“Um dia antes do meu namorado morrer a gente teve uma noite incrível. Foi nossa despedida.”

Madhava

Anamaria Legori
Nua e Crua
14 min readJun 10, 2016

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Depoimento a Anamaria Legori
Fotos por Sâmara Correia
Edição Leandro Demori

Depois de uma infância solitária e com problemas de convivência eu me tornei uma pessoa muito carente. Aos 17 anos as angústias pessoais e familiares estavam no auge e haviam desencadeado uma depressão. Foi quando o Dani entrou na minha vida.

Eu fui muito rejeitada antes de conhecer ele.

Meus pais eram da religião Hare Krishna, fanáticos. Por consequência tive uma infância mergulhada dentro desse fanatismo. Era um mundo completamente fora da realidade brasileira, com tradições e costumes nada a ver com a nossa normalidade: eu não podia comer nada do que as minhas colegas comiam porque, pra começar, eu era vegetariana. Mas meus pais tinham um lance fanático além do vegetarianismo: eles não me deixavam comer nada que fosse feito por pessoas estranhas ao nosso círculo porque eu poderia absorver o karma de quem tivesse cozinhado o alimento. Então eu só podia comer coisas feitas pelos meus pais ou por pessoas em que eles confiassem. O meu sonho de infância era experimentar chiclete. Era um sonho simples, mas era um sonho meu. Também sonhava que um dia abriria a janela de um avião em pleno vôo, comeria um pedaço de nuvem e saberia como seria o gosto de algodão-doce.

As restrições alimentares e sociais foram potencializadas por uma doença que atrasa a idade dos meus ossos. Ela faz com que o meu corpo não corresponda à minha idade em anos vividos. Quando eu era criança isso foi muito pesado. Hoje eu não me importo, mas aos seis anos eu parecia uma criança de três ou quatro anos, era desproporcional. Aos quatorze eu parecia uma menina de onze ou doze, justo na pré-adolescência, quando a gente mais quer ser incluído. Acabei sofrendo bullying e chorei muito. As minhas amigas eram meninas “mocinhas” e eu aparentava ser uma criança. Eu parecia a irmãzinha mais nova das minhas colegas. Ninguém queria andar comigo, as pessoas se envergonhavam de mim. Eu era a estranha que não podia comer nada, que não podia viajar com ninguém por causa do lance da comida, que ficava pregando uma religião idiota na sala de aula e que tinha um nome esquisito. Fui completamente excluída.

Aos 17 anos, além de problemas familiares e pessoais, eu me sentia abandonada. Entrei em depressão profunda e precisei de acompanhamento psicológico psiquiátrico. Tive crise de identidade, carência afetiva, fiz tratamento de um ano com antidepressivos. Tive dois surtos e nunca mais na vida quero tê-los de novo.

Fazia pouco tempo que eu conhecia o Dani mas ele já estava lá, me ajudando. Um dos meus surtos foi com ele, porque me senti abandonada. Era o começo do namoro. Ele foi viajar e achei que ele fosse me levar junto, mas ele não me levou. Então o complexo de abandono veio à tona. Durante o surto eu só queria que aquilo parasse, mas não parava. Me enchi de socos pra tentar desmaiar, mas só consegui ficar toda roxa. Eu tentava sair daquele transe e não conseguia. Pensei em me atirar da sacada pra bater a cabeça no chão e parar com tudo. Eu queria que parasse, eu estava me sentindo péssima. Todos os sentimentos horríveis estavam acontecendo naquele momento e eu não estava pensando nas consequências.

Mas ouvi a voz da razão que me dizia que eu saberia o que iria acontecer se eu me atirasse da sacada. Então, não fiz. O Dani me perdoou mesmo eu tendo falado coisas horríveis pra ele. Outra pessoa qualquer teria me mandado à merda — ele ficou muito bravo, claro, não conseguia olhar na minha cara, mas me deu a mão e me ajudou. Ele veio numa fase muito ruim da minha vida e me deu muita força. Acho que nos completávamos nessas coisas difíceis porque ele também teve fases horríveis, coisas das quais ele se envergonhava muito, por isso não quero falar o que aconteceu, em respeito à sua memória. Foram os maiores pesadelos da vida dele e eu estava ao seu lado, não desisti dele assim como ele não desistiu de mim.

Ficamos nove anos juntos. A gente se ajudou muito, foi uma troca. Ele era uma pessoa calma e essa é uma das coisas que mais admiro nele, porque talvez ele tivesse motivos pra ser uma pessoa completamente revoltada, que mandaria a vida à merda e que iria fazer coisas ruins por aí. Ele teve uma adolescência e uma infância complicadíssimas que geraram consequências terríveis. Ele já se machucou muito, sofreu acidentes. Quando criança, foi atropelado, ficou cinco dias em coma e quebrou vários ossos. Teve uma infância pobre, tinha uma família muito simples e sofreu bullying na escola porque era muito quieto. Além disso, várias pessoas fizeram muito mal à ele, um mal tão grande que ninguém conseguiria mensurar.

