Criminalizar o aborto não salva nenhuma vida

Margarita Olivera
NuEFem
Published in
6 min readJan 5, 2021
30/12/2020, Plaza de los dos Congresos, Argentina

A luta pelo direito à interrupção voluntária da gravidez, frequentemente chamado de aborto, é uma luta de muitos anos encampada pelas mulheres no mundo inteiro. De fato, na ampla maioria dos países desenvolvidos, na Europa e na América do Norte, esse direito foi conquistado já nos anos 1970, no âmbito das lutas das mulheres pelo direito de tomar decisões sobre o próprio corpo. A pauta da descriminalização do aborto não foi inventada agora na Argentina ou na Coréia do Sul pelo movimento feminista contemporâneo, não começou há 8 anos no Uruguai, nem há 50 anos nos Estados Unidos. As mulheres abortam desde tempos imemoriais. Abortaram nossas mães, nossas avós, nossas bisavós… Existem registros de abortos realizados nas sociedades antigas, entre gregos e romanos, e depois, entre iluministas e luteranos, na transição do feudalismo para o capitalismo. Já na baixa idade média, durante a transição do feudalismo para o capitalismo, especialmente após a peste bubônica que dizimou a população europeia, as práticas dos abortos e a contracepção passaram a ser perseguidas e condenadas pelo Estado e pela igreja, como parte da chamada caça às bruxas. As mulheres que ousavam não se submeter ao seu destino eram enforcadas, queimadas, destituídas de toda humanidade.

Mas quando o aborto passa a ser um problema social nos moldes atuais? Com a instauração do capitalismo. Quando o sistema começou a precisar de mais e mais trabalhadores formados, bem alimentados e fortes que garantissem o trabalho e a produção crescente das fábricas. Os trabalhadores, que produzem todos os bens e serviços, são a base do sistema de produção e acumulação capitalista e são portanto essenciais para garantir a sua continuidade. Mas quem produz os trabalhadores? Com a consolidação do novo sistema fabril, se aprofundou a divisão sexual do trabalho. As mulheres passaram a se ocupar quase exclusivamente da reprodução dessa força de trabalho atuando como gestantes e cuidadoras, enquanto os homens se transformaram em trabalhadores assalariados. Mesmo que desde sempre tenham sido as mulheres as reprodutoras no sentido estrito, as que gestavam e pariam as filhas e os filhos, sendo muitas vezes também as responsáveis pelos seus cuidados, a partir do capitalismo vemos que essa divisão de tarefas se intensifica e é profundamente hierarquizada. Na vida camponesa pre-capitalista, por exemplo, não existiam relações de subalternidade tão marcadas a partir da divisão de tarefas por gênero, não existia a falsa divisão entre esfera pública e esfera privada, entre o mercado e o lar, todos produziam para garantir a continuidade da vida. As mulheres camponesas se dedicavam mais à horta, ao cuidado dos animais de pequeno porte, a produção dos alimentos e a criança das filhas e filhos, enquanto os homens cultivavam a terra e se encarregavam do gado, mas nenhuma tarefa era mais valorizada do que a outra.

No sistema capitalista as mulheres foram transformadas em fábricas de reprodução da força de trabalho, de reprodução da vida, sem receber renda alguma num sistema que tem o mercado e o dinheiro como base das relações sociais. Nós mulheres passamos a depender economicamente dos homens. O nosso trabalho — gestar, parir, cuidar da sobrevivência alheia — tornou-se invisível. A maternidade e o casamento foram as únicas opções possíveis de subsistência para as mulheres. Nós mulheres somos consideradas e criadas socialmente como incubadoras, sem desejo próprio, sem necessidades, sem aspirações, sem sonhos, sem direitos. Do ponto de vista do funcionamento da sociedade capitalista, as mulheres somos geradoras e cuidadoras da vida alheia, queiramos ou não.

Há dois fatos essenciais a considerar:

Antes de mais nada, é preciso tratar o problema sem hipocrisia: todas e todos conhecemos alguém que abortou, mesmo sendo um tabu, mesmo sendo ilegal, mesmo sendo inseguro e perigoso. A ilegalidade e a criminalização não impediram nenhum aborto, não salvaram nenhuma vida. A ilegalidade condena todos os anos milhares de mulheres com menos recursos à práticas inseguras, muitas vezes levando-as a óbito. A ilegalidade só beneficiou aos mercenários que lucram diariamente com as vidas e os corpos das mulheres, oferecendo práticas clandestinas de interrupção da gravidez a custos elevados e em condições quase sempre bem pouco seguras. Muitas mulheres morrem ou carregam sequelas graves decorrentes de abortos ilegais.

