“Sei que a maioria das mulheres não têm uma cicatriz como a minha, mas fazem de coisas banais a própria cicatriz.”

Sâmara Correia
Nua e Crua
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5 min readJun 11, 2015

Ana Paula

Depoimento a Anamaria Legori
Fotos por Sâmara Correia
Edição:
Leandro Demori

Eu tinha por volta de 10 anos quando fui com meus pais visitar os meus avós. Eles moravam no interior. Chegando lá, vi que o cachorro de uma das minhas tias estava pela casa. Ela tinha ido viajar e deixado o animal com eles.

Era um cachorro tranquilo, uma mistura de raças que não lembro bem, um vira-latas que nunca tinha atacado ninguém mas que sempre ficava um pouco agitado quando tinha criança por perto.

Certa hora, fui chamar o meu avô no quarto. Bati na porta. O cachorro ouviu as batidas, correu em minha direção e me atacou. Fui mordida no rosto.

Meus pais pegaram o carro e me levaram até o hospital da cidade. Os médicos fecharam o machucado e disseram que eu não podia ter febre — caso acontecesse, precisaria de tratamento. Uma semana depois eu estava queimando a 40 graus e tinha muito pus no machucado. Fomos para uma cidade maior, em busca de melhores cuidados. Lá disseram que os médicos fecharam demais o corte, o que causou uma infecção em parte dele. Era o motivo de tanta febre.

Fui tratada em uma clínica especializada no cuidado de crianças com lábio leporino. Foi muito bom porque eles já sabiam como lidar com essas coisas e me ajudaram muito, inclusive na orientação sentimental. Lembro até hoje dessa primeira ajuda, e também dos apoios seguintes. Logo que voltei à escola, as professoras avisaram as outras crianças que eu ia voltar diferente e que aquilo deveria ser visto como algo normal. Muita gente me deu força.

Por causa da recuperação deixei de fazer algumas coisas. O médico disse que eu não podia ficar muito tempo no sol e que precisava usar uma fita de silicone pra evitar piorar as marcas. Essa coisa da fita foi a pior parte. Eu sempre andava com um esparadrapo no rosto e aquilo incomodava. Suava. Era bem ruim. Então, por causa da recomendação dos médicos, deixei de me expôr ao sol.

Não me acho feia por causa da cicatriz. Depois de uns anos, minha mãe me convenceu a fazer uma cirurgia plástica apenas porque ela ficava muito vermelha quando eu pegava sol. Até hoje eu tenho que me cuidar, não posso ficar muito tempo ao ar livre. Mas isso foi a única coisa que deixei de fazer na vida em função dessa marca. Nunca cogitei não ir a algum lugar ou não estar com algum amigo por causa dela.

As pessoas têm curiosidade em saber o que aconteceu comigo e até hoje perguntam. Eu respondo numa boa. Recentemente, comecei num emprego novo e minha chefe também ficou curiosa em saber por que eu tenho essa cicatriz. Expliquei numa boa, como sempre faço.

Meu namorado fala que o que mais chama atenção em mim quando uma pessoa me vê pela primeira vez é a cicatriz; mas depois que me conhece, a marca é o que menos importa.

O meu conceito de beleza é estar bem consigo mesma e me sentir bem com minha própria aparência. Tanto que nem cogito fazer outra plástica. Não importa o que os outros pensam. Estou fora dos padrões de beleza e tudo bem. Acho uma perda de tempo correr atrás desses estereótipos — algumas pessoas perdem momentos maravilhosos da vida em função disso, pra agradar os outros. Em nome da magreza, por exemplo, muita gente deixa de sair por se achar fora de peso, não aproveita o mundo, não consome o que tem vontade simplesmente por fazer questão de estar dentro de um padrão qualquer. Está sempre de dieta e esquece o mais importante.

Acho que a gente tem que aproveitar a vida fazendo o que tem vontade de fazer, e não se limitar por padrões que não conseguimos cumprir. Pra mim isso é deixar de viver a sua vida e viver a partir do que os outros querem. Eu até acho bom eu estar fora desses padrões, porque não faço questão de ficar buscando alternativas para diminuir a minha cicatriz. Eu sou vaidosa, mas não ao extremo.

Eu me aceito completamente. Sei que a maioria das mulheres não têm uma cicatriz como a minha, mas fazem de coisas banais a própria cicatriz. O tipo tipo de cabelo, por exemplo. É algo que incomoda muitas mulheres. O cabelo liso prevalece no mundo da “beleza”, mas eu tenho cabelo cacheado. Só que eu adoro o meu cabelo do jeito que ele é! Não paro pra pensar em como os outros gostariam que ele fosse. Eu não me limito.

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Sâmara Correia
Nua e Crua

Fotógrafa no coletivo Nua e Crua: as mulheres e suas histórias