Fred Mosteller, inovador da estatística, faria cem anos hoje

Marcelo Soares
Numeralha
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5 min readDec 24, 2016

O século 20 foi uma época muito interessante para a criação de conhecimento. Com relativamente poucos tijolos conceituais e muito cimento de imaginação, era possível erguer grandes obras, que geralmente poderiam ser compreendidas de maneira relativamente fácil por qualquer cidadão não especializado, desde que minimamente atento.

Frederick Mosteller (1916–2006), um estatístico de quem você dificilmente ouviu falar, estava no lugar certo, nas décadas certas. Ele faria cem anos hoje. Mestre da estatística aplicada, foi chamado em 1979 pela revista “Science” de “o mediador entre os estatísticos e outros cientistas”. Colaborou com diversas áreas do conhecimento, do esporte à política, da educação à anestesiologia. Era um estatístico que se interessava por todos os assuntos humanos e escrevia em língua de gente — inclusive com leveza.

Entre os estudos a que aplicou seus conhecimentos estatísticos, estavam:

  • Dispersão de bombas durante a segunda guerra mundial
  • Análise dos erros das pesquisas na eleição de 1948, quando os institutos diziam que daria Thomas Dewey e quem ganhou foi Harry Truman (ele descobriu que as pesquisas mostrariam empate técnico se não tivessem sido incluídos alguns pressupostos errôneos na análise)
  • Efeito de anestésicos à base de halotano — que, suspeitava-se, causava danos ao fígado dos pacientes (não era pior do que outros anestésicos)
  • Foi o primeiro sujeito a fazer um estudo acadêmico sobre estatísticas de beisebol, nos anos 50 (demonstrando que nem sempre o time que ganha é o melhor)
  • Impacto das condições de vida familiares no rendimento escolar das crianças (faria mais efeito dar dinheiro às famílias do que às escolas)
  • A revisão estatística do Relatório Kinsey, que chocou a sociedade dos EUA com afirmações estatísticas sobre a vida sexual de sua população (tinha problemas de metodologia, mas eles não derrubavam as conclusões; com essa chancela e algumas recomendações metodológicas, não houve cortes de recursos para pesquisas sobre sexualidade)
  • A criação do avô dos MOOCs atuais, tipo Coursera: “Continental Classroom”, uma espécie de Telecurso que passava na NBC no começo dos anos 60. Mosteller ensinou estatística
  • A criação do departamento de estatística de Harvard; segundo ele, o processo de convencimento do reitor para criar isso foi “MUITO LENTO”, assim com maiúsculas (hoje, o site do departamento não traz nenhuma menção ao centenário do seu criador). Mais tarde, ele presidiu o departamento de bioestatística de Harvard
  • A identificação de quem eram os autores anônimos de alguns dos “Federalist Papers”, a partir da frequência estatística de cacoetes de texto dos “pais da pátria”

Segundo seu obituário publicado no site da American Statistical Society, “a bibliografia de Fred lista 65 livros, quase 350 papers in livros e revistas acadêmicas, 41 publicações miscelâneas e 26 resenhas”. A única obra de sua autoria publicada em português saiu em Portugal.

Ultracolaborativo, Mosteller era conhecido por topar a coautoria de quase qualquer um que lhe solicitasse. Num jantar oferecido quando Fred completou 70 anos, um amigo seu leu um poema sobre a lenda das coautorias do estatístico: Fred só não teria escrito ainda em parceria com um ermitão que vivia numa casa de barro no topo de uma montanha de uma ilha do Pacífico.

Quando ele morreu, há dez anos, mereceu obituário no New York Times.

Conheci o trabalho de Mosteller quando lia “A Teoria que Não Morreria”, sobre a evolução dos usos do teorema de Bayes sobre as probabilidades condicionais. Foi essa a ferramenta que ele usou para determinar a autoria dos “Federalist Papers”.

A partir daí, obtive um livro-texto seu sobre estatística, o “Beginning Statistics with Data Analysis”. Extremamente didático e bem escrito. Bem-humorado até, se você acredita que existe espaço para um tom leve no ensino da estatística. Durante algum tempo, eu escapava na hora do almoço com esse livro, um caderno, lápis, borracha e uma calculadora para fazer alguns dos exercícios à mão enquanto tomava o meu então tradicional expresso com stroopwaffels na padaria em frente à Folha.

Mas seu livro mais fascinante é sem dúvida “The Pleasures of Statistics”, que encontrei por acaso na Martins Fontes da Paulista a um preço razoável há um ano e pouco.

Ele é uma espécie de autobiografia, com ensaios em primeira pessoa. Na primeira metade, Mosteller conta os bastidores dos seus ensaios mais influentes; na segunda, ele faz uma autobiografia mais tradicional, contando sobre sua família e sua educação.

O primeiro capítulo desse livro dedica-se ao extremamente atual tema dos erros nas pesquisas. É onde ele conta seu estudo sobre os erros nas pesquisas eleitorais de 1948.

Pelo que conta Mosteller em sua biografia, os problemas das pesquisas em 1948 não eram muito diferentes dos problemas registrados em 2016: “algumas pessoas não responderam; outras responderam, mas incorretamente; o entrevistador podia influenciar a resposta; algumas pessoas não tinham opinião; e algumas pessoas mudaram de ideia”.

“Nossa preocupação com o erro nas pesquisas eleitorais era que, a menos que algum grupo com autoridade fizesse um estudo sério sobre o que ocorreu com as pesquisas em 1948, todos os estudos sobre opiniões e atitudes ficariam com má reputação”, escreveu ele.

O estudo foi apoiado pela Associação Americana de Pesquisas de Opinião Pública (AAPOR), que já anunciou que vai repetir a iniciativa com os dados das pesquisas de 2016. Os resultados saem até maio.

Como ficou em 1948?

“Concluímos que os erros de 1948 não estavam muito fora de linha com os erros em outras eleições, e que as pesquisas nas eleições presidenciais ainda não haviam demonstrado a capacidade de melhorar suas previsões”, escreveu. “O comitê disse que as duas maiores causas de erros foram (a) erros de amostragem e entrevistas e (b) erros de previsão, incluindo a avaliação do comportamento futuro de eleitores indecisos e a falta em levar em conta as mudanças de intenção de voto próximo ao fim da campanha (uma crítica bastante justa, mas isso não havia sido muito usado em eleições anteriores).”

O estudo foi publicado apenas oito semanas da eleição, um recorde.

Enfim: aqui em casa, quando formos brindar no jantar de natal, um brinde será erguido ao centenário de Fred Mosteller.

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