Segundo, desde a iniciação na vida sexual as mulheres vivenciamos diferentes tipos de ameaças à integridade física e psíquica, sem falar dos medos corriqueiros e insistentes. O medo de engravidar, o medo de ter que enfrentar uma maternidade indesejada, o medo de morrer por via de um aborto clandestino, o medo de que o parceiro suma se ela engravidar, o medo de que o parceiro não assuma sua responsabilidade como pai. A sexualidade de uma mulher não decorre com a mesma autonomia e tranquilidade que a sexualidade de um homem.

No Brasil a situação é tão terrível quanto nos demais países menos desenvolvidos. Estima-se que cerca de 1 milhão de mulheres abortam por ano, com cirurgias ou medicamentos. A Pesquisa Nacional do Aborto do Brasil de 2016 destaca que “contrário aos estereótipos, a mulher que aborta é uma mulher comum. O aborto é frequente na juventude, mas também ocorre com muita frequência entre adultas jovens. Essas mulheres já são ou se tornarão mães, esposas e trabalhadoras em todas as regiões do Brasil, todas as classes sociais, todos os grupos raciais, todos os níveis educacionais e pertencerão a todas as grandes religiões do país”. Porém as condições de segurança às quais as mulheres acessam, são muito diferentes. Os riscos decorrentes dos abortos clandestinos são muito altos. Em 2019, o SUS registrou 535 internações por complicações decorrentes de abortos por dia no Brasil, 195 mil por ano, e dessas mulheres, as negras (pretas e pardas) são as que mais morreram. A situação das crianças entre 10 e 14 anos, também é muito preocupante, onde muitas dessas gravidezes são produto de estupros ou de falta de informação sobre métodos contraceptivos e educação sexual. Segundo DataSUS, 5 meninas foram internadas por dia em 2019, e por cada criança branca que passou pelo procedimento, se registraram 3 crianças negras (Revista Piauí, 24 agosto de 2020).

Criminalizar o aborto e proibir a educação sexual integral é perpetuar o genocídio contra a população com capacidade gestante. Não faltam evidências nos países que legalizaram os abortos mostrando que não houve aumento no número de interrupções da gravidez, mas sim diminuição do número de mortes de mulheres.

A lei não obriga ninguém a abortar. A maternidade tem que ser desejada, as mulheres querem ter autonomia sobre a decisão de ser mães, sobretudo em um contexto onde não existem políticas de educação sexual integral e campanhas de contraceptivos eficientes. Os homens permanentemente tem a liberdade legal, política e social de decidir sobre a própria paternidade, só isso explica a quantidade de lares monoparentais, chefiados por mães solo que caracterizam a realidade brasileira, além do número absurdo de crianças sem registro paterno em suas certidões de nascimento. A lei não obriga ninguém a abortar, a lei só garante que as que decidam interromper a gravidez, não coloquem em risco as suas vidas.

Quando se fala em descriminalizar o aborto não está se discutindo se moralmente as mulheres devem ou não devem abortar. As mulheres abortam igualmente, essa é uma decisão que só cabe a cada mulher, e que vai depender das próprias crenças e da sua situação e necessidades. A legalização da interrupção voluntária da gravidez é uma questão de saúde pública, para que as pessoas com capacidade de gestar que decidam abortar, o possam fazer em segurança. Como declarou o Ministro da Saúde argentino, Ginés Gonzalez Garcia, no 1/12/2020, respeito à legalização do aborto: “É sobre justiça social, porque quem pode fazer um aborto em um lugar seguro, o faz, com dor, mas resolve, enquanto as mais frágeis não resolvem ou às vezes o fazem com a morte”.

Que seja lei!

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Margarita Olivera
NuEFem
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Argentina, doutora em economia. Professora do Instituto de Economia da UFRJ e coordenadora o Núcleo de Estudos e Pesquisas de Economia e Feminismos – NuEFem.