O problema das bibliotecas escolares

Marcelo Soares
Numeralha
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3 min readJul 3, 2016

O ex-ministro que assinou a lei de universalização da biblioteca escolar tem apenas 5% das escolas com biblioteca na cidade onde é prefeito

Recentemente, conversei com a secretária de educação de um município relativamente grande.

Ela falava com orgulho de um projeto de leitura nas escolas. Cada sala de aula, ela dizia, tinha uma pequena coleção de livros apropriados para a fase de desenvolvimento das crianças. Os professores abriam um período todo dia para que elas lessem. Também tinham outras iniciativas criativas que colocavam livros à disposição dos alunos sem ser numa biblioteca.

Achei simpático, mas pouco.

Lembrei de quando frequentava a biblioteca da escola, na infância. Gostava de me aventurar em estantes fora do considerado apropriado para a idade. A seleção era bem razoável. Ler Monteiro Lobato já tinha saído de moda (a onda era ver o Sítio na TV), mas a coleção estava toda na biblioteca, ao alcance da mão. Mais tarde, escolas onde fiz o segundo grau, fui exposto a Shakespeare e Ian Fleming, além de Umberto Eco e José Saramago, estes escolhidos pela professora que cuidava do acervo.

Perguntei à secretária por que não havia biblioteca nas escolas que ela administra. A resposta: por lei federal de 2010, as bibliotecas escolares precisam ter um profissional específico de biblioteconomia, e isso tem um custo pesado. Fora a questão de precisar abrir concurso, o piso do bibliotecário é o dobro do piso do professor. Dinheiro, como se sabe, é sempre um problema no serviço público, e cada vez mais o cobertor é curto.

Acho esse um excelente exemplo de como ideias teoricamente boas, que poderiam criar alguns milhares de empregos para bibliotecários, podem gerar consequências concretamente ruins, como fechar alguns milhares de bibliotecas escolares ou retardar a universalização das bibliotecas. O que é o exato contrário do que a medida almejava.

Mas há mais nuances aí.

No Brasil, quase dois terços das escolas (63%) estão na esfera municipal, responsável pelo ensino fundamental. E também grande parte da quebradeira financeira está nas cidades.

Em 2014, no Brasil, 60% das escolas estaduais e 59% das escolas particulares tinham biblioteca. Nas escolas municipais, eram 21%. Pela lei, até 2020 todas as escolas devem ter biblioteca.

Se formos quebrar por Estado e algumas cidades (microdados do Censo Escolar organizados pelo QEdu.org), aparecem disparidades curiosas:

Fiz questão de colocar ali a cidade da secretária com quem conversei, que em 2010 não tinha uma biblioteca escolar sequer sob sua gestão.

Outra curiosidade: São Paulo, a maior cidade do Brasil, não conseguiu até 2014 fazer passar dos 5% a proporção de escolas municipais com biblioteca.

Tudo bem que é uma cidade enorme, cheia de dívidas, cheia de problemas e quase impossível de administrar. Mas, poxa, o prefeito desde 2013 é justamente o ex-ministro da Educação que assinou a lei das bibliotecas escolares de que a secretária reclamou. Não o ouvi, mas ele deve enfrentar problemas semelhantes aos que ela tem — ou até maiores.

Vale lembrar que os dados acima não informam se a biblioteca de fato está aberta aos alunos a qualquer momento.

Ainda que as escolas municipais criem a estrutura física, a aquisição de acervo pode complicar ainda mais as coisas. Os dados são da pesquisa anual recentemente publicada pela Câmara Brasileira do Livro.

Em 2014, governos compraram 19,4% dos exemplares de livros de interesse geral no país. Esses são livros que não são didáticos (esses são para os alunos, não para as bibliotecas), não são religiosos e não são técnicos — ou seja, em grande parte são livros de literatura, voltados principalmente para bibliotecas escolares.

Em 2015, os governos compraram apenas 5,1% dos exemplares de livros de interesse geral. O volume total caiu de quase 28 milhões de exemplares para menos de 6 milhões — um tombo de 79%.

Se a leitura já anda meio fora de moda, a má notícia é que tem tudo para piorar.

O problema da universalização da biblioteca escolar é a quantidade de boas intenções que povoa o inferno.

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