“Tive vários problemas para engravidar, procurei apoio e não encontrei. Nas livrarias, só estão as histórias de contos de fadas.”

Luciana

Anamaria Legori
Nua e Crua
11 min readJun 6, 2017

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Depoimento a Anamaria Legori
Fotos por Sâmara Correia
Edição Leandro Demori

Algumas mulheres tem um ou outro problema para engravidar. Eu tive todos. Um dos médicos disse que eu tinha um ¨X¨ nas costas: que eu era marcada para dar errado. É difícil ver algo parecido. O que mais me doía era descobrir a gravidez e achar que depois do positivo tudo seria perfeito. Hoje, as mulheres estão tendo cada vez mais problemas. E eu sou uma delas. Essas coisas estão acontecendo perto da gente, do nosso lado. Tenho certeza que não sou a única pessoa que você conhece que perdeu um bebê. E é triste ver que o assunto é pouco comentado. Tive vários problemas para engravidar, procurei apoio e não encontrei. Nas livrarias, só estão as histórias de contos de fadas. A minha ideia é escrever um livro, porque eu sou um caso raro.

Casei em 2007. Compramos casa, fomos nos acertando. Éramos novos e demos um tempo inicial para nós. A ideia era ajeitar a vida e mais tarde ter um filho. No final de 2009, parei de tomar pílula e logo engravidei depois de três meses de tentativas. Comprei livros, me emocionei com a notícia. Na ecografia de 8 semanas já se via que eu realmente estava grávida. Na próxima ecografia, já se via a bolsa gestacional que dá origem à placenta: essas coisas que vão se formando. Mais duas semanas e a eco mostrou que só havia a bolsa. Não tinha nada dentro dela. Era uma gestação anembrionada ou ovo cego, como chamam. Se formam todas as estruturas menos a que vai dar origem ao bebê. Esperei um tempo para o meu corpo expulsar essas estruturas, o que não aconteceu. Além de estar muito triste pela gravidez não ter vingado, ainda passei por uma curetagem: uma raspagem do colo do útero.

Seis ou sete meses depois, engravidei de novo. E a primeira coisa que eu queria saber era se o tal do ovo era ¨cego¨ ou não. Estava se formando a vesícula vitelínica e tudo corria bem. Com 9 ou 10 semanas, comecei a sangrar. Era como um fluxo forte de menstruação multiplicado por 5, uma coisa inexplicável. Fui ao banheiro e saíam placas de tecido e todos anexos que estavam se formando dentro de mim. Saiu muita coisa e precisei fazer outra curetagem para limpar o colo do útero.

Eu engravidava quase uma vez por ano, mas em seguida perdia. A terceira gravidez foi ectópica. Os exames mostravam que não tinha nada dentro do meu útero. Fiz um exame super detalhado e viram que o embrião estava nas minhas trompas. Eu tinha um sangramento leve, como se fosse um machucado. Era isso o que estava acontecendo: a trompa estava se rompendo, estava rasgando. E o bebê estava ali, se formando e se desenvolvendo perfeitamente. Só que ao invés de ele se fixar no útero, se fixou na trompa. E não tinha o que fazer. Não tinha como tirá-lo dali e colocá-lo no útero. E depois de me abrirem viram que não tinha como recuperar a minha trompa também. Então, o médico “passou o canivete” e tirou tudo, por videolaparoscopia.

Comecei a lidar com todo o nervosismo de querer engravidar — e dar certo — tendo apenas uma trompa. Teoricamente, se ovula um mês pelo ovário direito, outro mês pelo esquerdo. Ou seja, a cada dois meses eu tinha chance de engravidar. Aí, veio a quarta gravidez. Três a quatro anos depois que comecei a tentar engravidar. Exatamente como a terceira, os meus hormônios se multiplicavam, mas novamente não havia nada no meu útero. Eu virei uma expert em ecografias de tantas que fiz. E dessa vez, tinham manchas no meu útero que pareciam bolas de sagu. Como a gravidez não estava normal, resolveram fazer uma nova curetagem. Sabia-se que tinha algo se desenvolvendo, mas não se sabia o que era. Foi uma incerta total, ninguém descobriu o que realmente tinha acontecido. Eu fiquei puta. Porque puta que pariu, dava tudo errado!

Apertei o ¨foda-se¨ e sugeri para o meu marido fazermos fertilização. Afinal, eu só tinha uma trompa e seria a união do melhor óvulo com o melhor espermatozóide. Não tinha como dar errado. Só que custava em torno de 30 mil reais. Na consulta, eu não dizia uma sílaba antes de começar a chorar. O médico me aconselhou a não fazer a fertilização, porque eu era nova e não tinha problemas, mas viu que eu estava desesperada. Como eu não tinha muita grana, ele me propôs estimular a ovulação e doar a metade dos meus óvulos. Em contrapartida, a pessoa que usasse meus óvulos pagaria o meu tratamento. Eu topei.