Quando tinha dezessete anos ele entrou em um relacionamento que destruiu o coração dele. Por isso, quando eu o conheci, ele não acreditava no amor. Tinha sido muito ferido. Mas comecei a ajudá-lo. A diferença entre alguns relacionamentos e o nosso é que muitas vezes as pessoas se dão as mãos e um ergue mais o outro, um é mais forte. Nós nos demos as mãos e nos somamos de igual pra igual. Eu entrei na vida dele no momento mais difícil e ele entrou na minha no meu momento mais difícil. Nos demos força e nos abraçamos pra curar isso.

Nos abrimos por inteiro: contamos os nossos piores medos, os nossos maiores segredos. Ele sabia tudo de mim e acredito que eu sabia tudo sobre ele. Até mesmo histórias que gerassem ciúmes eu queria ouvir. Eu queria a verdade. Eu queria que doesse, porque a dor fez a gente ficar junto.

Se a dor é ruim então porque ela me trouxe uma coisa tão boa?
A dor é boa, então vamos senti-la até ela calejar e parar.

A gente fazia doer até a gente rir e nunca mais doer. Eu nunca mais tive depressão, a gente melhorou muito juntos. Ele tinha valores, coisas dele que me ensinaram muito. Ele é uma pessoa boa. E mesmo tendo pessoas que fizeram muito mal à ele, ele não tinha nenhum inimigo e não guardava rancor. Ele falava que eu tinha que perdoar as pessoas que nos fizeram mal. Muitas pessoas foram muito ruins pro nosso relacionamento, e mesmo assim ele me falava que eu tinha que cumprimentar essas pessoas, não podia ter ódio nem virar a cara pra elas. Ele as amava.

E perdoou todas elas. Esse é o legado que ele deixou na minha vida, uma lição de amor tão grande… principalmente relacionada a amar o próximo e não esperar nada em troca. Algumas pessoas deram motivo pra ele odiá-las, mas ele nunca as odiou. E o que me fascinava nele é que ele conquistava todos, era impressionante.

No velório do Dani colegas de todos os empregos que ele teve apareceram e contaram alguma história bonita de como ele era bom. E eu tenho certeza de que não era pra me consolar. Os colegas da faculdade e os amigos falavam dele com carinho. No velório, os colegas disseram que ele era único, que ele levava bolo pra eles — bolo que eu fazia. O Dani dizia: “eu não preciso comer esse bolo inteiro, eu vou dar para os meus colegas”. Isso era simbólico da boa vontade que ele tinha. Ele me ensinou muitas coisas sobre aprender a amar. Ele trabalhou por dez anos em uma marcenaria e o chefe dele fez muitas coisas por ele, dava pra ver como gostava do Dani. Ele queria trocar de emprego e o chefe não o deixava sair. Foi lá que o Dani fez pra mim um presente muito lindo.

Ele queria me dar um algo mas sabia que eu não gostava de coisas prontas, não me importava com bens materiais. Eu sempre dizia pra ele não me dar um buquê de flores, mas um buquê de rúcula, para fazermos uma salada e comermos juntos. Então ele passou meses esculpindo uma caixa e um pingente de madeira.

O Dani foi o meu primeiro namorado e foi com ele que tive a minha primeira relação sexual. E um sinal da evolução dele e do quanto ele me amava incondicionalmente era quando ele me falava que não queria ser o único homem da minha vida. Ele sempre me dizia: “quero que você viva a sua vida. Não quero que a curiosidade te atormente. Quero que você experimente as coisas, quero que você seja feliz”. Uma parte dele adorava ser o único, mas ele tinha um amor tão grande que queria que eu tivesse outras experiências. Ele queria mesmo.

Um dia antes da morte dele a gente teve uma noite incrível e eu tenho certeza que foi uma despedida. À noite a gente sempre tomava vinho ou cerveja e conversávamos. E fizemos isso também na nossa última noite juntos, além de falarmos besteiras e nos amarmos muito. Falamos sobre algumas coisas que erramos entre nós — sempre nos contamos as coisas feias que fizemos um pro outro. Eu perguntei pra ele se essas coisas ainda o machucavam e ele disse que tinha perdoado. Isso foi uma coisa boa pra minha alma porque eu estava planejando sair do Brasil e passar um tempo na Itália. Comprei uma passagem pra ficar dois meses e não sabia bem o que esperar dessa viagem. A ideia era fazer uma viagem de estudos, talvez não muito longa, mas de todo modo ficaríamos afastados.

