Stan Lee sabia tudo de audiência

O maior mérito do já saudoso criador dos heróis Marvel era saber se relacionar com o público; o resto foi consequência

Marcelo Soares
Numeralha
6 min readNov 13, 2018

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Se Stan Lee, morto hoje aos 95 anos, tivesse um perfil no LinkedIn nos anos 60, listaria como sua profissão a de “Growth Hacker”. O maior mérito do roteirista não foi criar o Homem-Aranha. Seu grande mérito foi ser um mestre do desenvolvimento de audiência. Foi por causa desse talento que um herói que só se ferra se tornou um ícone e a Marvel se tornou a Marvel.

Nos início dos anos 60, os quadrinhos de heróis eram dominados pela DC Comics, que publica Batman e Superman. Sob ataque cerrado das patrulhas moralistas de então, a DC encerrou a maior parte dos seus quadrinhos nos anos 50 e manteve seus principais personagens nas bancas em versões francamente infantis.

Nessa época, Lee trabalhava para uma editora pequena, a Atlas Comics (ex-Timely Comics), do seu cunhado Martin Goodman. Para tentar competir num ambiente dominado por uma monopolista, a Atlas publicava imitações de todo tipo de quadrinho que fizesse sucesso.

Foi em 1961, já sob o selo Marvel, que Stan Lee decidiu arriscar algo novo: super-heróis com os quais o leitor pudesse se identificar, que não fossem tão perfeitos quanto Superman ou Batman. Esse foi seu primeiro pulo do gato.

Ainda pequena, a Marvel teve de usar várias artimanhas malandras para crescer — e foi assim que Stan Lee desenvolveu seus talentos de promotor (e autopromotor). O livro “Pancadaria: Por dentro do épico conflito Marvel x DC”, de Reed Tucker, conta bem como foi isso.

A Marvel não tinha dinheiro para ficar contratando muitos profissionais. Então, tiraram o máximo dos poucos recursos que tinham. Stan Lee escrevia praticamente todas as histórias. Jack Kirby desenhava a maior parte dos títulos. Daí vieram duas inovações nos quadrinhos que se tornaram marcas da Marvel e parte integrante da linguagem dos heróis:

O “continua”. Para otimizar os recursos, uma história que seria contada em 20 páginas na DC era contada em duas ou três edições na Marvel. Sim, irritava muitos leitores. Mas outros tantos se sentiam motivados a comprar a edição seguinte. Isso não era pouca coisa: até então, o usual era comprar quadrinhos esporadicamente. Se você não lesse todo mês seus personagens favoritos, não perdia nada. Umberto Eco escreveu bons artigos sobre essa lógica. Além de ser um elemento de linguagem, ela também abriu espaço para negócios: a partir do começo dos anos 2000, um sucessor de Lee industrializou o “continua”, determinando que cada história completa deveria ter seis partes, que pudessem ser depois encadernadas num volume de mais de 100 páginas e vendidas novamente como “trade paperback”.

O “universo compartilhado”. Como era o mesmo cara que escrevia as histórias de todo mundo, era fácil usar um gibi para promover o outro. Todos os heróis moravam na mesma cidade de Nova York, certo? Quando o Homem-Aranha ganhou seu próprio título, o Quarteto Fantástico (que já era sucesso) apareceu na capa do número 1. Pense nisso como a lógica da “recirculação” dentro de um site: você coloca no texto bem lido um link para um texto que você pretende promover.

Se a DC Comics dos anos 60 era distante, engravatada, cheia de heróis perfeitos, Stan Lee fez heróis imperfeitos e começou a criar uma narrativa que permitia a qualquer leitor se identificar com a Marvel.

Foi o relacionamento com os leitores que fez a Marvel ser a Marvel.

Stan Lee se recusava frontalmente a ser tatibitate com os leitores. Esse respeito à capacidade intelectual do leitor é fundamental.

Passou a dar créditos aos escritores e desenhistas — e até a quem fazia as letrinhas.Todos os leitores podiam saber quem eram os personagens por trás das histórias. Não havia muita padronização de estilo; até a arte tinha personalidade. Steve Ditko, que desenhava o Homem-Aranha, desenhava diferente de Jack Kirby, que fazia o Quarteto Fantástico. Era uma medida de transparência. Essa informação estava sempre lá na primeira página de cada história.

Depois, passou a se dirigir aos leitores em tom de conversa entre amigos, na “Stan’s Soapbox” (“Caixote do Stan”). Ali, além de levantar importantes debates sobre extremismo, por exemplo, também agradecia aos leitores pelas pequenas vitórias da editora.

Stan também criou a Merry Marvel Marching Society, uma espécie de fã-clube oficial dos leitores, décadas antes de o Guardian e o De Correspondent virarem exemplos mundiais de como o modelo de “membership” pode ajudar a financiar as indústrias de conteúdo. Por pouco mais que o preço de cinco gibis, o leitor ganhava uma carteirinha, tinha acesso a produtos exclusivos e ainda tinha seu nome publicado nos gibis.

Stan instituiu o “Bullpen Bulletin” (Boletim do Curral, numa tradução livre), onde contava os bastidores da Marvel, anunciava o que vinha por aí, vendia camisetas e ainda por cima dava o nome dos novos membros do fã-clube da editora (veja mais abaixo).

Distribuía “não-prêmios” nas seções de cartas aos leitores mais atentos. Com autógrafo dos autores!

A gestão de Stan Lee na Marvel também ajudou na expansão multimídia da editora — que hoje, com os filmes, é seu principal negócio.

Stan conseguiu convencer os profissionais que trabalhavam para a Marvel a gravar até discos com histórias completamente malucas que supostamente se passavam com eles. Era mais um carinho com os leitores — que, gratos, continuavam voltando para ter mais.

O que praticamente ninguém contará no dia de hoje é que Stan Lee se distanciou da produção dos quadrinhos desde o início dos anos 70. Foi quando começou a buscar acordos audiovisuais e parques temáticos para a expansão da marca. Boa parte deles teve resultados bem ruins.

Mas vem daí a outra parte do talento promocional de Stan Lee. Ele obteve contratualmente o direito de ter seu nome impresso inclusive em gibis que não escreveu, de personagens que não criou. É o caso de Conan e Guerra nas Estrelas, por exemplo.

Hoje a molecada conhece Stan Lee também pelas pontas que faz nos filmes da Marvel, outra conquista contratual. Até o filho do Vinicius Torres Freire conhece “o Stan”.

O grande talento de Stan Lee era saber se relacionar com o público. O resto foi consequência.

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