Mike Daka, da Zâmbia, sabe tudo de audiência

Veterano do jornalismo africano conhece como ninguém o público de sua rádio, a Breeze.fm

Marcelo Soares
Numeralha
4 min readMar 30, 2019

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Minha primeira conversa com Mike Daka, registrada pelo fotógrafo da Deutsche Welle Akademie

Participei há algumas semanas de um encontro de consultores de mídia na Deutsche Welle Akademie, em Bonn (Alemanha). Foram só dois dias, mas os colegas eram incríveis.

Queria lhes apresentar um desses colegas, que virou amigo e ídolo: Mike Daka. Organizamos juntos uma mesa sobre desenvolvimento de audiência. Eu falei sobre como conhecer o público a partir das pistas digitais deixadas em sistemas de medição como analytics; ele falou de sua experiência criando a rádio Breeze.fm com o dedão sempre no pulso do público.

Mike mora em Chipata, na Zâmbia. Pois é, eu nunca tinha ouvido falar, também, até há três ou quatro semanas atrás. É uma cidade rural, próxima à fronteira com o Malawi e não muito longe da fronteira com Moçambique. (Confesso que eu era ignorante sobre a Zâmbia também.)

Inicialmente eu o conhecia por dividirmos a mesma página do livreto de perfis dos participantes, organizado em ordem alfabética.

Mike tem muito chão como repórter de rádio e professor de jornalismo em seu país. Nos anos 80, cobriu a visita do presidente do seu país ao Brasil e chegou a conhecer o Rio e Brasília, durante o governo Sarney. Teve uma educação internacional: Zâmbia, Índia, Alemanha e Reino Unido.

Depois, virou professor de jornalismo no Instituto de Comunicação de Massa da Zâmbia, em Lusaka. Era daqueles professores bons, que estimulam os alunos a serem os malas que fazem as perguntas difíceis às autoridades. Isso não lhe rendeu muitos amigos no governo — que, em última instância, era seu chefe — , mas acabou lhe rendendo a oportunidade da sua vida.

Em 2002, ele era diretor do instituto e para sua surpresa teve aprovado seu pedido de licença para abrir uma rádio no interiorzão do país, na sua cidade natal. Ele acha o governo deu a licença visando tirá-lo da sala de aula.

Segundo ele, as rádios na Zâmbia funcionam em grande parte como qualquer rádio do interior do Brasil: tocam música, comerciais e nos intervalos veem o que transmitir, geralmente bate-papo e leitura de notícias. Rádios comunitárias no Brasil vão na mesma toada, muitas vezes.

Em sua carreira de professor, Mike desenvolveu algumas ideias de como uma rádio deveria funcionar. Não era desse jeito. Para botar uma rádio no ar, ele precisaria ter uma ideia de quais são os temas que interessam ao público e eles não encontram nas rádios a que têm acesso atualmente. Precisaria ter planejamento.

Mas, sobretudo, precisaria ter viabilidade econômica: não podia depender de governo, nem apenas de cooperação internacional (embora tenha apoio de algumas fundações), nem de um ou dois grandes anunciantes.

Mike conseguiu uma verba modesta, de US$ 15 mil, para fazer uma pesquisa de audiência e saber o que é que o público queria ouvir e não tinha onde. Com esse dinheiro na mão, visitou o instituto de pesquisas mais prestigioso da Zâmbia, o Ibope deles, e perguntou o que era possível fazer. O instituto conseguia montar a metodologia de amostragem e ajustar o questionário; também podia fazer a análise. Não daria para contratar os pesquisadores.

Para Mike, essa foi outra oportunidade. Ele reuniu os 25 profissionais que tinham topado participar do projeto. Os jornalistas se tornaram os entrevistadores da pesquisa de audiência, conhecendo o público face a face.

A partir dessa pesquisa, Mike teve alguns insights:

  • O público rural de Chipata preferia ouvir programas na língua nativa, Chinyanja; o público urbano preferia em inglês
  • Esse público queria ouvir programas sobre agricultura e saúde, que não havia nas rádios locais
  • As mulheres da área rural ouviam rádio só quando os homens estavam em casa; os homens levavam o radinho de pilha junto para o campo
  • Os horários dos diferentes públicos eram bastante diferentes
  • O público queria ouvir as músicas tradicionais da região, e gravações eram muito raras por lá

Então, ele montou a grade da rádio. Inicialmente, transmitia por quatro horas diárias. Depois foi ampliando. A demanda pela ampliação veio mais rápido do que ele imaginava. As outras opções locais de rádio eram uma oficial, governamental, e outra operada pela igreja católica.

A programação tem foco na comunidade, no interesse público. E é lá que os comerciantes locais anunciam. Durante o horário comercial, a Breeze.fm transmite em inglês e se dirige ao público urbano. No começo da manhã, na hora do almoço e à noite, a rádio transmite em chinyanja. De madrugada, transmite a BBC.

Dois terços da programação são em chinyanja, mesma língua falada em partes do Maláui e Moçambique. Pelo streaming, a Breeze.fm atinge a chamada diáspora, os moradores do Zâmbia que emigraram. O estúdio fica no centro da cidade, que é capital regional. O público visita com frequência.

Mike me relatou as seguintes realizações de sua rádio:

  • Tornou-se uma das mais ouvidas do país, com audiência auditada pelo “Ibope” local
  • Em seis anos, passou a dar lucro. Nas palavras dele: “mostramos que o rádio comercial pode ser viável na África rural”
  • Sua ênfase em saúde e agricultura ajudou a dar orientações que reduziram o número de casos de cólera na região e ajudaram os lavradores de tabaco a chamar as multinacionais do cigarro à mesa de negociação para exigir melhores preços pela produção

De tempos em tempos, eles voltam a fazer pesquisas para entender as mudanças das curiosidades do público e refocar o conteúdo.

Ouçam o Mike falando sobre como a rádio é seu maior experimento acadêmico:

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