Continuamos sem conhecer o mercado de ebooks no Brasil

Estudo badalado na imprensa na semana passada não leva em conta um aspecto crucial do comportamento do leitor

Marcelo Soares
Numeralha
4 min readAug 28, 2017

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Minha amiga Verônica mandando a real

Na semana passada, o Sindicato Nacional dos Editores de Livros (SNEL), a Câmara Brasileira do Livro (CBL) e a Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe), da USP, lançaram o primeiro Censo do Livro Digital (baixe aqui). A publicação rendeu muito comentário na imprensa e sites especializados:

Participação de e-books no mercado do país é ínfima, mostra pesquisa inédita (Folha)

63% das editoras brasileiras preferem ignorar os e-books, diz Censo do Livro Digital (PublishNews)

Mercado editorial fatura só 1,1% com venda de livro digital, diz estudo (G1)

Ou seja: está comprovado que o livro digital é algo que não pegou no Brasil, certo? Não exatamente. Ou, pelo menos, o estudo não dá elementos para ter certeza.

Sendo leitor de ebooks há uns oito anos, porém, tenho algumas hipóteses verificáveis sobre o que ficou faltando e que torna o estudo feito praticamente míope:

1. Não sabemos nada sobre os leitores e sobre os “ecossistemas” de leitura digital

O problema do estudo está na metodologia adotada: eles questionaram as editoras brasileiras sobre o que vendem de versões digitais do seu catálogo. O fato de a pesquisa ter focado na oferta nacional exclui duas partes cruciais para compreender o mercado: a demanda e a distribuição.

Não sabemos muito sobre os usuários de ebooks no Brasil. Não sabemos faixa de renda, não sabemos hábitos de leitura, não sabemos em que língua eles leem, não sabemos com que frequência compram, não sabemos objetivo da compra (para lazer, para estudo, para atualização…).

Como a pesquisa foi feita com as editoras, perdeu-se de vista as vendas em geral. Para captar as vendas em geral, seria preciso fazer uma pesquisa com as livrarias. A Amazon (que não abre dados) tem o Kindle, a Saraiva tem o Lev e a Livraria Cultura voltou a oferecer o Kobo, mas como é que se distribuem os usuários entre esses ecossistemas? Quanto eles compram de editoras nacionais? Quanto compram de editoras estrangeiras?

2. Qual a prevalência de leitura de títulos em outras línguas?

Para quem busca se manter atualizado no debate internacional sobre sua área, pode haver claras vantagens em comprar o ebook no original. A oferta disponível para esses leitores foi claramente subestimada no estudo. Sim, não sabemos o quanto esses leitores são prevalentes, mas já falamos disso antes.

Em vários casos de livros que me interessam muito, eu acabo comprando a versão eletrônica original. Há algumas vantagens muito importantes: o ebook é absurdamente mais barato do que a versão impressa importada, chega na hora (em vez de precisar esperar dois, três meses) e não raro é mais barato até do que a versão impressa da edição nacional.

OK, lê-se pouco até em português no Brasil, mas acho que é importante levar isso em conta em termos de ebook, porque: 1) leitor de ebooks geralmente tem o hábito de leitura; 2) pelo preço do aparelho, vale lembrar que renda e escolaridade estão altamente correlacionadas no Brasil, então é razoável supor que não é insignificante a parcela de leitores brasileiros que buscam as versões originais dos livros que lhes interessam.

3. Os títulos brasileiros disponíveis digitalmente são caros demais

Os preços ainda são muito próximos aos do livro impresso. Sim, o livro digital tem custos próprios. Puxando lá das minhas leituras de “Information Rules”, do Carl Shapiro e do Hal Varian (que aliás custa R$ 75 impresso e R$ 72 digital), o custo de produção do original pode ser tão alto quanto. Em qualquer produto de informação, caro mesmo é produzir a primeira cópia. Esse é o custo fixo, que se dilui com o volume de produção. Os custos variáveis do livro impresso, como impressão, distribuição, entrega, armazenamento e manuseio em loja, também reduzem um pouco nas tiragens, mas são completamente diferentes e menores no livro digital.

Fiz um levantamento aqui com 21 livros publicados recentemente ou nem tanto no Brasil, comparando os preços de Amazon, Cultura e Saraiva. São poucos títulos, quero ampliar a seleção antes de abrir os dados, mas esta é a conclusão preliminar:

  • Em média, os ebooks nacionais custam 23,5% menos que a versão impressa. Os mesmos títulos em inglês (onde disponível) custam 34% menos do que a versão impressa.
  • Onde disponível, se formos comparar a versão impressa estrangeira com a versão impressa nacional, o importado é 44,8% mais caro. (Sem falar que demora muito para chegar.)
  • Onde disponível, se formos comparar a versão digital estrangeira com a versão digital nacional, o ebook em inglês é 6% mais caro. E geralmente é lançado meses antes do nacional.
  • Em alguns dos títulos que levantei, especialmente nacionais pop como o último do Leandro Karnal, a edição digital chega a ser oferecida inclusive a preço levemente mais alto do que a edição impressa.

4. O que é que o estudo da semana passada revela, então?

Revela basicamente que as editoras brasileiras não estão sabendo trabalhar com ebooks, por um motivo ou por outro. Para que elas possam atuar melhor nesse mercado, precisam entender sobretudo o comportamento do leitor. Esse não foi o foco do estudo.

Sem as outras duas pernas do mercado, o leitor e a distribuição, é como se estivéssemos revivendo a fábula dos três sábios cegos e o elefante, só que com apenas um sábio cego. Ele pode estar dizendo que o elefante parece uma cobra, uma árvore ou uma parede. Mas o que é o elefante mesmo?

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