Resenha sobre o filme “As sufragistas” (2015). Economia e Feminismos 2021.1 IE/UFRJ

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6 min readOct 11, 2021

Autora: Rafaela dos Santos de Oliveira

Para principiar a análise do filme, é necessário elucidar o contexto social da Inglaterra, onde desenrolou-se a história retratada. Desde a Revolução Gloriosa, no século XVII, o território inglês é configurado como um Estado nacional de regime parlamentarista. A ascensão dos ideais liberais, tanto na política quanto na economia, e, portanto, a ascensão do capitalismo marca a redefinição do papel social e econômico das mulheres e a expropriação de seus corpos, por meio do processo ao qual Silvia Federici nomeia de “caça às bruxas”.

“… a caça às bruxas expropriou os corpos das mulheres, os quais foram assim “liberados” de qualquer obstáculo que lhes impedisse de funcionar como máquinas para produzir mão de obra. A ameaça da fogueira ergueu barreiras mais formidáveis ao redor dos corpos das mulheres do que as cercas levantadas nas terras comunais.” (FEDERICI, 2017, p. 330).

Nesse sentido, a Inglaterra, como um Estado capitalista, tem seu crescimento econômico pautado, primordialmente, na exploração da força de trabalho das classes mais baixas e dos escravos e dos corpos das mulheres, como instrumentos da reprodução social da força de trabalho. Sobre o trabalho não remunerado das mulheres:

“A divisão sexual do trabalho que emergiu daí não apenas sujeitou as mulheres ao trabalho reprodutivo, mas também aumentou sua dependência, permitindo que o Estado e os empregadores usassem o salário masculino como instrumento para comandar o trabalho das mulheres. Dessa forma, a separação efetuada entre a produção de mercadorias e a reprodução da força de trabalho também tornou possível o desenvolvimento de um uso especificamente capitalista do salário e dos mercados como meios para a acumulação de trabalho não remunerado.” (FEDERICI, 2017, p.145–146).

Esses são os fatores de produção invisíveis na teoria econômica que proporcionaram à Inglaterra a hegemonia no sistema internacional no século XIX. A partir desse momento, com os sucessos da Revolução Industrial, o enorme contingente de países colonizados e, portanto, uma crescente demanda por produtos industrializados, o Estado e os capitalistas ingleses precisam de um número cada vez maior de mão-de-obra para produção. É nessa virada para nova fase do capitalismo que o número de mulheres no mercado de trabalho aumenta drasticamente — sobretudo das mulheres de classe baixa, as quais eram mais vulneráveis à possibilidade de exploração e condições insalubres — e, nesse período histórico, começa o processo de luta retratado no filme.

O movimento das sufragistas na Inglaterra teve início, de forma mais estruturada, em 1897 com a criação da National Union of Women’s Suffrage Societies — NUWSS (União Nacional das Sociedades de Mulheres Sufragistas). Nessa primeira fase do movimento, as mulheres organizavam suas pautas e enviavam documentos argumentativos para reivindicar participação na política e, consequentemente, conquistar o reconhecimento de sua cidadania. Há uma cena muito significativa no filme, onde a personagem Maud Watts vai à Câmara dos Comuns para dar um depoimento na audiência destinada a ouvir os argumentos das mulheres para o direito ao voto e, na sala da audiência, há somente homens para ouvi-las. Naturalmente, mais uma vez as vozes das mulheres em busca de seus direitos não são ouvidas por aqueles que representam o sistema patriarcal, sexista, misógino e, antes de tudo, o sistema do homem econômico. Para esse homem econômico, o indivíduo é inseparável de razão, visto que é por meio desta que tem domínio sobre a natureza e sobre a sociedade. (LESBAUPIN, 1984, p. 43) e, por sua vez, “A mulher recebeu a tarefa de cuidar dos outros, não de maximizar seu próprio ganho. A sociedade lhe disse que ela não pode ser racional porque o parto e a menstruação a amarram ao corpo, e o corpo foi identificado como o oposto da razão.” (MARÇAL, 2017)

Cansadas de não serem ouvidas, em 1903, as sufragistas criam a Women’s Social and Political Union — WSPU (União Social e Política das Mulheres), lideradas pela ativista Emmeline Pankhurst, interpretada no filme pela atriz Meryl Streep. Pankhurst foi uma importante ativista política que ajudou a provocar uma mudança na postura das sufragistas, incentivando a luta por meio da desobediência civil — como a greve de fome das mulheres que eram presas e as greves nas fábricas — e de manifestações mais radicais — como a depredação de lojas e corte nos fios de telecomunicações expostos no filme.

