“Não me aceito como sou, com meus seios pequenos. Uma das piores sensações é quando preciso tirar o sutiã. É horrível.”

Cristine

Anamaria Legori
Nua e Crua
11 min readApr 14, 2016

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Depoimento a Anamaria Legori
Fotos por Sâmara Correia
Edição Leandro Demori

Minha maior paranoia estética tem a ver com os meus seios. Na adolescência, quando é normal ganhar curvas, comecei a ficar cada vez mais magrinha, mirradinha, estranha. Eu emagreci demais. Ao invés de menstruar e ganhar peitos, tive amenorréia. Um problema típico de atletas que perdem muita gordura corporal. Nessa época, eu treinava vôlei de uma forma quase obsessiva: de 3 a 4 horas por dia. E quando deram fim ao time feminino da escola, entrei para o time masculino. Pelo biotipo da minha família, os meus seios deveriam ter um tamanho bacana. Mas, por causa desse problema, eles não cresceram. Enquanto as minhas colegas ganhavam corpo, eu não tinha curvas. Por isso, não era uma menina que despertava o interesse dos meninos.

Hoje tenho 25 anos e considero o meu corpo como o de uma menina de 15 ou 16. Sou mais musculosa do que as mulheres da minha idade, não tenho muito seio, quadril, ou cintura. Não sei se é porque estou acostumada com a mídia ou com as mulheres famosas, mas não sinto que o meu corpo seja tão feminino. Me comparo com as outras mulheres e de tempos em tempos mudo de paranoia. Nunca estive satisfeita com nenhuma imagem minha: ou me achava muito gordinha, ou muito magra, ou muito masculina, ou não tinha peitos, ou eu não era tão bonita quanto as outras mulheres. Hoje eu peso 64kg, mas com a mesma altura já pesei 48kg.

Aos 13 anos tive meu primeiro namorado. Até então, as pessoas me tiravam porque eu ainda não tinha beijado ninguém, porque eu era boca virgem. Mas, logo essas pessoas mudaram de ideia, porque eu fui a última menina a beijar na boca e a primeira a ter uma relação sexual. Ao mesmo tempo em que era lenta para algumas coisas, fiz outras muito precocemente. Então, essas mesmas meninas que riram da minha cara, começaram a me pedir conselhos sobre sexo.

Depois de 8 meses do meu primeiro namoro, meu pai faleceu. Minha mãe me deu a notícia através de uma ligação. Porque eu estava em Nova Petrópolis e o meu pai havia sido transferido para um hospital de Caxias do Sul. Eu deixei cair o telefone e praticamente desmaiei no colo do meu ex-namorado. Meu pai tinha 42 anos e quebrou o nariz jogando futebol. Por isso, teve que fazer uma cirurgia de correção do septo. Ele entrou em coma e faleceu no outro dia. Até hoje, não se sabe o que aconteceu, se desconfia de erro médico. Ele teve um choque anafilático. Algumas pessoas tem alergia à cirurgia geral. Mas, nunca fomos atrás disso, porque não faria diferença. Depois do meu pai falecer, recebi uma mensagem no celular: agora que seu pai está morto, vai ser muito mais fácil te pegar. Fiquei um pouco apavorada. Naquela época, minha preocupação não era mais ser bonita ou alguém gostar de mim, eu tinha outras coisas com as quais me preocupar dentro de casa. Foi tudo muito repentino.

Meu primeiro namoro foi bem complicado, porque era uma pessoa que me deixava muito pra baixo. Então, me tornei um pouco masculinizada e com um estilo agressivo. Além disso, depois do falecimento do meu pai, minha mãe entrou em depressão. Foi então que assumi o posto de homem da casa. Me sentia muito responsável por ela, já que eu me considerava mais forte e deixei pra sofrer depois. Fiz isso por espontânea vontade. Ninguém nunca me pediu pra fazer alguma coisa. Meus pais sempre trabalharam, minha mãe sempre foi independente, mas algumas contas da casa eram pagas pelo meu pai. Foi muito difícil. Antes, eu era a menininha do papai e me tornei o homem da casa. Esse choque me masculinizou. E o meu visual acabou acompanhando as mudanças que aconteceram. Fiquei mais agressiva, não dava muito papo para as pessoas, não era comunicativa. Gostava dos emos, do visual preto, gótico. E com o passar do tempo isso foi se intensificando.

Esse estilo, ao mesmo tempo que se tornou uma proteção, também me aprisionava. Parecia que eu tinha que manter uma imagem que as pessoas tinham de mim. E acho que isso me acompanha até hoje. Continuo usando coturnos, batom escuro, e hoje mesclo com coisas fofinhas. Algumas pessoas não chegavam perto de mim, porque tinham medo. O bullying na escola também contribuiu, porque como eu não era uma menina desejável eu achava mais interessante fazer parte do grupo dos meninos, onde eu me sentia enturmada, sem me sentir excluída. Realmente não me sentia fazendo parte do grupo das meninas. Desde a infância, isso foi uma tendência em mim. Acho que para os meninos passei a imagem de que eu não era um alvo, eu só queria fazer parte do grupo deles.

