arregalou os olhos e me disse: é um câncer de mama. Comecei a chorar e só conseguia pensar que eu não tinha ido até lá para ouvir isso. A médica me disse que era um câncer inicial, tratável, curável. Que eu teria alguns incômodos, mas seria resolvido.

Não tinha coragem de entrar no carro, de dirigir. Liguei para meu marido e disse: fudeu, estou com câncer. Fiquei sentada no chão na frente de uma vitrine, olhando para o nada, desesperada, sem acreditar no que estava acontecendo. Queria voltar a fita, essa não podia ser a minha história. Por que comigo? Estou sempre me cuidando, sou a chata dos médicos. Fui até uma padaria, sentei e liguei para o meu chefe que me acalmou e me deu apoio. Ele disse pra eu não me preocupar com nada em relação à empresa que meu trabalho estava lá e sempre estaria lá, não importando os dias em que eu não estivesse trabalhando.

Meu marido foi me encontrar nessa padaria e quando chegamos em casa conversamos e choramos muito. Avisamos a família e minha mãe me tranquilizou: calma filha, vai dar tudo certo, você vai ficar bem. A minha irmã caiu em lágrimas, parou de trabalhar e abraçou a sua cliente, durante a sessão de massoterapia.

No outro dia, consultei um mastologista que disse que o tumor era pequeno e um dos casos mais fáceis que ele já havia pego. Mas que provavelmente eu teria que fazer quimioterapia porque o nódulo tinha mais de 1cm. A quimio atua como uma prevenção para matar as células sentinelas que ficam próximas ao tumor e depois a radioterapia serve para eliminá-las totalmente. Perguntei se iria cair o cabelo e ele afirmou que sim. Ele disse que seria um incômodo de uns 6 meses e que eu precisava me preparar psicologicamente. Depois, vida normal, mas com controle. Faria uma cirurgia simples para retirada do tumor, preservando o seio que iria ficar menor que o outro, mas podendo ser feito um enxerto e uma plástica mais tarde.

Quando descobri o câncer vivia junto com meu companheiro mas sem usar alianças. De surpresa, ele combinou com um amigo fotógrafo de tirar umas fotos para registrar os últimos momentos com o meu cabelo e a nossa troca de alianças. As fotos serviram pra me deixar feliz antes da cirurgia, esquecer, dar risada, elevar a auto-estima. E, principalmente, para oficializar que a gente estava casando. Vários amigos vieram ajudar nesse momento. Depois disso, fui muito feliz pra cirurgia. Isso me ajudou.

A cirurgia para retirada do tumor estava agendada e comecei a ficar tensa. Mas no dia fiquei feliz e confiante nos médicos, por estar tirando aquilo que estava me preocupando e, claro, estava usando aquele avental com a bunda de fora. O que mais me emocionou é que havia conhecido há menos de um mês o pai da sócia do meu marido, que é patologista, e ele se ofereceu para participar da cirurgia. É essencial ressaltar que nesses momentos difíceis surgem amizades importantes, pessoas que surgem do nada para ajudar, apoiar. E a cirurgia foi um sucesso. Não havia metástases, nem nódulos na axila. Então somente o nódulo do seio foi retirado para biópsia. Fiquei em recuperação, com muitas dores, mas minha mãe e minha sogra me ajudaram muito. Eu nunca havia feito uma cirurgia e depois dela comecei a dar valor para coisas que eu não dava bola: como conseguir levantar o braço pra pegar uma xícara de café, tomar banho sozinha e pentear o cabelo — ainda mais nesse momento sabendo que ele ia cair.

Foram 40 dias para ter o resultado da biópsia. Foi de enlouquecer. Com esse resultado, iria saber que tratamento deveria ser feito. Como a mãe de uma amiga também estava com câncer de mama e fazendo somente radioterapia, eu coloquei na cabeça que o meu tratamento também seria só esse. O mastologista tinha me dito que provavelmente eu faria quimioterapia, mas quis bloquear isso e pensava que pensando positivamente eu conseguiria reverter essa situação. Na verdade, estava negando que poderia ter que fazer quimio.

Quando recebi o laudo da biópsia não tive coragem de abri-lo, afinal estou com trauma de abrir laudos. Levei o resultado para o oncologista que me perguntou o que o mastologista havia falado sobre o tratamento. Comentei que ele havia dito que o oncologista que iria dizer, não querendo falar que ele já havia mencionado que eu provavelmente faria quimioterapia. Dito e feito: eu faria quimioterapia. Quando o oncologista afirmou isso, não ouvi mais nada. Fiquei surda e zonza, do mesmo jeito que fiquei quando li o laudo da ecografia. O oncologista me disse: eu sei que você não está prestando atenção em nada do que estou falando, mas o seu marido vai lembrar, você está muito nervosa. Ele me pegou pelos braços e disse: você já tirou o nódulo, você está curada, você não tem mais câncer. Vai fazer 6 sessões de quimioterapia por prevenção, para matar as células que ficaram na mama, para o câncer não voltar. Mais uma vez, perguntei se meu cabelo ia cair e ele me disse: vai cair, mas vai nascer de novo e bem bonito! Saímos da consulta em estado de choque, afinal eu havia colocado na cabeça que não faria quimioterapia. Entrei no carro e chorei muito. Um choro que me engasgava. Não conseguia parar até que não tinha mais lágrimas.