Para a intensificação e radicalização do movimento foi importante, acima de tudo, a participação das mulheres das classes mais baixas, as quais lidavam diretamente com as opressões mais severas desse sistema. A personagem de Maud Watts representa essa maioria comum de mulheres pobres, sem formação, mas que desenvolveram consciência política após anos de abusos vividos no interior das fábricas. Entre tais abusos pode-se mencionar as longas jornadas de trabalho, ambientes insalubres, salários que pouco supriam as necessidades básicas e os estupros cometidos pelos patrões ou outros funcionários, sendo todos esses abusos retratados no cotidiano de Watts.

Outra diferença entre as mulheres de classe média alta e as mulheres das classes baixas era uma rede de apoio fora do movimento. Emmeline Pankhurst foi casada com o advogado Richard Marsden Pankhurst, que legislou a Married Women’s Property Acts (Lei da propriedade da mulher casada) de 1870 e 1882, e posteriormente, fora do lar, conseguiu o apoio de centenas de mulheres. A personagem de Edith Ellyn, por sua vez, representava as mulheres que possuíam formação superior, vinham de família rica e eram apoiadas pelo marido na sua luta. Por fim, a personagem de Maud Watts representaria a maioria das mulheres, que não tinham suporte na sua luta e tiveram de abdicar de sua família e, muitas vezes, de seu emprego para continuar no movimento. Certamente essa comparação não era uma regra, porém, quando o sobrepeso da falta de suporte no lar era posto nos ombros das mulheres mais pobres, a inserção e manutenção delas na luta pelo sufrágio se tornava mais difícil — mesmo que também mais necessária. Tal dificuldade é retratada no momento em que a personagem Violet Miller se afasta do movimento após descobrir que teria mais um filho e, consequentemente, seria responsável pelo trabalho de cuidado dessa criança e por todos os custos financeiros que surgiriam.

O filme acaba com a morte de Emily Davison, que se jogou em frente ao cavalo do Rei Jorge V e tornou-se um mártir do movimento. A atitude extrema de Davison foi necessária, após anos de silenciamento da imprensa, promovido pelo Estado, sobre as ações das sufragistas, para trazer a atenção da opinião pública para o movimento e, em consonância, para a negligência do Estado inglês para com as demandas femininas. O principal impacto de Emily Davison, em suma, foi mostrar ao globo como a Inglaterra vinha negando um direito básico às mulheres que constituíam a máquina de crescimento econômica inglesa — seja nas fábricas ou na reprodução da força de trabalho. O sufrágio em si, contudo, só é alcançado em 1918, em partes por causa da influência das mulheres na produção bélica para a Primeira Guerra Mundial e da impossibilidade de continuar negando a importância das mulheres na economia, porém, sobretudo pela luta das sufragistas, suas ações e sacrifícios para conquistar a cidadania.

REFERÊNCIAS

As sufragistas. Direção: Sarah Gavron. Produção de Alison Owen; Faye Ward. 2015. 3

FEDERICI, Silvia. (2017). Calibã e a Bruxa: mulheres, corpos e acumulação primitiva. Tradução Coletivo Sycorax. São Paulo: Elefante.

MARÇAL, K. (2017). O lado invisível da economia: Uma visão feminista. Alaúde Editorial.

LESBAUPIN, Ivo. (1984). As classes populares e os Direitos Humanos. Editora Vozes.

Warken, Julia. Quem foram as sufragistas da vida real? Conheça um pouco das mulheres que lutaram pelo direito ao voto 100 anos atrás. Claudia, 22 dez. 2015. Disponível em: <https://claudia.abril.com.br/cultura/quem-foram-as-sufragistas-da-vida-real/> Acesso em: 30 de julho de 2021.

Curso de extensão de Economia e Feminismos — IE/UFRJ

Professoras: Margarita Olivera e Clarice Vieira

Autora: Rafaela dos Santos de Oliveira, extensionista e monitora

Rio de Janeiro, 30 de julho de 2021

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