Até hoje sou assim, tenho poucas amizades femininas. Faço parte de um grupo de mulheres que meditam uma vez por semana. Dentro desse grupo sou conhecida por ser “moleque”. Quando me misturo com as mulheres, sempre sou a mais diferente. Sou sem frescuras. Então, me julgam como grosseira, insensível. E não é isso! Tenho meus dramas, mas lido com eles de forma diferente. Não sei se as meninas me excluíram ou se eu me excluí por não me sentir parecida com elas.

Não me aceito como sou, com meus seios pequenos. Uma das piores sensações do meu dia-a-dia é a hora que preciso tirar o sutiã. É horrível. Isso remete à minha infância e lembro que a menina mais desejada do colégio tinha peitões. Eu cresci com a imagem de que mulheres com peitos grandes são as que atraem os meninos. Então, isso nunca vai acontecer comigo. É uma ideia boba, mas que ficou enraizada. Um dos maiores sonhos da minha vida é o silicone, mas eu vivo um conflito em relação a isso. Já tive dinheiro para colocar silicone várias vezes, mas sempre acabei o destinando para outras coisas: me mudei pra Floripa, gastei dinheiro com viagens e festas, comprei um Fusca. Então, meu dilema é colocar o silicone e finalmente fazer as pazes com os meus seios ou ficar do jeito que eu sou. O que é muito difícil, porque eu não me gosto assim.

Mesmo com ajuda terapêutica, nunca consegui superar isso. Fiz terapia desde a infância e aos poucos me desliguei sozinha. Um dos psicólogos me disse que não tinha como me ajudar se eu não o deixasse fazer isso. Ele disse que eu queria resolver os meus problemas sozinha. Acho que a psicologia nunca me ajudou. Outros tratamentos como acupuntura e meditação me fazem sentir melhor, mas nada ainda me faz sentir satisfeita. Acho que a única coisa que me faria superar é a cirurgia, mas não entendo o porquê de eu me enrolar pra fazê-la. Se eu fizer a cirurgia, vou entrar em um padrão que nunca quis: daquelas mulheres que fazem de tudo pelo corpo, “passam a faca” para estar dentro de um padrão. Se não estivesse na moda ter peitos grandes e se os homens não idolatrassem tanto essa imagem, talvez eu não tivesse essa dúvida.

Eu nunca tive certeza se essa minha vontade está relacionada ao que penso ou ao que eu acho que os outros pensam de mim. O fato é que ter peitos pequenos me faz sentir menos mulher. Sempre me comparei com as ex-namoradas dos meus namorados e pensava que se elas tivessem mais peito que eu, eram também mais bonitas que eu. Me sinto como um homem com pênis pequeno. Como se isso atrapalhasse tudo na questão sexual pela questão da inibição e da auto-confiança. Os outros não são a questão, o problema é eu me olhar no espelho e me aceitar. É difícil eu ficar pelada em casa, porque não gosto de olhar meus peitos no espelho. Talvez eu tenha criado uma paranoia diante de uma coisa que não tem tanta importância.

Busco aceitação sempre que mudo meu visual. O estilo agressivo é como se fosse uma rebelião: estou me rebelando diante de uma sociedade e quero ser o mais diferente possível do padrão. Uso maquiagem escura, muita cor preta, acessórios de caveira, spikes (isso me revolta porque agora virou moda) e o cabelo curto, sendo que a maioria das mulheres tem apelo ao cabelo.

Mas, isso também é uma forma de me mostrar. É como se eu dissesse: não me importo com o que vocês pensam. Mas, no fundo, é claro que me importo. Hoje, com mais idade, consigo admitir isso. Antigamente, eu dizia que não me preocupava, mas se realmente não me preocupasse eu não ligaria para alguns comentários.

Como trabalho com moda e meus colegas diretos também, para eles o meu visual é irrelevante. Mas, a empresa onde trabalho é numa cidade muito pequena e colegas de outros setores me olham torto ou me olham fixamente quando passo pelo pátio da empresa, se cutucam e comentam entre si. As pessoas em geral me olham diferente e me apeguei a isso. Quando me visto de uma forma normal e as pessoas não me olham, eu acho estranho. É uma forma proposital de chocar e me acostumei a ter essa atenção dos outros. O fato é que não gosto que ninguém seja igual a mim.

Preferi buscar me diferenciar das outras pessoas. E fazer isso foi muito mais fácil que tentar me encaixar em um padrão, ou buscar ser alguém que eu não era. Eu não queria ser comparada às outras meninas. Foi uma forma de eu não ser mais bonita ou mais feia que outras mulheres. E sim que eu era diferente, da mesma forma que não tem como comparar um cachorro com um gato. Na adolescência, percebi que esse meu jeito assustava os meninos, mas pra mim era melhor assustar do que ouvir um não. Quando pintei pela primeira vez meu cabelo de vermelho, minha mãe achou o cúmulo, me censurou, mas depois de um tempo ela começou a achar legal. É recorrente minha mãe censurar algo no meu visual. Acho que ela pensa o que o meu pai iria achar se estivesse vivo. Vejo que às vezes ela julga pelo meu pai e não por ela. Se ele estivesse vivo, tenho certeza que iria me criticar.

