O Arquiducado de Kodmarr

Mandé Malé
Nulitania
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8 min readJul 25, 2019

Ou: O Império das 3 Cidades

Ao comitê Claustroburguês do Partido do Despertar Nacional:

Irmãos engajados: O sujo pasquim goblinóide “Arrmajedrak-jamir” (Em uma tradução livre: O Goblin Ranger?”) traz este artigo “geográfico” sobre a questão Nulitana e sua ex-capital, Claustroburgo. Em sua perfídia, os goblins insultam nossa memória e história. Há sinais de que o texto foi escrito por um colaborador local (sim, um Nulitano!) ligado à “Corporação da Longa distância”, organização de inteligência do Canato Trasgo. Nossa divisão de assalto deve implacavelmente caçar e abater este traidor da pátria.

Com deus no Coração — Sr Armando Silas, secretário de agitação e propaganda.

Paz à Pátria. Guerra ao Invasor.

UMA NAÇÃO DE INDIVÍDUOS ANULADOS.

Muitos povos existem no mundo. Talvez nenhum de vida tão dura quanto a nação Nulitana. Os extintos elfos e dragões construíram para si, cada qual a seu tempo, impérios magníficos que atravessaram de ponta a ponta o mundo. Os Trasgos, Altrasgos e Grão Trasgos tomaram de assalto cidades sem fim em invasões bárbaras, construindo uma vasta rede de entrepostos comerciais e fartas teias de rotas mercantis. Nanória estendeu orgulhosa seu poderio subterrâneo pelo solo do continente. Mas o Nulitano, como o trocadilho diz, parece estar destinado à nulidade.

O Nulitano comum é mais baixo que um Tardo ou Altrasgo. É mais magro que um Anão ou um Grão Trasgo da casta mercante. Não é mais destro do que qualquer outra raça. Não é mais forte do que qualquer outra. Nem supera qualquer outra em inteligência, magnetismo pessoal ou perícia profissional. Em nada brilhante. Em nada especial. Em nada destacado.

Os Trasgos os chamam de Nulos por isso. É um apelido comum. Os próprios nulitanos de menor estirpe e instrução aceitaram ser chamados assim. Todavia, em sua própria língua e no âmago de suas mentes, os nulos se chamam de outro nome. Nulitano, na língua da própria Nulitana, se diz humano.

A PÁTRIA MEDIEVAL
A história da região começa antes da pólvora, do banimento da magia e da aurora dos Tardos. Eram os tempos do velho império élfico. Quando senhores da guerra governaram pela espada, seus Embaixadores Imortais exploravam o mundo pelo mar, pelos rios, pelas florestas distantes, até que conheceram as primeiras tribos nulitanas que guerreavam incessantemente entre si. Uma missão élfica levou a promessa civilização. A paz forçada pela ponta da espada aos bárbaros. Alfabetização, noções de arquitetura e matemática, abertura comercial, e uma série de sutis intervenções políticas de espionagem redefiniu a geografia da área. Os reinos trasgos consideravam o território Nulitano uma terra violenta e bruta, que os separava dos reinos anões da Nanória e inviabilizavam o comércio por terra. Os anões viviam autóctones sob o lendário reinado de Steelan, que os unificou e aboliu obrigações, corvéias e desigualdades sociais, travando as guerras narradas no romance do Círculo de Aço. Após a morte de Steelan e a consolidação do imperialismo Élfico sobre Nanória, veio aos anões o retorno da velha estrutura de classes. Como influência, o avanço mercantil e civilizatório das tribos Nulitanas levou a fundação de ducados unidos por um pacto de proteção mútua e uma dupla vassalagem. Os sete ducados reunidos em liga eram protetorados do Império Élfico e súditos do Salão do Machado de Nanória. Tudo isto mudou quando o trovão de mil canhões ressoou trazendo as poderosas tropas dos Tardos.

A PÁTRIA SOB O ARQUIDUCADO
Dizem que o Primeiro Arqui-duque Kodmarr era um simples bastardo de um embaixador Élfico, que inepto para a magia de seu pai voltou-se ao estudo das armas, à boemia e a ladroagem. Implacável, com o destemor de quem não tem nada a perder, e portando a carisma de sua herança natural, se tornou um comandante mercenário famoso.

Quando João Montanhez, Pedro Rios, Caio Horto e Mauro da Matta decidiram formar um exército comum dos 7 ducados, apoiados por quarenta barões e incluindo sete súditos dos outros três duques , Kodmarr ascendeu rapidamente de capitão a general.