Mas, e se desse certo pra ela e não pra mim? Depois de cinco dias, o óvulo fecundado foi implantado. E mais uns dias depois vimos o embrião se desenvolvendo. Era a Alice. Uma célula absolutamente perfeita. Nessa gravidez, comecei a usar injeções de enoxoparina para afinar o sangue que custavam 20 reais por dia. Porque eu tenho esse problema também, meu sangue é ¨grosso¨. E pode ter sido esse o motivo de todas as outras gestações não terem dado certo. O embrião desce, mas não chega no lugar certo, ele fica na trompa. Estava tudo perfeito, inclusive eu tinha muitos enjôos. Parecia tudo absolutamente normal.

No dia em que foram montar o quarto da Alice na nossa casa, eu estava na metade da gravidez. Resolvi deitar no sofá, estava com uma cólica desgraçada. Eram pontadas absurdas que eu jamais tinha sentido. Cólicas são normais na gravidez, mas essas doíam muito. Liguei para o médico que recomendou que eu fosse para o hospital. Moro muito longe e fui dirigindo sozinha, passando muito mal. Chegando lá, descobri que o que sentia não eram cólicas, eram contrações.

Eu estava em pleno trabalho de parto aos 5 meses de gestação. O colo do útero estava se abrindo e tinha 1 dedo de distância entre a cabeça da Alice e o exterior. E como ela já estava muito para frente, não tinha mais como costurar o útero para segurá-la dentro dele. Sem falar que poderia ter uma infecção e morrermos nós duas. Não tinha mais o que fazer. O ideal era que eu conseguisse segurá-la por mais 3 ou 4 semanas. Ela nasceria pequenininha e ficaria na incubadora. Mas, como ela não estava completamente formada, eles pararam de me dar o remédio para tentar segurá-la.

Foi então que ela veio de parto normal. Mas nasceu sem vida. Quase desmaiei de dor depois do nascimento. Sentia a mão do meu marido segurando a minha, quando o ouvi dizer para o médico: “posso ver minha filha, doutor?” Pensei: o que ele está dizendo? E falei: doutor, se ele quer ver deixa ele ver, mas em outro lugar, não me mostra. E não vi. Somente o meu marido viu. Não quero pensar em como ela era, qual era a sua fisionomia. Já pensei em perguntar para o Diego, mas nunca o fiz. Não quis gravar essa imagem, porque eu jamais iria esquecer. Às vezes eu me arrependo, mas acho que tomei a decisão certa. Ia ser um martírio pra mim. A lembrança do parto já me basta. E rezei para ela ter menos de 500g, porque com esse peso ou mais é preciso fazer velório e enterro. Menos de 500g é considerado aborto tardio e não um parto prematuro. Se fosse o caso de ter enterro, eu não sei se conseguiria ir. E não saberia explicar para as pessoas como não fui ao enterro da minha filha. Existiria um lugar com o nome dela escrito. Meu pai e minha avó morreram e nunca fui visitá-los. E qual o sentido de ir?

Seis meses depois do aborto, tive o positivo de mais uma gravidez. Engravidei de forma natural, sem fertilização. Essa tinha que dar certo! Fiz exames para acompanhar o desenvolvimento e estava tudo bem. Sendo assim, o médico costurou o meu útero. Costurou mesmo: tenho a linha guardada. Devido a tantas curetagens meu colo do útero ficou “bobo”, completamente flácido e foi por isso que tive o último aborto. Não se fala muito, mas hoje celebridades também estão fazendo isso. Acompanhei a gravidez com ecografias uma vez por semana, onde o normal é uma vez por mês. E dessa vez deu tudo certo, descobrimos o mapa da mina. Era a Aurora que estava a caminho! A grande descoberta foi que eu nunca tive problema para engravidar, mas sim para manter a gravidez. Só fiz fertilização no passado porque eu estava esgotada.

Estava super calma durante a gravidez da Aurora, mas no final fui fazer uma revisão e o médico achou melhor o parto acontecer um dia antes do previsto. E toda aquela tensão e angústia de mais uma gravidez não dar certo, voltou. Tentei manter a calma, mas obviamente não dormi direito na noite pré-nascimento. Antes da anestesia do parto eu tremia feito “vara verde”, parecia que eu estava pelada na neve de tanta tremedeira. Eu tinha muito medo da anestesia dar errado, mas meu marido estava ali comigo me apoiando o tempo todo que era permitido.

Antes da Aurora nascer, a anestesista me perguntou se eu queria que ela me levantasse para vê-la nascendo. Eu jamais tinha visto aquilo, nunca soube de nenhum caso desses. A anestesista abaixou o pano e me levantou com todo o meu peso de “saco de batata” por estar anestesiada e tendo a musculatura cortada naquele instante. E eu vi a minha filha saindo de dentro de mim! E o pai, o Diego, viu tudo de frente porque o médico disse pra ele ficar ali e não do meu lado com a bunda colada na cadeira, o que também não é usual.