Já fui muito censurada em casa por falar sobre sexo ou tatuagem. Minha mãe pede para eu não falar sobre essas coisas quando meu padrasto está presente, porque ele é muito religioso. Ele não concorda com meu visual, nem com algumas ideologias minhas. Nunca foi algo insuportável, mas já tive que me impor diversas vezes. Não faço isso pra desafiar a minha família, faço porque são coisas que eu gosto.

Tenho uma flor de lótus tatuada no braço, porque é uma flor que nasce em um lugar feio e se torna bonita. Também tenho um Pégasus que tem duas patas no chão e duas no ar, porque sempre tive dificuldade de manter os pés no chão. As outras duas patas estão no ar porque eu nunca quis ficar só no chão, sempre gostei de me sentir um pouco avoada. As asas, porque eu vivo voando por aí e os olhos com fogo por que tenho muita paixão pelas coisas que eu gosto.

Sempre quis ser única e por isso reluto contra o silicone. E como meu pai faleceu por causa de uma anestesia geral, acho que sempre tive medo de me submeter a isso. Se meu pai tivesse sobrevivido, ele seria um vegetal e tenho receio que isso aconteça comigo. E tem mais, minha mãe já teve vários nódulos na mama e o último retirado era um tumor maligno. Então, penso nas mulheres que tiveram câncer e precisaram retirar uma mama e comparo comigo que tenho seios pequenos mas saudáveis e fico ¨chorando as minhas pitangas”. Ao mesmo tempo que fico triste com essa imagem dos meus seios, eu me revolto com o porquê de tanto ódio.

Desde o ano passado estou me tratando com uma terapeuta que faz regressão e ela que conduz as meditações. Em uma das nossas consultas, falei sobre os meus peitos e chorei muito. Faço terapia há um ano e ainda não havia falado sobre isso, ela inclusive comentou esse fato porque viu que é grave. Ela me perguntou se eu sofri abuso sexual na infância. Eu não sei. Se isso aconteceu, acho que meu psicológico barrou o fato. Estou fazendo um tratamento para tentar achar essa resposta. É um trauma, um ódio muito grande, que ainda está sem explicação. Tenho esperança de entender esse processo, antes de partir para uma cirurgia. Quero entender o que se passa na minha cabeça, em relação aos meus seios. É muito complexo pra ser resolvido só com um bisturi. Tenho medo de resolver esse problema e então encasquetar com outro e começar a fazer uma cirurgia após a outra e nunca estar feliz. Tenho ideias feministas, acho que nosso corpo não foi feito para satisfazer aos homens e que tenho que estar num padrão por causa disso. As pessoas me admiram porque eu me visto como quero, mas não imaginam o quanto de dor está por trás disso. Hoje, já não me sinto mais tão comparada e vejo que isso não é culpa do outro e sim de mim mesmo. Ainda não superei totalmente, mas sei que o problema sou eu.

Na minha adolescência, tive relações com meninas. Acho que foi uma forma de buscar algo feminino que não fosse meu. Uma das poucas vezes que não fiquei envergonhada com meu corpo foi quando me relacionei com uma mulher. Talvez eu tenha buscado um certo acolhimento, uma sensação que eu não tinha. Muitas pessoas se envergonham dessas coisas. Aconteceu de forma bem natural, eu estava curiosa e foi um momento sem paranoias perante o meu corpo. Foi o único momento que pensei: não preciso ser diferente pra agradar. Mas, não sei se me considero bissexual. Não me sinto atraída por mulheres, mas aquela foi uma fase que me trouxe uma experiência bacana, como se estivesse lidando com alguém que tem as mesmas dúvidas que eu, o que me deixou confortável. O meu namorado atual sabe que tive essa fase e que nunca mais tive depois. A minha mãe achou natural, já que ela é professora e conhece muitos jovens, ela não teve preconceito. Acho que muitas pessoas tem curiosidade sobre relações homossexuais e eu fui um pouco além disso.

Já fiz trabalhos como modelo e as pessoas elogiam, mas nunca tive coragem de postar uma foto de biquíni. Tenho muita vergonha, muito medo do julgamento. E com as fotos sensuais eu quis confrontar esse medo. Acho que não preciso me sentir linda o tempo todo, existem outras coisas mais importantes que isso: ser inteligente, trabalhar, buscar os meus sonhos. Ser linda não é mais o objetivo da minha vida. O importante é eu me sentir bem comigo mesma, com os meus objetivos e me sentir íntegra. Fazer algo por mim e vencer os meus medos. Acho que nunca vou estar 100% feliz com o espelho. Acho que sempre vou ter algo que vou querer mudar e se eu não me sentir feliz com o que sou agora, aos 30, 40 anos isso só vai piorar. E essa ânsia de perseguir o que não tenho pode me machucar. Quero me sentir bem e pensar que se alguém me amar terá que ser como eu sou e foda-se.

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Anamaria Legori
Nua e Crua

Escritora no coletivo Nua e Crua: as mulheres e suas histórias | Consultora e Pesquisadora de Tendências |✉ analegori@gmail.com