O Dani morreu de manhã cedo por causa de um acidente de trabalho. Eu ainda estava dormindo. Naquela mesma madrugada uma das últimas coisas que ele me falou foi: “eu sei que o seu maior sonho é morar fora do país. Vamos terminar o namoro quando você viajar, pra você viver a sua vida. Eu não quero que a metade do seu coração fique no Brasil, não quero ser o motivo que te faça voltar. Vai, vive o seu sonho, não pensa em mim, não volta por minha causa, mas me manda fotos. Conhece outras pessoas, faz aquelas coisas que você não conseguiu fazer porque começou a namorar muito nova. Vai pra putaria!”, e nós rimos. Quer amor mais incondicional do que esse?

Não sei de onde ele veio, quem ele era na vida passada. Mas a morte dele me gerou mais amor ainda. Mesmo morto ele continua cuidando de mim. Foi muito doloroso, eu emagreci oito quilos em um mês, mas falei pra mim mesma que vou fazer o que ele me disse pra fazer. Onde ele estiver, eu quero que ele sinta o meu amor e não a minha tristeza, porque é isso que ele faria por mim. Porque se eu estivesse sofrendo ele diria “te liga, vai se fuder!”. Ele iria me xingar com certeza.

Ele aprendeu que amar o próximo faz com que a gente se ame muito. E muitas coisas aconteceram depois que ele morreu.

Meu avô chorou quando o Dani morreu. Ele sempre teve uma personalidade muito forte e complicada. É ciumento comigo, uma pessoa difícil. E de alguma forma mágica, extraterrestre, o Dani o conquistou. Em 25 anos eu nunca tinha visto meu avô derramar uma lágrima. E a reação dele, ao receber a notícia que o Dani havia falecido, foi chorar.

Ele conquistou meus avós e meus pais. Meu pai disse pra mim que ele não imaginava que ele próprio amava tanto o Dani. A morte fez com que as pessoas que estavam envolvidas com ele mudassem e pensassem na vida, de alguma forma. Meu pai começou a reavaliar as coisas. Disse que aprendeu muito com o Dani, disse que não devemos esperar que nosso aprendizado se deve pela vinda de um semi-deus numa nuvem mágica pra dizer o que temos que fazer. E ele aprendeu que os grandes mestres da nossa vida são as pessoas que estão do nosso lado.

A distância entre mim e meus pais por causa de tudo o que aconteceu na minha infância e adolescência se encurtou. Quando o Dani faleceu nós fizemos as pazes, nos reaproximamos, eu comecei a gostar deles de novo, eles deram o braço a torcer. Eles mudaram de verdade.

Mesmo depois de adulta nós estávamos muito desligados afetivamente. Brigávamos muito, eu ainda me sentia sozinha, não sabia lidar com eles e eles comigo. E isso me machucava. Eu invejava as minhas colegas quando a mãe delas ligava e elas as chamavam de “mamis” e se falavam como amigas. Tinha uma inveja tão grande que eu chorava por causa disso. Eu também queria ter com a minha mãe uma relação tão boa quanto elas. E eu não conseguia ter esse tipo de relação com a minha mãe ou com o meu pai. Era como se a gente tivesse brigado e não conseguisse se reconciliar porque muitas coisas aconteceram na minha infância e na minha adolescência que levaram pra esse caminho. Era uma das piores coisas pra minha alma.

Depois da tragédia que foi a perda do Dani a gente fez uma coisa que eu invejava nos outros — e que achava que nunca ia acontecer comigo: fizemos uma viagem em família, pouco mais de um mês depois do enterro. Fomos pra Ushuaia, na Patagônia. Fomos realizar um dos sonhos do meu pai que era brincar na neve comigo. Ele confessou que era um sonho dele e que aqui na nossa cidade nunca havia nevado o suficiente pra brincarmos na neve. E ao mesmo tempo nunca tinha passado pela cabeça dele viajar pra fazermos isso. O sonho da minha mãe também era viajar em família. Não sei por que eles nunca fizeram isso. Então, realizamos o sonho da minha mãe, do meu pai e o meu, que era viajar com eles . E quem nos deu isso foi o Dani.

Meu outro sonho era morar fora do Brasil, então realizei os dois e vi mais uma vez que a dor serve pras coisas boas. Eu não sinto como dor. Eu fiquei muito triste por ter que acontecer dessa forma, mas o Dani transmitia tanto amor, mas tanto amor que até no momento mais difícil ele conseguiu continuar transmitindo amor pra gente. E não só pra nós, ele fez muitas outras coisas boas pros outros também, e tem coisas que ele ainda está fazendo. Meu avô, que não queria que eu fosse morar fora, passou a aceitar e a entender que dinheiro não é tudo na vida. Está tratando a minha avó melhor também. Uma pessoa de 85 anos aprendeu coisas novas por causa do Dani.

