Round Six e a Financeirização da Pobreza

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6 min readOct 10, 2021

Autora: Pâmela Dias

No dia 17 de setembro a Netflix lançou mundialmente a série Sul Coreana Squid Game — o título foi alterado para Round Six no Brasil — e em poucos dias a produção tornou-se um dos assuntos mais comentados da internet. O enredo não é vanguardista. Apesar do mérito criativo do roteiro que consegue nos prender com interesse ao longo dos nove, nada curtos, episódios, trata-se de um drama envolvendo ação, terror e a luta por sobrevivência entre pessoas em situações limite, algo que já vimos nas séries de filmes Jogos Mortais e Jogos Vorazes.

*** Quem assistiu ao filme Bacurau poderá notar a semelhança dos personagens VIPs da série sul-coreana com os caçadores de gente que adentram o sertão brasileiro para espalhar terror e divertir-se com a luta por sobrevivência de pessoas à margem social.

Assim como os roteiristas de Parasita [1], ganhador do Óscar de melhor filme em 2019, Hwang Dong-hyuk, autor da trama, traz de maneira simbólica para as telas a desigualdade sistêmica e coerção do sistema financeiro enfrentadas por indivíduos da classe trabalhadora de seu país[2]. As cenas de violência entre os jogadores e o vale tudo que as partidas e convivência assumem no confinamento, revelam o desespero pela sobrevivência não apenas enquanto participantes de brincadeiras infantis que podem levar à morte, mas como indivíduos que anseiam por subsistir em sociedade, fora do jogo. Após ser despedido do trabalho em uma fábrica durante uma reestruturação e luta grevista, o protagonista Seong Gi-Hun, passa a trabalhar como motorista enquanto alimenta o seu vício em jogos de apostas e reside com a sua mãe. Com uma vida financeira instável e ameaçado pelos seus credores, Seong, se preocupa também com o afastamento da filha. Junto a demais 455 pessoas, a princípio, esses são os motivos que o leva a embarcar em um jogo a fim de lutar por um prêmio em dinheiro.

A socióloga teórica do movimento feminista e do neoliberalismo, Verônica Gago, traz em seu recente livro A Potência ou o Desejo de Feminista De Mudar Tudo uma análise do atual sistema financeiro e faz uma provocação sobre a queda do status do homem enquanto provedor familiar no neoliberalismo, tema explorado no enredo da série como drama de personagens que não podem mais sustentar suas famílias. Em sua tese, a autora argentina busca ressaltar a importância da perspectiva da economia feminista em oposição à até então canônica economia androcêntrica, centrada no lucro e distante das necessidades da vida das pessoas: “a economia feminista não centra sua análise em como se organiza a acumulação do capital, mas em como a reprodução da vida coletiva é organizada e garantida a priori, enquanto pressuposto” (GAGO, 2020).

Como chegamos até aqui? Para além da divisão internacional do trabalho no pós guerra e do programa neoliberal implementado por nações ricas a partir dos anos 80, no final dos anos 1990, a Coreia do Sul, com a desaceleração do milagre econômico que vinha executando até então, enfrentou uma forte crise que intensificou a sua adaptação a agenda econômica hegemônica global (KOO, 2007). Ao nível mundial, este foi um período de defesa e implementação das medidas prescritas pelas cartilhas das Instituições Monetárias Internacionais e do Consenso de Washington aos países do chamado terceiro mundo (BELLUZO, 2007). O aumento ou a criação de créditos e a imposição da adoção do sistema bancário por toda a sociedade, inclusive pela população mais pobre, foram expandidos junto à flexibilização das taxas e juros — sempre para cima como aponta BELLUZO — e das leis trabalhistas. A degradação do trabalho formal e da seguridade social, até então garantida pelo Estado, junto à insegurança financeira fez com que milhares de pessoas se tornassem dependentes do crédito como complemento às suas rendas: “o próprio fato de viver “produz” dívida”, como analisa Gago (2020).

A luta para garantir a subsistência com o uso de sistemas de crédito e empréstimos é um cenário também conhecido no Brasil. Sobretudo sob a atual gestão política e contexto pós pandêmico. Segundo o IBGE[3], temos atualmente 14,4 milhões de pessoas desempregadas e o percentual de famílias endividadas chegou a 74% em setembro, como demonstrou a pesquisa da Confederação Nacional do Comércio de Bens, Serviços e Turismo (CNC)[4].

