Algumas reflexões sobre o papel da mulher a propósito do filme “A filha perdida”

Margarita Olivera
NuEFem
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5 min readJan 10, 2022

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Autora: Margarita Olivera (NuEFem/IE/UFRJ)

A Filha Perdida (2021)

Recentemente a Netflix lançou o filme “A filha perdida” (The lost daughter) da diretora e roteirista Maggie Gyllenhaal, inspirado no livro homônimo da escritora Elena Ferrante. É um filme interessante, com boas atuações e que pode gerar algumas reflexões sobre diferentes aspectos da maternidade na nossa sociedade. Tentando não dar spoiler, o filme narra a história da Leda (Olivia Colman), uma mulher intelectual, professora e, como ela se autodefine, mãe “desnaturada” de duas filhas já adultas. Durante as suas férias na Grécia e devido ao convívio forçado e conflitivo com uma família numerosa e barulhenta, onde os personagens femininos também têm um lugar de destaque, ela começa a lembrar do seu passado e os conflitos associados com a própria maternidade.

O drama gira em torno do lugar que ocupam as mulheres em uma sociedade patriarcal, enquanto retrata questões como a resignação, a solidão e a culpa. Nós mulheres, somos chamadas a cumprir o nosso papel de mães recatadas, altruístas, abnegadas e submissas, colocando sempre a vida e as necessidades dos outros, sejam filhos ou maridos (porque as mulheres nessa sociedade além de mães sempre devem ser heterossexuais), acima das nossas próprias necessidades, desejos e prazeres. Em caso de não cumprirmos com esse mandato ou se desviarmos do caminho demarcado, o peso do juízo social cairia acima de nós, se materializando, inclusive, através do próprio sentimento de culpa por não nos comportarmos como é esperado. Culpa que pode nos levar até o adoecimento e a criar comportamentos que possam parecer por momentos sombrios ou com traços de loucura, como bem retratam as ações da nossa protagonista.

Mas, indo além do filme, por que a sociedade está tão obcecada com a nossa maternidade e não com outros papéis sociais?

Para o sistema capitalista patriarcal as mulheres possuem um papel fundamental como garantes da reprodução e da força de trabalho. Sem nós, a roda não gira. “O processo de realização e a ampliação do capital precisa tanto da reprodução da vida dos trabalhadores como de um fluxo constante de novos trabalhadores. Essa reprodução é apropriada e controlada pelo sistema. Nesse sentido, a família nuclear é a alavanca do modo de produção capitalista.” (Olivera et al, 2021, p. 37). As mulheres são confinadas à esfera da reprodução, colocadas como responsáveis pela vida dos trabalhadores presentes, passados e futuros (incluindo questões que vão muito além da gestação). Assim, tarefas como limpar a louça e a casa, fazer a comida, criar/brincar/educar os filhos, cuidar de idosos e doentes, entre muitas outras, passaram a ser impostas como uma “virtude” feminina, que nós devemos realizar com prazer, sem reclamar e, sobretudo, sem receber nenhuma remuneração por isso.

Através do nosso esforço físico, mental e até sexual, as mulheres garantem a reprodução contínua dos trabalhadores, porém o sistema nunca considera isso como um trabalho. Dedicamos inúmeras horas das nossas vidas a cuidar da vida alheia, mas tal esforço é sempre apagado, invisibilizado, desvalorizado e não reconhecido. Um esforço que realizamos gratuitamente, supostamente motivadas pelo “amor” e o sentimento altruísta que nos caracterizaria, num sistema em que o dinheiro e a acumulação são as bases fundamentais de todas as relações sociais (masculinas). Assim, o capitalismo patriarcal cria os papéis sociais de gênero que, através da imposição de determinados comportamentos “femininos” e a construção da família nuclear como máxima expressão de desejo e realização de qualquer mulher, gera os mecanismos de subalternidade e sujeição que garantem o seu funcionamento.

Assim, desde o nascimento somos socializadas como cuidadoras, submissas, dóceis, devotas, fiéis, heterossexuais, com instinto maternal e sempre à espera do príncipe azul, através de imposições culturais que vão desde o amor romântico até a beleza hegemônica. Esse ideário de mulher, sempre disponível e sempre serva do homem, é reforçado através da publicidade, dos filmes e das novelas. Somos educadas numa cultura que glorifica e romantiza a maternidade e, como mulheres, a nossa máxima aspiração na vida não pode ser outra que concretizar esse desejo. Nós temos que amar ser mães, 24hs e incondicionalmente. Da maternidade não podemos nos arrepender, reclamar ou fugir, sobretudo nessa sociedade que sempre tem dois pesos e duas medidas para as nossas ações. O homem que deixa a família e sai em busca do seu lugar no mundo nunca vai ser julgado socialmente como a mulher que decide fazer a mesma coisa.

Porém o problema não se limita à obrigatoriedade da maternidade e a imposição do nosso comportamento social. Até quem deseja ser mãe pode atravessar por essa sensação de desespero e frustração e pode querer sair correndo em mais de uma situação, porque a grande maioria das mulheres são forçadas a criar em solidão, no contexto de um sistema individualista, misógino, machista e neoliberal, onde quem cuida é exclusivamente a mulher. Nem a comunidade, nem o setor privado, nem o entorno intrafamiliar e, cada vez menos, o setor público, se responsabilizam pelas tarefas domésticas e de cuidados. De fato, as políticas neoliberais de ajuste estrutural, que são praticadas por grande parte dos nossos governos, reduzem a disponibilidade de bens e serviços públicos que acabam sendo supridos por mais trabalho de cuidados gratuito ou escassamente remunerado realizado por mulheres. Todas essas ausências recaem, então, sobre as nossas costas, embora depois tentem nos convencer de que a nossa frustração, o nosso desespero, a nossa sensação de solidão e os nossos adoecimentos são o resultado de questões pessoais e ações individuais (não fomos o suficientemente boas). Mas como sinaliza Silvia Federici (2019), no capitalismo patriarcal, a nossa luta e a nossa vida foram privatizadas e mantidas na solidão do quarto e a cozinha, e fomos obrigadas a nos odiar odiar e culpar se não cumpríssemos com o destino que nos foi imposto. Assim, o problema nunca foi individual, o problema sempre foi, e continua sendo, o sistema de opressão e dominação.

Nesse sentido, o filme me inspirou a pensar na importância da existência e do fortalecimento dos feminismos, para, mais uma vez, gritarmos todas juntas que o pessoal é político e que a solução deve ser coletiva!

Não sei se essa foi a intenção da roteirista, seguramente não (sobretudo se lembrarmos das cenas finais), mas gosto de pensar que o filme pode também incentivar essa reflexão.

Referências:

FEDERICI, Silvia (2019). O Ponto Zero da Revolução. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante

OLIVERA, Margarita; et al (2021) “A dimensão de gênero no Big Push para a Sustentabilidade no Brasil: as mulheres no contexto da transformação social e ecológica da economia brasileira”, Documentos de Projetos (LC/TS.2021/6; LC/BRS/TS.2021/1), Santiago e São Paulo, Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe e Fundação Friedrich Ebert Stiftung

Margarita Olivera é coordenadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas de Economia e Feminismos — IE/UFRJ e professora de Economia e Feminismos do IE/UFRJ

Rio de Janeiro, 09 de janeiro de 2022

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Margarita Olivera
NuEFem
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Argentina, doutora em economia. Professora do Instituto de Economia da UFRJ e coordenadora o Núcleo de Estudos e Pesquisas de Economia e Feminismos – NuEFem.