E o amor dele está se espalhando. Eu conto a história dele para pessoas que nem o conheceram e a vida delas muda. Eu conheci duas pessoas que me ligaram chorando e pediram que se um dia eu falasse com o Dani era pra eu agradecer a ele. Uma pessoa estava com uma dificuldade muito grande de amar de novo por ter sofrido em um relacionamento e me disse que deu a volta por cima depois de ouvir minha história. A segunda pessoa me disse que ama o Dani mesmo sem conhecê-lo e pediu se eu ficaria chateada se ela fizesse uma tatuagem em homenagem a ele.

Durante a viagem à Ushuaia decidi fazer uma tatuagem. Lá eu me dei conta de quantas coisas boas estavam acontecendo e não podia deixar essa lição de amor passar em branco. Isso tudo não poderia ser em vão. Nunca tinha feito uma tatuagem, nunca tive vontade de ser uma pessoa tatuada. Mas lá tive certeza absoluta de fazer uma tatuagem, não pra lembrar dele, mas pra lembrar da lição de amor que ele me ensinou. Pra que eu nunca esqueça e nunca pare de continuar evoluindo. Se ele veio pra esse mundo, ele veio pra isso, pra ensinar uma lição de amor, e é isso que eu preciso entender. E vou levar adiante enquanto eu estiver viva.

O símbolo que eu tatuei se chama “nó do amor infinito”, ele forma vários corações. Tatuei no dedo anelar que é ligado ao nosso coração, além de ser o dedo da aliança de compromisso. Não importa quem, não importa como: o amor precisa ser incondicional e não pode ter interesse. Ele tem que existir e só. Ele nos transforma em uma pessoa melhor. Eu percebi o quanto eu sou uma pessoa melhor por causa do amor que ele me deu. Se ele não tivesse me ensinado a amar eu não sei que tipo de pessoa eu seria hoje. Eu sei que eu sou uma pessoa melhor por causa disso e sei que muitas pessoas também estão se tornando melhores por causa da lição dele.

Faço questão que as pessoas se beneficiem com as coisas que ele trouxe pro mundo. Eu acredito nessa missão dele. Ele foi uma das pessoas mais incríveis que eu conheci embora ele não acreditasse nisso, porque tinha uma auto-estima ferrada. Ele não imaginaria que tanta gente choraria pela morte dele, achava que a maioria das pessoas não gostavam dele e se questionava se era uma pessoa legal, mesmo sendo alguém que ajudava todo mundo.

O Dani trabalhava pra caralho, fazia oito cadeiras na faculdade e ainda tinha um compromisso comigo, tinha família e tinha os problemas dele. E nunca vi o Dani reclamar. Nem de dor, nem de cansaço, mesmo tendo passado por coisas muito difíceis. Às vezes a gente se atém a coisas tão pequenas e não vemos as coisas grandes da nossa vida. Ele entendia que era desperdício de tempo ficar reclamando. Ele me xingava porque eu reclamava demais, achava que a gente tinha que aceitar as coisas.

É simbólico que o Dani tenha morrido trabalhando. As pessoas o julgavam por causa do passado, de uma adolescência conturbada, mas ele vivia a vida dele, trabalhava, era honesto, muito honesto. Ele se doava muito pra mãe dele e fazia tudo que eu precisava, mesmo cheio de coisas pra fazer: se quebrasse o meu óculos ele levava pra consertar, mesmo sem tempo. Coisa bobas, mas que mostram como ele era; me buscava, me levava, fazia tudo. Fazia porque gostava de mim, queria fazer por mim. E ele era assim com todos. Com o cachorro, com a mãe, com os chefes, com os irmãos.

O velório dele, por mais que tenha sido um momento triste, foi o velório mais bonito que já vi. Porque ele morreu em paz e as pessoas estavam lá por amor. Não me interessava o corpo dele ali, ele já tinha se ido. Mas ficaram as pessoas que ele amava. Elas estavam lá. E eram esses abraços que eu precisava receber e eram essas pessoas que precisavam do meu abraço. Vou sempre levar um pedaço do Dani comigo. Ele nunca vai sair de mim. Não interessa se eu tiver outra pessoa, ou se tiver filhos, ele vai estar pra sempre na minha vida. Ele participou da minha vida durante nove anos e eu sei que sou a mais sortuda do universo porque tive a melhor pessoa do mundo durante nove anos comigo. Uma pessoa que me amou, me respeitou, me ensinou e me fez alguém melhor. Ele pode ter morrido, mas eu o encontrei e fui muito feliz. E isso não vai mudar nunca. Ninguém vai tirar isso de mim. E eu vou amá-lo pra vida toda.

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Anamaria Legori
Nua e Crua

Escritora no coletivo Nua e Crua: as mulheres e suas histórias | Consultora e Pesquisadora de Tendências |✉ analegori@gmail.com