Há quatro anos, em Santa Maria

Algumas memórias de uma semana como enviado especial ao local da tragédia da Boate Kiss, que matou 242 jovens

Marcelo Soares
Numeralha
7 min readJan 27, 2017

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Há quatro anos hoje, eu estava acordando numa visita a Porto Alegre quando minha mãe avisou: o telefone estava tocando. Era de São Paulo. O pessoal do jornal pediu que eu fosse imediatamente a Santa Maria, porque tinha havido um incêndio numa boate e poderia haver centenas de mortos. Peguei o primeiro ônibus na rodoviária e fui.

Você conhece a história. É Smoke on the Water tocada ao contrário em ritmo de tchê music—alguém acendeu fogo num lugar fechado e lotado, mas enquanto em Montreux ninguém morreu, só o cassino veio abaixo, em Santa Maria houve 242 mortos e o prédio da boate continua em pé.

Os números: 242 mortos, zero condenados.

Guardo na gaveta até hoje uma pulseirinha da boate, que recolhi na calçada; estava ao lado de um par de bons sapatos abandonados em meio ao tumulto. Não faço ideia sobre como saiu quem a usava. Mas para mim ela é um lembrete da fina linha que separa a alegria da tragédia.

Passei boa parte daquela noite e madrugada no velório coletivo, no ginásio. Conversei com as famílias de pelo menos 20 vítimas, ao lado do caixão. Precisava contar quem eram aqueles jovens. A primeira conversa era devastadora. A segunda era dolorosa. A quinta é desconfortável. Na sexta a gente descobre que as pessoas realmente querem conversar sobre aqueles a quem perderam. E aí a tarefa fica menos difícil.

Fiquei uma semana por lá, com uma equipe incrível. Foi período suficiente para pensar sobre vários assuntos, incluindo acesso a informações públicas, capital humano e a reação das pessoas às câmeras. Vamos ficar no capital humano por hoje.

Enviei diversos textos naquela semana, mas um me é especialmente querido e, por várias circunstâncias, inclusive a abundância de cobertura do assunto e o fato de haver mais textos meus no mesmo dia, acabou sendo pouco lido. Ele está lá embaixo.

Fiquei particularmente intrigado pelo fato de a tragédia ter ceifado pilhas de universitários, muitos dos quais estudavam ciências agrárias num dos principais centros universitários dedicados ao tema num Estado que vive disso. Eram 65 estudantes daquele centro, na última vez em que atualizei minha planilha. E havia uma formatura a caminho, para a qual a balada na Kiss em parte levantaria fundos (nenhum formando morreu).

Os planos da formatura precisaram mudar, mas a colação de grau tinha de acontecer. Foi a formatura mais triste que já vi. Descrevi assim:

Numa cerimônia sem música, togas e risos, 14 estudantes do curso de zootecnia da UFSM (Universidade Federal de Santa Maria) colaram grau ontem pela manhã. Eles foram os primeiros a se formar na universidade após o incêndio que matou 114 alunos da instituição, sendo cinco deles desse mesmo curso.

A colação de grau era necessária para que os formandos pudessem pegar os diplomas em tempo de participar das próximas seleções para mestrado, explicou a coordenadora do curso, professora Rosamélia Berleze. (…)

Havia poucos presentes. Um era o filho recém-nascido de uma das formandas. As bandeiras ali colocadas — do Brasil, do Rio Grande do Sul e de Santa Maria — estavam a meio mastro.

Foto: Adriano Vizzoni

Entre a abertura, a entrega dos certificados e as saudações finais, a cerimônia durou cerca de 40 minutos. Ao final, os formandos recolheram os buquês e o banner e os levaram até a fachada da boate.

Ao chegar à rua dos Andradas, onde centenas de buquês e mensagens de pesar deixadas por familiares e amigos estão depositados, os agora zootécnicos depositaram suas flores e penduraram o banner. Depois disso, fizeram uma oração silenciosa em círculo e deixaram o local em fila.

Foto: Marcelo Soares

Os discursos dos professores me atingiram em cheio. Também sou professor, lembrei dos meus alunos. Também fui aluno, lembrei dos meus mestres. Minha orientadora no curso de jornalismo era formada pela UFSM, e um colega dela, professor da UFSC nos anos 90, foi um dos caras com quem eu mais aprendi na vida, amigo até hoje.