Essa cena foi um divisor de águas na minha vida. Se eu morresse naquele instante, eu morreria feliz. Eu havia chegado no meu ponto, no meu objetivo, fiz o meu gol. Eu nasci para aquele momento. E eu jamais havia imaginado vê-la no exato segundo que ela estivesse saindo da minha barriga. Ouvi o choro dela vindo nos braços da pediatra, mas quando eu a abracei, ela parou de chorar. Ela estava com aqueles olhos de jabuticaba estalados, olhando para mim. E pensei novamente: agora sim eu posso morrer, porque eu olhei nos olhos dela. E assim também com as outras coisas, quando ela deu o primeiro sorriso, quando engatinhou pela primeira vez, eu sempre pensava: agora posso morrer.

Eu tentei de toda essa história que aconteceu ver em cada objetivo alcançado uma vitória, porque em diversos momentos eu achei que isso não fosse acontecer. Nem de vê-la nascendo, nem de olhar nos olhos dela, nem de vê-la caminhando pela primeira vez. Isso era muito distante pra mim, eu achava que comigo não seria possível.

Fiz uma tatuagem uns anos atrás. Mas considero a minha primeira “tatuagem” a cicatriz da cesárea. Eu tenho muito orgulho dela. Se ela fosse maior, se aparecesse para fora do biquíni eu ia mostrar para todo mundo na praia. Ia ter vergonha do meu “pneu” na barriga, mas não da minha cicatriz. As duas cicatrizes do meu corpo são pela Aurora: uma pela tentativa de tê-la e a outra pela vinda dela. A cicatriz da cesárea é o símbolo da minha vitória.

Não sei se meu marido vai gostar do que vou dizer agora, mas faz muito sentido pra mim falar sobre isso: não consegui mais ter relações sexuais com ele desde que a Aurora nasceu, um ano e nove meses atrás. Por pelo menos 5 anos da minha vida eu fazia sexo com hora marcada, porque eu estava ovulando. Anotava na agenda informações todos os dias, durante anos. Antes de ter a Aurora, eu media a temperatura do corpo, além de ter um aplicativo no celular para saber quando estava ovulando. Comprei teste de farmácia para saber a ovulação e agendava o sexo conforme esses recursos. E quando sabia que estava ovulando pelo lado que eu não tinha trompa, eu nem transava. Parece que o sexo me faz lembrar daquele tempo, daquelas coisas. E a pergunta que fica hoje é essa: por que estou fazendo sexo se não quero engravidar? Esse problema está em mim, um efeito colateral dessa história. Amo meu marido, acho ele lindo e às vezes não rola, porque meu cérebro não deixa rolar. É uma paranóia. Eu conheço muita gente que o casamento não aguentou essas coisas. Fica o sexo pela recompensa, pela gravidez pura e simplesmente. Mas, ele não me largou ainda e, se caso aconteça, espero que não seja por isso.

Passando por tudo isso, cheguei ao universo da maternidade. E ela gera uma culpa inexplicável. As escolhas fazem me sentir culpada, parece que estou sempre fazendo a coisa errada. E com toda essa bagagem do passado, eu me sinto mais culpada ainda. Eu reclamo da Aurora como toda mãe: reclamo quando faz birra, quando não quer comer a janta perfeita que fiz com todos os grupos alimentares do “caralho a quatro”. Mas, tem pessoas que acham que eu não tenho o direito de reclamar, porque eu lutei muito para tê-la. “Não era isso que você queria”? “Por que está reclamando agora?” As pessoas enxergam a minha filha como um troféu. E elas não fazem ideia do impacto que uma frase mal dita em uma hora ruim pode acarretar na vida de alguém.

E realmente eu penso: será que estou reclamando de “barriga cheia”? Eu tenho esse direito? Vejo na política, no futebol, no momento que estamos vivendo hoje no Brasil, uma falta de empatia das pessoas. E na maternidade isso não é diferente. Hoje, convivo com muitas mães e com coisas chatas como ouvir que o filho delas é melhor e o que você faz é errado. E acho que tenho o direito de criar a minha filha como eu bem entender, como eu acho que é melhor para ela, para mim e para o meu marido. Atualmente, eu “cago e ando” para a opinião dos outros. Não é porque eu demorei tanto tempo para realizar o sonho de ter um filho que eu não posso me sentir exausta, chorar de cansaço porque ela tossiu a noite inteira e velei o sono dela. Eu amo ela com toda a minha força. Não a amo mais por causa de toda a minha história, nem amo mais que outra mãe. Ela é o coração que bate fora do meu peito. Quando acontece algo para ela, é como se eu não tivesse ar pra respirar. Ela espirra e eu já começo a passar mal, fico triste e com medo que ela fique doente.

Eu sempre fui muito realista, mas não pessimista. Eu tendo a lidar com o que eu tenho e o que eu conseguir a mais vai ser uma felicidade que eu vou alcançar, vai ser lucro. Não gosto de fantasiar coisas incertas para depois eu despencar. Principalmente com o meu objetivo de vida que era ter um filho.

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Anamaria Legori
Nua e Crua

Escritora no coletivo Nua e Crua: as mulheres e suas histórias | Consultora e Pesquisadora de Tendências |✉ analegori@gmail.com