A inevitável humanidade dos dados

Equipes que atualizam os dados da Covid-19 são as mesmas que atendem pacientes nas condições mais insalubres possíveis

Marcelo Soares
Numeralha
5 min readMay 6, 2020

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Na segunda-feira (4), a curadoria do Moments do Twitter registrou que o Brasil teve seu “quarto dia de queda” nos novos casos de coronavírus.

Com base nos meus amplos poderes proféticos, previ a manchete do dia seguinte:

Pois não deu outra:

Não, eu não sou profeta e nem vidente. Apenas tenho olhado os dados com atenção, desde o dia 9 de março, no site da Lagom Data.

Existe um nome técnico para essa redução de novos casos de coronavírus que o Brasil viu nos últimos dias. Chama-se “feriadão”. Repare no mapa abaixo.

Isso não é nenhum problema, e é um tanto constrangedor precisar escrever isso. Não devia espantar ninguém — e nem ser tomado como “tendência”. Esse engano de leitura, sim, é um problema.

Análise de dados não depende só de ferramentas; depende em grande parte de entender contextos. Não se trata só de apertar os botões certos.

Quando se fala de dados, muitas pessoas parecem ter a impressão de que eles são entes etéreos, exatos, que surgem por vontade divina ou pela ação de máquinas de adorável graça. Nada mais enganoso. “Os dados não vêm da cegonha”, costumava lembrar o cientista político H. Douglas Price, um inovador no uso de dados para análise política, à turma do mestre Philip Meyer em Harvard há meio século. Isso é uma grandeza, na verdade.

Quanto mais um analista consegue “olhar nos olhos” dos dados, mais se consegue extrair deles. Isso porque lá na ponta, os dados são humanos. Demasiadamente.

No caso do coronavírus, os dados se referem a pessoas doentes e são registrados por pessoas que andam trabalhando demais nos últimos dias, sob condições adversas: mortes de pacientes, pessoas desesperadas por atendimento, condições materiais deficientes, risco de contágio pessoal. Em finais de semana e no feriadão, as equipes trabalham em regime de plantão. Ou seja, parte dos trabalhadores da saúde vai para casa ter uns momentos de merecido descanso em meio a tanto sofrimento.

Isso faz com que o número de registros caia nos finais de semana e no feriadão.

Não quer dizer que caiam as mortes e os contágios, mas cai a quantidade de testes processados e também a entrada de dados no sistema de informação epidemiológica. Acumula serviço para quando as equipes voltarem ao trabalho. É por isso que no primeiro ou segundo dia da volta do final de semana e do feriadão surgem registros recorde.

Geralmente muitos não percebem isso, porque não estão olhando os dados. Mais ainda, o sistema de informação epidemiológica não foi projetado para o tempo real. As informações no Datasus e nos tabnets estaduais geralmente só entram agregadas por mês um ou dois meses depois do fechamento do mês a que se referem.

(E olhe que aqui sequer estamos falando da parte que indica a subnotificação, estamos falando só da fatia da torta que as autoridades sabem ser coronavírus.)

Isso ocorre em parte porque o Brasil é um país imenso e profundamente desigual em seus recursos materiais e humanos. A grandeza do sistema único de saúde é que um município rico como São Paulo tem as mesmas obrigações de fornecer informação que um município pobre da Amazônia. O problema é que as condições de produção de informação em ambos são completamente diferentes.

Essas questões seriam mais fáceis de equalizar se tivéssemos liderança efetiva do Ministério da Saúde. Na gestão atual, faltou essa mão. Quando o então ministro Mandetta resolveu mostrar serviço na saúde pública, o chefe dele começou uma batalha de egos que fez com que os servidores do ministério batessem ponto de manhã sem saber quem estaria no comando à tarde, durante algumas semanas cruciais para a evolução da doença.

Com isso, cada Estado se virou como pôde para fornecer dados sobre a doença. Alguns melhor, alguns pior. O índice da Open Knowledge Brasil fez mais pelo aperfeiçoamento dos dados dos Estados do que o Ministério da Saúde: para tentar aparecer melhor no ranking, os Estados correm para implementar novidades nos seus sites até a quarta-feira, dia em que as pesquisadoras da OK fazem a avaliação.

Hoje, a maior parte dos Estados fornece a informação por município de uma maneira muito mais razoável do que era no início. Pois só agora é que o Ministério da Saúde começou a prometer que vai publicar o dado municipal a partir da próxima segunda-feira — dois meses e dois dias depois do começo deste modesto monitoramento. Vou acompanhar pelos primeiros dias, comparando com o que captamos dos Estados. Se e quando estiver bom o bastante, usarei diretamente o dado do ministério. Torço para que fique bom, pois poupará um tempo precioso e permitirá outros tipos de análise por aqui.

Bom dia a todos nós!

ASSOCIE-SE AO MONITORAMENTO

Este levantamento seria muito mais difícil sem a colaboração de Fabio Freller e Pedro Teixeira, meus ex-alunos em edições diferentes do módulo de Direitos Humanos do Projeto Repórter do Futuro. E tem mais ideias a caminho.

Preciso melhorar a estrutura deste monitoramento, e para isso criei um crowdfunding. Caso você queira apoiar o projeto, clique aqui e saiba tudo a respeito.

Quero aprimorar a forma de armazenamento dos dados, que está pesada para o que uso hoje; a apresentação dos gráficos, que ainda é feita de maneira artesanal; a coleta dos dados, que toma mais tempo a cada dia, embora com o apoio dos dois jovens jornalistas esteja bem melhor; e a plataforma do site, que hoje torna mais difícil arquivar os textos para consulta futura.

As categorias de colaboração são bastante flexíveis, em modelos de assinatura que vão de um cafezinho (R$ 5 mensais) a serviços modestos de consultoria para sua equipe. Na terceira categoria (R$ 50 mensais), você recebe acesso direto ao histórico completo dos dados coletados e enriquecidos pela Lagom Data, atualizados dia a dia.

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