Voltei à universidade naquela tarde, para procurar os professores que conheciam os alunos que morreram, os que coordenavam as pesquisas que eles faziam. Queria ter uma ideia do capital humano perdido na tragédia. O texto ficou assim:

Centro de agronomia da UFSM relembra vítimas; 65 eram estudantes do curso

MARCELO SOARES
ENVIADO ESPECIAL A SANTA MARIA

02/02/2013

Foto: UFSM

O prédio verde e branco do Centro de Ciências Rurais, a pouco mais de um quilometro do pórtico de entrada da Universidade Federal de Santa Maria, recebeu na última semana diversos pais que buscavam refazer os passos dos filhos perdidos no incêndio da boate Kiss.

“Eles querem conhecer onde o filho circulava: a sala de aula, o laboratório, o grupo de pesquisa”, diz o agrônomo Thomé Lovano, diretor do CCR e pesquisador do preparo do solo para o manejo agrícola.

Mais de um em cada quatro mortos estudava no prédio — até sexta, eram 65 alunos. A festa destinaria parte da renda à formatura da Agronomia, mais antigo curso do centro. No incêndio, a UFSM perdeu quase 4% de seus futuros agrônomos.

Localizada na zona rural gaúcha, a UFSM existe desde 1960. Tem nas ciências rurais sua área de maior desenvolvimento tecnológico, com oito programas de pós-graduação. Produtores e técnicos rurais enviam seus filhos para estudar lá.

“É uma perda incalculável dos projetos das famílias de preparar os filhos para seguir o negócio. Muitas ficaram sem herdeiros”, diz Lovano.

Os murais refletem a normalidade pré-tragédia. Há notas de disciplinas e o cartaz convidando a uma cavalgada dos veterinários que ocorreria ontem. Uma greve fez o segundo semestre de 2012 ter previsão de fim apenas em março de 2013.

Rosamélia Berleze, coordenadora do curso de de Zootecnia, diz que os alunos de Ciências Rurais são muito unidos e estão abalados. “São uma turma que gosta de se reunir para tomar seu chimarrão”, lembra.

O CCR perdeu 65 alunos até sexta-feira. Dez estavam no segundo semestre de Agronomia. Como ainda há 15 alunos internados, as baixas no centro correm o risco de aumentar.

Toshio Nishijima, coordenador do curso, só falou publicamente sobre a perda de 26 dos seus alunos na acolhida aos pais e à comunidade acadêmica, na quinta-feira. Seu discurso lembrou as adversidades enfrentadas pelo pai ao emigrar do Japão durante a Segunda Guerra Mundial e a impassividade dos samurais diante da dor. Ao final, retirou-se sem mais nada dizer.

Sete dos alunos perdidos tinham bolsas de iniciação científica. Nelas, eles participam da pesquisa de um orientador com título de doutor ou equivalente. As bolsas visam identificar talentos para a pesquisa acadêmica.

Marton Matana, estudante de Engenharia Florestal vindo de Ibarama (a 128 km de Santa Maria), pesquisou o efeito dos eucaliptos na hidratação do solo e como o uso de maquinário pesado em sua colheita afeta a terra, segundo Paulo Gubiani, pesquisador do laboratório de solo.

Raquel Daiane Fischer, 18, estudava Tecnologia de Alimentos. Filha do sindicalista rural Dari Conti, conhecia pecuária desde menina — seu pai criava gado de leite em Horizontina (a 234 km de Santa Maria). Ela pesquisava aspectos do processamento industrial de carnes, orientada pela professora Rosa Cristina Prestes.

Lovano avalia que para dar a volta por cima após as perdas será preciso estimular a reflexão sobre a redução dos riscos no dia-a-dia. “Faremos nosso trabalho com mais qualidade ainda, um trabalho que esses alunos que se foram não poderão fazer”, afirma.

“Ainda estamos perdidos”, disse Berleze, coordenadora do curso de Zootecnia. Na sexta-feira, uma turma de 14 formandos seus colou grau sem música ou toga. Precisavam dos diplomas a tempo para se inscrever em seleções de mestrado.

Nessa primeira formatura desde o incêndio, o reitor Felipe Mello Müller pediu a ajuda dos acadêmicos na volta às aulas, na segunda-feira. “A vida continua. Temos de estar muito sensíveis e fortes para retomar as atividades. No que puderem ajudar, ajudem”, disse.

Voltei a Santa Maria no ano passado, para outra reportagem. Fiquei hospedado a poucas quadras da Kiss, e fiz uma visita à rua para ver como estava o local. Era estranho — muito familiar e ao mesmo tempo bem diferente. Mas achei interessante ver que o prédio dá marcas de que a cidade continua lembrando e cobrando. Precisa mesmo.

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