As invasões dos Tardos vieram pôr fim à glória da vida élfica. Na barbárie das guilhotinas e massacres, O sagrado imperador Kahmael morreu crucificado após duas semanas de estupro de seu corpo e profanações tortuosas de sua santidade. A Legião Tarda incendiava a floresta e forjava armas de pólvora com o carvão das árvores sagradas. A miríade sem fim de criaturas anti-humanas das legiões brutais marchava naquele tempo de rosto exposto. Muitos foram os que enlouqueceram de medo para sempre apenas pelo vislumbre de uma daquelas tropas do inferno chegando.

E então, nestas trevas brilhou Kodmarr. Nenhum general de nenhuma outra raça liderou exército mais bravo em combate contra aquelas tropas do terror, dizem os livros da História oficial. E no comentário comum se diz: Nenhum comandante jamais traiu seus governantes de maneira mais vil. Kodmarr lidera um golpe de estado galopante, assassina em um banquete imperial os 7 duques, compra os barões com ouro dos mesmos Tardos que brilhantemente derrotara, declara-se arquiduque de toda a Nulitânia, e rompe relações com Nanória e o Império élfico. Passa a lutar ao lado dos Tardos e Brutos contra todos os outros povos. Sendo assim, a Nulitânia declara-se estado soberano e põe ponto final na era dourada das nações.

A PÁTRIA SOB A HEGEMONIA

Kodmarr ofereceu o seu recém-fundado arquiducado como um campo aberto à implementação da nova economia dos Tardos. Talvez com maior esforço Kodmarr conseguisse manter um estado Nulitano Unificado, mas ao invés disso ofereceu territórios como reparações a Nanorianos e Goblinóides, os cedeu como favor à hegemonia. Agarrou-se ao rio sangue-azul. À velha clustroburgo, terra onde crescera, Vitória — seu território de veraneio e Renascença — feudo rico com grande volume de mineração.

Pouco queria o Marechal-mercenário refletir sobre as sutilezas da política. O Arqui-duque construiu para si e para as famílias de meio-elfos que o acompanharam ao poder o status de casta governante do novo Regime. Os Tardos criaram o novo governo das terras élficas. Um anti-império, uma bizarra colcha de retalhos costurada por sua ideologia de ascetismo e chamada vulgarmente de Hegemonia. Kodmarr passa a estimular a imigração de Tardos, trasgos e Anões perjuros (os que fizeram oposição a mão de ferro de Steelan). Já neste tempo, o exército passa a ser substituído cada vez mais por implacáveis tropas de Inumanos vendidos como semi-escravos pelos Tardos, e leis de desarmamento afetam os camponeses, os deixando muitas vezes a mercê de bandidos e carrascos.

A Nulitânia vê crescer um surto de conflitos, xenofobia e terror. Os primeiros cem anos do governo de Kodmarr I são chamados na historiografia oficial de “Longo verão doce”. No jargão popular, o período foi conhecido como “Amargo inverno”.

Primeiro foi a vez de Kodmarr expurgar clérigos que se opunham a seu governo nas igrejas das três grandes religiões de seu povo. Sua família tinha ligações com o culto do Sol Invicto, então foi-lhe fácil aparelhar o culto após assassinar alguns patriarcas e matronas. A fé do Círculo Lunar e da Estrela da meia luz foram quase que dizimadas.

Logo depois foi a vez das guildas arcanas e das corporações de ofício, Abrindo caminho para os interesses sórdidos da Hegemonia, Kodmarr I perseguiu os magos e aboliu todo o tipo de propriedade coletiva sobre a terra, baniu cooperativas de homens livres, aboliu também o trabalho por servidão. Criou um país expurgado de opositores, e pronto para os novos tempos.

A PÁTRIA DO CARVÃO E DA PÓLVORA

Enquanto Nanória perdeu muitos de seus mestres-artesãos na pólvora da guerra dos Tardos, o mundo incendiado precisava de mãos que o reconstruíssem. A Nulitânia tinha os vencedores da guerra como seus novos mestres. Mestres com novas técnicas e formas de empreendimento. Os Tardos tinham como objetivo reestruturar a produção de manufaturas, mas pouco desejo de restaurar o poderio anão.

Kodmarr criou para eles um vasto exército de mão de obra barata. Nos cem anos de seu reinado, os Nulitanos se multiplicaram velozmente em condições de vida insalubres, lotando guetos escuros, erguendo cidades de vielas sombrias, expandindo sem fim os burgos do tempo dos sete ducados, até fundar uma única megalópole industrial: Claustroburgo.

