O QUE SÃO NULITANOS?

Mandé Malé
Nulitania
Published in
4 min readAug 16, 2019

[OFF] muitas pessoas me param a anos, nos meus playtests e me perguntam, depois de todas as descrições, lores, às vezes no meio do roleplay: “Nulitanos, então, são humanos?” Você pode ter sua resposta. Mas a minha é: não. Possivelmente, não. E isso é algo que busca tornar o jogo assustador. Mecânicamente os nulitanos são humanos normais. Em aparência, o mais das vezes humanos normais. Em pensamento e sentimento, humanos normais. Então, porque teimo em dizer a você o contrário?

Pense no fedor de centenas de cadáveres negros ao sol, sob um balé de moscas e vermes na vala comum de uma selva congolesa. Ou no cheiro de merda, urina, sangue e estupro do banheiro de uma cela do Carandiru. Pense nas cinzas dos mortos caindo como neve das chaminés de Auschwitz. A luz total, calcinante, ofuscante de Hiroshima, obliterando décadas, séculos, vidas inteiras em frações de segundo. O que é a humanidade quando se está do outro lado do fuzil, em uma guerra? Quando se tem nas mãos uma arma, na mente uma ordem, no coração um ódio ou uma total indiferença? Até que ponto o outro sob a mira é humano quando se é o atirador?

No RPG normalmente a gente tem a liberdade total de cortar a cabeça de um goblin qualquer. Com goblin não se fala. Goblin se mata. Em Nulitânia a raça-goblin é a nossa. Aqueles Goblins ali são poderosos, respeitados, valorizados. A grande maioria deles está trabalhando arduamente para pagar suas contas, e não servindo de bucha de canhão para um necromante sádico e pouco criativo saído da cabeça de um mestre preguiçoso.

No RPG normalmente somos os heróis cavaleirescos que marcham pelo mundo enfrentando Trolls, Gnolls, Ogros pela simples forma como eles não falam nossa língua, não tem a cor da nossa pele, e são sempre pouco dialogáveis, incivilizados ou desinteligentes. Engraçado que na África do Sul o Yellow Mellow do Apartheid matava pretos pelas mesmas razões. É divertido ser um aventureiro? Sim. Talvez seja divertido participar de um genocídio também, no fim das contas.

Nulitanos não podem ser humanos. Eles ocupam neste jogo o papel que o pobre Kobold ocupa nos jogos normais de fantasia. Ele é a uma criatura ‘matável’. Um ser cuja vida não lhe é própria. Um pária. Um nulo.

Nulitanos não podem ser humanos pois não são uma espécie. São uma sub-espécie. Muitos os consideram uma mutação, um problema, uma doença. À luz da ciência real de nosso mundo, os humanos são Homo Sapiens-Sapiens. Uma espécie completa, dominante, senhora de si. Os Nulitanos são talvez literalmente na ficção o que os nazistas usaram na vida real para definir os judeus: Uma sub-raça parasítica. Ao longo da estória, elfos, goblins, anões, cada arquétipo racial Tolkeniano cruzou com o povo Nulitano. Foram recompensados com descendentes de vida mais curta, traços mais brutos, menor sagacidade, marcados por uma maldita mediocridade que os levou a indolência e apatia dos dominados.

Talvez a esta hora do texto o auspicioso leitor esteja com o estômago embrulhado, confuso, ou apenas torcendo o nariz em discordância. Peço-lhes perdão pelo mal causado pelo que escrevo. Garanto que os males que aqui foram enumerados foram de um sabor ainda mais amargo do que estas palavras.

Nulitanos não são humanos, para a sorte deles. São imunes aos nossos sofrimentos reais. E isso é uma dádiva: não podem ser humanos pois são seres ficcionais. Um nulitano vive em média três horas entre o momento em que seu personagem é sorteado e o momento em que o Playtest acaba. Alguns já vivem a anos na memória e na imaginação de quem os jogou ou escreve sobre eles. Mas o Nulitano é uma criatura da mente, e tão só. Uma distração do verdadeiro eu do jogador.

Você não precisa, de todo, considerar um Nulitano como uma “pessoa comum”. Temos usado nomes comuns e preocupações comuns, aparencias comuns para os Nulitanos, mas eles podem ser de qualquer peso, podem ter traços de outra raça, podem inclusive ter qualquer cor — até cores que não existem. Há nulitanos vermelhos e verdes por aí na Trágia, vocês verão.

Talvez a estória da Nulitânia acabe a História de todos os povos cujo país terminou balcanizado, Iraq-like, desestabilizado, retalhado por fronteiras artificiais, palestina, afeganistão, curdistão. Talvez o jogo nos leve a sermos como os Índios do faroeste, forasteiros em sua terra natal. Talvez sejamos heróis e façamos um mundo melhor pode podemos viver. Talvez, tudo talvez.

Mas Nulitanos são Metáforas. Alegorias. Personagens. Avatares de quem joga, proxis em um mundo funcional, ou completas piadas. Eles podem ser torcidos, moldados, reformatados pela imaginação do jogador e do mestre. O Horror do universo Nulitano é a fragilidade da condição humana que o personagem enxerga em si. Ele sente, ama, sonha, come, dorme, faz amor ou guerra como você que lê isto é capaz de fazer. E NÃO HÁ NADA TÃO HUMANO quanto se indagar sobre a própria humanidade. Defendê-la. Lutar por ela.

He cried in a whisper at some image, at some vision — he cried out twice, a cry that was no more than a breath — ‘The horror! The horror!

— Joseph Conrad. The Hearth of Darkness.

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Mandé Malé
Nulitania

Eu escrevo fantasia por que a realidade é ainda mais estranha do que a Ficção.