Quem cuida das casas homoafetivas?

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5 min readJul 6, 2022

Por Jun Shimada

Todo mundo sabe: nos casais formados por homem e mulher, a sobrecarga é quase sempre dela. Limpeza, arrumação, cera no piso. Comida, água e sobremesa. Crianças, pessoas idosas ou com deficiência. Tanque ou máquina de lavar, varal, ferro de passar. Cachorro, gato, periquito. Tudo assunto de mulher — seja a esposa, seja a empregada doméstica. O artigo recente da professora Margarita Olivera (2022) dá um panorama dessa sobrecarga e da forma como ela piorou com a pandemia de Covid-19, com prejuízos maiores para as mulheres negras no Brasil.

Acontece que, quase sempre que se fala de trabalho reprodutivo, trabalho de cuidado ou trabalho doméstico, o que vem à mente é um casal heterossexual formado por duas pessoas cis. Essa falta de imaginação também afeta a maioria das pesquisas sobre o assunto, e a consequência é que se sabe muito pouco sobre como pessoas LGBTQIAP+ se relacionam com esse trabalho, inclusive porque elas não necessariamente vivem dentro dessa estrutura de família e casal.

Para estimular nossa imaginação — e também a des pesquisadorus da área –, trazemos a seguir os resultados de alguns estudos recentes sobre casais do mesmo sexo.

Quem faz mais?

Os estudos sobre a distribuição quantitativa do trabalho doméstico apontam que casais do mesmo sexo costumam ter uma divisão mais equilibrada do que os casais heterossexuais (Bauer, 2016; Perlesz et al., 2010). Ainda assim, é comum que um membro do casal assuma uma parte menor do trabalho — e em geral é o membro com mais status social. Segundo Sutphin (2010) e Bauer (2016), quanto maior a renda, a escolaridade, a carga horária de trabalho pago e a idade de uma pessoa em um casal homossexual, menos trabalho doméstico ela assume. E, é claro, a raça tem um papel nesse status, fazendo com que pessoas brancas façam menos tarefas.

E o que acontece com o passar dos anos? Em geral, uma piora: quanto maior a duração do casamento, menor a igualdade e o equilíbrio na divisão das tarefas (Bauer, 2016).

Curiosamente, nem sempre as duas pessoas percebem essa desigualdade da mesma forma. Nos casais gays, a pessoa que faz mais tarefas costuma dizer que a diferença na carga de trabalho não é tão grande, atenuando a desigualdade entre os dois. Já entre as lésbicas, quem faz mais costuma apontar uma diferença maior do que quem faz menos, reforçando o desequilíbrio (Nico, Rodrigues, 2011).

Quem faz o quê?

Quando o assunto é a distribuição qualitativa das tarefas em casa, os casais homossexuais também costumam dividir de uma forma mais equilibrada (Bayer, 2016; Perlesz et al., 2012). Mas, já que não têm como se basear nos papéis clássicos de homens e mulheres nessa hora, qual o critério? O mais comum é cada ume escolher as tarefas que prefere ou pelas quais se interessa mais (Nico, Rodrigues, 2011; Kurdek, 2007; Perlesz et al., 2012).

Um estudo clássico de Kurdek (2007) nos EUA apontou que, na maioria dos casais formados por dois homens, um se especializa em alguns tipos de trabalho, enquanto, nos casais de mulheres, as duas fazem todos os tipos de tarefa em quantidades parecidas.

Já o estudo de Nico e Rodrigues (2011) em Portugal apontou que é comum uma das mulheres dos casais lésbicos se especializar nas tarefas consideradas menos prazerosas — passar roupa e limpar a casa –, que os casais gays preferem delegar, contratando alguém de fora da família (Nico, Rodrigues, 2011). Nenhum desses estudos, no entanto, vai a fundo na compreensão do papel e do peso dessa “ajuda externa” (Sutphin, 2010).

E se o casal tiver filhes? Segundo Bauer (2016), o mais comum em casais heterossexuais ou de duas mulheres é que uma pessoa se especialize no cuidado das crianças. Por outro lado, o estudo de Perlesz et al. (2012) apontou uma divisão mais equilibrada desse cuidado entre lésbicas. Essa diferença entre os dois estudos pode ser relacionada a diferenças de metodologia ou entre os grupos que participaram de cada um.