As terras verdes davam lugar pouco a pouco a cinzentos mares de pedra cobertos por nuvens de fumaça. A massa camponesa pouco a pouco disciplinada e tolida, em fábricas-cárceres cujas máquinas de ferro negro Tardo nunca pararam de funcionar. Quase toda a população de nulitanos foi feita de operariado até o segundo quartel do primeiro século da era de Kodmarr.

A PÁTRIA NÃO É MAIS “NOSSA”

Vivemos o ano 414 da era Kodmariana, sendo governados pelo arquiduque Kodmarr IV, recém-coroado aos seus 78 anos. Um abismo separa as elites de seu povo. A política é pouco centrada na família Kodmarr, seus Patrícios-clientes e nos de sangue élfico, que dominam a câmara dos Lordes. Ela é mais centrada na Câmara dos comuns, dominada principalmente por abastados comerciantes Grão-Trasgos, Tardos e Anões.

Assim sendo, no Arquiducado de Kodmarr os poderes governantes não são mais nulitanos a séculos. Os Nulitanos são, no Arquiducado, como em qualquer lugar de seu próprio país uma minoria minguante. Durante os últimos cem anos, entre 49% e 40% da população é composta por Nulitanos natos. Os Altrasgos, trasgos e grão-trasgos já chegam a expressivos 20%, variando pesquisa a pesquisa. Cresce a população de anões, de 15% podendo chegar a 20%. Os Nulitanos, dentro e fora do arquiducado são vistos como transmissores de doenças, sujos, culturalmente inferiores. Sua vida é a de um território sob ocupação permanente.

A LEI DO CHUMBO E A LEI DO COBRE

Duas leis são responsáveis por uma lenta limpeza étnica da população Nulitana nas três cidades e em toda a região. A primeira é a proibição de portar qualquer metal valioso que não seja cobre. Os nulitanos são remunerados em peças de cobre e em dinheiro barato de papel. As autoridades não podem carregar ouro e prata a menos que tenham uma carta mercante (ou Licença-Ouro). As raízes desta lei estão na ligação do credo do Sol Invicto (Que no livro Auroras e Crepusculários diz: “Ao Senhor dos Céus todo o Ouro e toda a Glória”) e em uma recusa ao hedonismo e conforto. Em um movimento de apologia ao arranjo social, especialistas Tárdicos dizem que a proibição do acesso dos nulitanos ao dinheiro em circulação diminui risco de contaminação por doenças. Com efeito, Menos de 5% dos Nulitanos natos tem acesso à licença-ouro. Isto proibe comerciantes nulitanos de participar Com efeito, mais de 75% dos nulitanos come no máximo duas refeições por dia.

A segunda lei é a lei do chumbo. Os Nulitanos civis são proibidos de portar armas. Um tratado internacional registrado pelo arquiducado com as três potências que o circundam garante isto. E os Nulitanos militares são simplesmente mau-armados pelo governo.

Há uma guarda civil armada a porretes e espadas patrulhando as três cidades, supervisionada pela poderosa Gendarmia Blindada, cujo vigoroso armamento pesado é manejado por inumanos armados a baioneta calada, lança-chamas, máscaras de gás e couraça pesada. Esta força de elite, sob comando do próprio arquiduque, é composta por criaturas que não tem qualquer traço em comum, convívio ou relacionamento com qualquer outra raça. Kodmarr a criou com ex-soldados veteranos das tropas da Hegemonia, seres violentos e implacáveis. São da raça dos Brutos, também conhecidos como Inumanos, Orcos, Malditos, dentre outros apelidos. Eles vestem roupas pesadas, usam máscaras de gás, carregam metralhadoras e fuzis calados a baioneta, e tem uma autorização prévia para executar qualquer transgressor da lei que se prove perigoso. Os Brutos são uma raça taciturna, não conseguem dialogar fora de sua língua mais do que seis ou sete palavras. Esta polícia atira para matar e jamais questiona uma ordem. Com efeito, muitos civis são executados por uma força policial alienígena diante de sua realidade, e incapaz de compreendê-los.

Talvez por isso seja a força mais poderosa do Reino. O Exército nacional é uma piada inútil. Um conjunto de corporações mercenárias ligadas a milícias de agiotas e estelionatários, armados com alabardas e armaduras de quatrocentos anos atrás em uma era onde as guerras são lutadas com pólvora e trincheiras.

A seguir: Facções, Gangues, guildas e partidos políticos de Claustroburgo, a Ex-capital do Arquiducado.

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Mandé Malé
Nulitania

Eu escrevo fantasia por que a realidade é ainda mais estranha do que a Ficção.