Chegamos em casa e dormimos muito, ficamos um dia fora do ar, quase sem comer. Entramos numa deprê e choramos demais. Até que a nossa cachorra subiu na cama e também começou a chorar. Acalmamos ela, nos olhamos e dissemos: chega! Chega dessa energia, vamos abrir a casa e deixar o sol entrar, limpar tudo, trocar os lençóis, mudar o foco. Vamos pensar no que vamos fazer, se vai cair o meu cabelo, vou fazer uma peruca. Então, fomos resolver isso.

Tive uma recuperação boa da cirurgia. E passei a me preocupar com a estética. Entrei em outra fase. Me indicaram uma pessoa que faz perucas do seu próprio cabelo. Fui lá e fiquei observando as pessoas entrando e saindo do salão. Perguntei se uma dessas pessoas que havia saído de lá estava usando peruca e ela me disse que todos que estavam lá não tinham cabelo. E fiquei muito tranquila com aquela pessoa querida e ótima profissional. Lá mesmo, fiz um corte curto pra aproveitar as mechas que iam ser usadas na minha peruca.

Eu usava meu cabelo crespo e comprido desde os meus 15 anos. Nunca tive coragem de cortá-lo, por puro apego. Todos elogiavam meus cachos pintados de ruivo. Mas, tive que ter coragem na marra. Depois de uns 15 dias da primeira quimio, o cabelo começou a cair. Cada vez que tomava banho, meu corpo ficava tomado pelos fios que caíam aos poucos. O jeito foi raspar o cabelo. Marquei o último horário com o meu cabeleireiro, com o salão já fechado, porque não queria que as pessoas me vissem sem cabelo. Quando ele terminou me disse: que ódio, você tá linda com a cabeça raspada, parece uma londrina, estilo total. E o meu marido concordou.

Além da situação de estar sem cabelo, a quimioterapia entristece e o remédio causa depressão, além de dores no estômago e falta de apetite. É muita coisa. É um momento que você precisa de gente todos os dias com você. Então, a gente percebe que tem amigos que você não sabia que eram tão amigos. E também vê que alguns amigos preferem não se envolver tanto. Parece um momento de seleção, mas também onde você cria amizades muito importantes.

Às vezes choro quando sinto algum sintoma da quimioterapia, parece que ela está me matando. Na verdade, ela está me curando, mas mesmo assim fico triste. Na primeira e segunda semanas após a quimio, não consigo fazer comida, não consigo comer. Preciso de alguém que cozinhe pra mim, de alguém que me ajude a limpar a minha casa, de alguém que converse comigo e que fale coisas alegres. Preciso de companhia. Porque se eu ficar sozinha, eu só choro, só penso que vou morrer, que vou ter câncer de novo, que não vou ter filhos. Comecei a dar muito valor pra tudo, pra qualquer ato que façam por mim. E algumas pessoas que eu não engolia, estou aprendendo a digerir. Ficou mais fácil relevar as coisas.

Na oncologia, ninguém percebe que estou indo fazer o tratamento. Escolho a dedo a roupa que vou usar, vou muito estilosa e bem maquiada pra não mostrar que estou doente. Não é fácil o processo da quimio, pelas reações e pela dor que é intensa nos primeiros quinze dias depois de cada sessão. E isso só aumenta ao longo do tratamento. Tanto que às vezes eu queria ir trabalhar e não conseguia. Eu achei que ia ser barbada, mas não é. Agora estou indo para a última quimioterapia e espero ir feliz. Depois, vou precisar fazer radioterapia e mais exames. Agora, comecei a me preocupar com a radio, já que o nódulo estava próximo ao coração. Mas, eles que se virem. Eles não vão queimar meu coração, estudam uma vida inteira pra isso.

A questão da beleza, acho que consegui levar bem. Me irrita usar a peruca, chega a uma certa hora que dói a cabeça. Mas eu acho que tem que usar, porque as pessoas te olham atravessado, elas não tem a cultura de achar as coisas normais. E isso me incomoda muito. Elas podem me olhar e me achar uma doente, acharem que porque estou com câncer, estou morrendo. Com a peruca ninguém me vê, sou mais uma no meio de todos. As pessoas te encaram por qualquer coisa, se cutucam e comentam umas pras outras. O lenço também denota que a pessoa está tratando um câncer e me incomoda as pessoas me julgarem por isso.

