Eu comi carne de Chernobyl

Carne importada da Europa em 1986 e 1987 tinha resíduos de radiação do acidente mostrado na série da HBO

Quem caminha pela Paulista aberta aos domingos já deve ter trombado com uma banda de jovens músicos gaúchos chamada Picanha de Chernobill.

Sempre achei divertido o nome, em parte porque eles são jovens demais para terem comido a carne supostamente contaminada pela radiação do acidente da usina nuclear ucraniana. Eu, que era criança, lembro até do sabor da carne. Ou da falta de sabor.

Quem assistiu à incrível série Chernobyl, da HBO, deve lembrar que o acidente com a usina nuclear ocorreu em 26 de abril de 1986.

Isso foi dois meses depois de ser anunciado o Plano Cruzado, que congelou os preços de tudo nos supermercados no governo Sarney.

Era uma tentativa de debelar a inflação, inclusive recrutando a população para agir como “fiscal do Sarney” e promovendo batidas nas lojas, seguidas por câmeras. Quem aumentasse os preços tinha as portas fechadas.

Foi uma medida popular, mas não deu certo.

Na prática, proibidos de aumentar os preços, os supermercados começaram a racionar os produtos. Prateleiras esvaziaram porque os lojistas não queriam repor ao preço congelado. Isso não era proibido.

E aí, no país que mais produz carne bovina no mundo, começou a faltar carne. Os pecuaristas não queriam abater animais se o preço não aumentasse.

Então, o governo resolveu importar carne. E importar de onde fosse mais barato.

Pouco depois do Plano Cruzado, houve o acidente nuclear em Chernobyl, na então União Soviética. A série mostra como uma região num raio de quase 300km ao redor da usina teve de ser esvaziada de moradores e inclusive havia uma patrulha especializada no abate de animais.

Isso derrubou a demanda por carne soviética, o que derruba o preço.

Foi daí que o governo brasileiro teve a brilhante ideia de importar carne, por meio da Conab.

Parte dessa carne veio da União Soviética. Não tinha problema, disseram. A carne começou a chegar a partir de agosto de 1986.

Eu lembro do sabor dessa carne. Era uma carne dura, rançosa. Não sei se por ser hipercongelada. Era horrível.

A carne foi importada entre 1986 e 1987. Depois o caso foi à Justiça. Em 1988, o Judiciário proibiu a venda da carne de Chernobyl no país inteiro.

Mas até aí, entre 1986 e 1987, só em São Paulo, foram consumidas 65 mil toneladas de carne de Chernobyl.

Só que nessas idas e vindas ainda havia muita carne armazenada e estocada, congelada. O Brasil mudou duas ou três vezes de moeda enquanto se decidia o que fazer com essa carne.

Em 1990, decidiram reexportar para outros países, mas a Justiça barrou.

Anos mais tarde, um funcionário da Conab, que guardava a carne, processou o governo e ganhou: segundo ele, foi contaminado pela radiação.