Divisão equilibrada traz felicidade?

E, se a sobrecarga das mulheres é uma queixa comum nas relações hétero, as relações homo serão um mar de rosas? Longe disso. A divisão de tarefas envolve muita conversa e negociação constantes (Perlesz et al., 2010). No entanto, quando cada pessoa se especializa nas suas tarefas preferidas, os casais se dizem mais felizes (Nico, Rodrigues, 2011). E, como apontado por Kurdek (2007), a satisfação com a divisão do trabalho doméstico aumenta a satisfação dos casais com o relacionamento. Em consequência, os relacionamentos se tornam mais estáveis e duradouros.

Conclusão

Esses estudos todos parecem reforçar a ideia de que a divisão do trabalho entre casais do mesmo sexo é mais equilibrada do que entre casais heterossexuais. Mas o que eles deixam mais claro ainda é que ainda precisamos de muita pesquisa sobre o assunto.

Em primeiro lugar porque, como dito antes, são quase todos estudos pequenos, qualitativos ou limitados a poucos países. A maioria dos países não faz nem patrocina pesquisas grandes sobre a divisão do trabalho doméstico, quanto menos sobre os grupos LGBTQIAP+. Podemos dizer, então, que esses resultados mostram tendências, mas não têm necessariamente uma medida exata de como esse trabalho é dividido pelos casais.

Além disso, casais formados por dois homens ou duas mulheres são apenas uma gota no oceano da diversidade sexual e de gênero, que inclui não somente relacionamentos poliamorosos, mas também pessoas trans com diversas sexualidades ou com identidades não binárias, pessoas bissexuais, pessoas que não estão em um relacionamento estável mas realizam essas tarefas dentro da sua família de origem, outras que fazem trabalho sexual, e muitas outras situações que a ciência ainda não deu conta de abordar.

Por fim: será que estamos dando conta da complexidade desse trabalho quando descobrimos que parte dele é “delegado” à “ajuda externa” e nossos estudos não exploram a fundo quem é e como trabalha essa “terceira pessoa” do casal? No caso do Brasil, por exemplo, onde as trabalhadoras domésticas remuneradas são em sua maioria mulheres negras, um estudo que as deixasse de fora certamente levaria a uma visão bem distorcida — e, por que não dizer, racista — da realidade.

Referências

BAUER, Gerrit (2016). “Gender roles, comparative advantages and the life course: the division of domestic labor in same-sex and different-sex couples”. European Journal of Population, 32(1), pp. 99–128.

KURDEK, Lawrence A (2007). “The allocation of household labor by partners in gay and lesbian couples”. Journal of Family Issues, 28(1), pp. 132–148.

NICO, Magda; RODRIGUES, Elisabete (2011). “Organização do trabalho doméstico em casais do mesmo sexo”. Sociologia, Problemas e Práticas, 65, pp. 95–118.

OLIVERA, Margarita (2022). “Relações entre a covid-19, sexismo e racismo no Brasil: uma análise da economia feminista”. Praia Vermelha, 32(1), pp. 5–23.

PERLESZ, Amaryll et al (2010). “Organising work and home in same-sex parented families: Findings from the work love play study”. Australian and New Zealand Journal of Family Therapy, 31(4), pp. 374–391.

SUTPHIN, Suzanne Taylor (2010). “Social exchange theory and the division of household labor in same-sex couples”. Marriage & Family Review, 46(3), pp. 191–206.

Autor: Jun Shimada

Jun é educador popular, Mestre em Letras e em Sustentabilidade. Transita pelos campos da ecologia política, gênero e sexualidade e analises econômicas heterodoxas.

Projeto de Extensão de Economia e Feminismos 2022.1

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Núcleo de Estudos e Pesquisas Economia e Feminismos (NuEFem), Instituto de Economia, UFRJ

Coordenadoras: Margarita Olivera e Clarice Menezes Vieira

Participantes do projeto:

Amanda Recke, Giovanna Moncorvo, Jamille Torres Rosario, Jun Shimada, Karen Talyssa, Luisa Rouxinol, Marieli Moraes Pereira, Nicolas Gonçalves Martins, Willian Binsfeld.

Bolsistas de Extensão: Luisa Rouxinol, Carla Vanise Oliveira

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Projeto de extensão de Economia e Feminismos/IE/UFRJ