Mesmo sabendo que estou curada, ouço falar que o câncer pode voltar. Perguntei para o oncologista se ele está fazendo o melhor tratamento que ele pode fazer, se eu não precisava trocar de hospital ou ir para os Estados Unidos. Se fosse o caso, daria um jeito, mesmo sem saber como. Mas ele disse que não há necessidade. Perguntei se eu teria câncer de novo e ele me disse que eu poderia sair do consultório e ser atropelada por um caminhão. É uma incógnita. Esse é meu medo, porque quero viver muito, quero ter família. Tenho um casamento muito bom, adoro as pessoas à minha volta que são muito alegres e espiritualizadas. Eu quero viver isso.

O oncologista me liberou para voltar a trabalhar, já que meus exames tiveram bons resultados. Fiz isso antes do prazo do INSS, porque quero estar ativa. Se eu ficar em casa, vou ficar pensando bobagens, me achando doente e pensar que estou morrendo. Somente fico em casa os primeiros dias pós-quimio, porque são muito difíceis. Voltar a trabalhar me faz muito bem. E ainda me surpreendi porque já sabia que a empresa havia me apoiado, mas também ouvi palavras de apoio do próprio proprietário.

Mesmo o oncologista dizendo que não precisava, mudei a minha alimentação. Fui na nutricionista, porque precisava ficar forte. Fiquei com medo de ficar muito debilitada, magra. Eu não perdi 1kg! Não perdi meus pelos, não fiquei com a pele ressecada, só caiu uma parte da sobrancelha e dos cílios e acho que isso foi por causa da nutrição. Quero evitar ter câncer de novo. Descobri que o açúcar alimenta o câncer, então reduzi o açúcar. Isso está me trazendo uma segurança de eu não ter mais a doença. Comer orgânicos e fazer coisas em casa. Mas, um dia na semana me permito sair da dieta.

Eu não sei o motivo de eu ter tido câncer. Tem um teste pra saber se foi genético, mas não sei se vou fazer. Meu médico é contra, porque em caso positivo só deixa a pessoa nervosa. Daí vou querer tirar os seios e o útero. Na verdade, pode acontecer em qualquer órgão e meu médico perguntou se então eu tiraria o meu rim pra não ter câncer.

Com uma psicóloga, estou avaliando a questão emocional, principalmente tratar o meu medo de morrer, de ter novamente a doença, de não conseguir viver. Será que vou ter um futuro?

A presença dos pais, dos irmãos, dos sogros, dos meus cunhados e da vó do meu marido é muito importante. É um apoio sem explicação. Sinto como se eu tivesse duas famílias de sangue: a minha e a do meu marido. Eles me mimam, me ajudam. Tenho muita sorte de tê-los. Ter um bicho também é bom. Nessas horas a minha cachorra foi um dos meus suportes. Parece que ela sente o que eu sinto e está sempre em volta me protegendo. Esse amor dela me alivia as dores, me faz rir, me diverte. A sensação é de ter um anjinho comigo. Os estudos que mostram que os animais ajudam na recuperação de doentes parecem mesmo reais.

E agora estou na contagem regressiva de terminar a quimio, crescer o cabelo, fazer a radio e tirar da cabeça o medo. Enquanto eu estiver aqui, eu vou batalhar. Depois que tudo isso passar quero pensar em coisas que eu possa fazer pelos outros, isso vai me fazer bem e fazer bem para outras pessoas. A minha missão é ficar bem, ser feliz e fazer algo por alguém. Quem sabe um dia escrever um livro, ou fazer palestras. Talvez eu tenha tido câncer pra ter que fazer isso. Muita coisa mudou, não dou bola pra tanta frescura e os valores se intensificaram.

O objetivo de me expor é poder contar essa história e incentivar as mulheres a fazerem ecografia mamária e de útero, desde que começarem a ir ao ginecologista. Isso não é cultural. Não quero passar por cima de nenhum médico, ser anti-ética, afinal não sou a dona da verdade, mas existem muitos casos de câncer de mama e colo de útero em mulheres muito novas de 18, 19, vinte e poucos anos. Depois que eu tive a doença, descobri muitas pessoas que tem, que fizeram tratamento e que se curaram. E hoje o comum é fazer a mamografia depois dos 40 anos. A minha ginecologista solicitou a ecografia por eu já ter mais de 35 anos. Gostaria que se criasse a cultura de se fazer esse tipo de exame mais cedo.

Fiz o ensaio, porque acho que será uma lembrança boa. Mostrar que me senti sensual, mesmo durante o tratamento e sem cabelo. Acho isso muito importante para as mulheres.

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Anamaria Legori
Nua e Crua

Escritora no coletivo Nua e Crua: as mulheres e suas histórias | Consultora e Pesquisadora de Tendências |✉ analegori@gmail.com