Assim como ocorre na série, a responsabilidade por prosperar dos sujeitos tornou-se individual no jogo meritocrático de uma suposta sociedade justa. O desemprego, o endividamento e seus efeitos colaterais são verdadeiras fontes de inspiração para retratar dramas violentos e ação que é lutar para sobreviver. Os devedores são perseguidos e eliminados “como as bruxas no final da idade média e os falsificadores de dinheiro durante a criação dos bancos” (MARX in: GAGO, 2020).

Sem a garantia da dignidade prometida pela Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), as populações de nações pobres são as mais prejudicadas na roda de um sistema que se retroalimenta da pobreza. Recorro aqui à reflexão da filósofa estadunidense Judith Butler sobre a violência ética exercida com relação aos indivíduos marginalizados. Segundo a autora, a violência ética é uma violência justificada pelo enquadramento, como o das fotografias, de alguns corpos como não humanos. Ela garante que esta segregação é conduzida, sobretudo, pelos Estados e demais instituições de poder, como a mídia, responsáveis por formar a opinião pública sobre quais vidas são e quais não são passíveis de luto. Neste sentido, a violação perpetrada a determinadas camadas da população torna-se legítima ao reivindicá-la com uma ação de consenso público, moral e necessária. Vide a guerra contra a população árabe e islâmica imposta pelos Estados Unidos dentro e fora de suas fronteiras e a violência policial nas favelas brasileiras.

Para abordar esta política de mortes, o filósofo camaronês Achille Mbembe formulou o termo necropolítica pensando na atual gestão dos Estados sobre a desigualdade e suas agendas de segurança. O autor afirma que estamos sob “uma forma contemporânea de subjugação da vida ao poder da morte que reconfigura profundamente a relação entre resistência, sacrifício e terror” (MBEMBE, 2006). Um poder difuso que dita quem deve ou não morrer a partir do seu não enquadramento nas molduras normativas (BUTLER, 2017; MBEMBE, 2006).

A atual gestão econômica segue a adotar medidas predatórias para a população mais vulnerável por meio de ajustes estruturais pensados pelo e para Norte Global e, ainda que surjam medidas dignas de Nobel da Paz[5] a financeirização da pobreza encontra-se sistêmica. Diariamente, milhares de seres humanos em condição de miséria e de vida precária lutam contra uma eliminação. Squid Game configura-se não apenas como uma crítica a pobreza como entretenimento, mas como uma arte de denúncia da desigualdade sul-coreana e demais países que enfrentam um suposto desenvolvimento imposto pelo capital.

[1] https://www.hypeness.com.br/2020/02/reportagem-mostra-vida-dos-que-moram-em-poroes-de-seul-e-inspiraram-parasita/

[2] https://gq.globo.com/Cultura/noticia/2021/10/nem-tudo-e-ficcao-round-6-escancara-desigualdade-social-da-coreia-do-sul.html

[3] https://www.ibge.gov.br/explica/desemprego.php

[4] https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/economia/audio/2021-10/numero-de-endividados-em-setembro-chega-74/

[5] http://www.cadtm.org/Microfinancas-endividamento-e

Referências

BELLUZZO, Luiz Gonzaga et al. Mesa I-A financeirização do capitalismo e a geração de pobreza. Cadernos do Desenvolvimento, v. 2, n. 3, p. 23–110, 2018.

BUTLER, Judith. Quadros de guerra: quando a vida é passível de luto?. 2015.

GAGO, Verónica. A potência feminista, ou o desejo de transformar tudo. Editora Elefante, 2020.

KOO, Hagen. The changing faces of inequality in South Korea in the age of globalization. Korean Studies, p. 1–18, 2007.

MBEMBE, Achille. Necropolitics. Raisons politiques, n. 1, p. 29–60, 2006.

Sobre a autora:

Graduanda em História pelo Instituto de História da UFRJ. Possuo uma trajetória interdisciplinar entre as áreas de história, sociologia, educação e, agora, economia, de modo a relacioná-las a uma agenda de estudos sobre contextos pós-coloniais.

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