“A nova geração drag, em grande parte, não está interessada na nossa história”, revela Dalvinha Brandão

A drag conta sobre a sua história, fala da arte drag e opina sobre a nova geração.

Lucas Panek
Não faz a frígida
11 min readApr 29, 2016

--

Episódio 1 do programa #DalvaShow, disponível em bit.ly/dalva_channel

Muito da visibilidade que o universo drag tem agora se deve ao fenômeno do reality show RuPaul’s Drag Race. Mas antes do programa, Curitiba, o Brasil e o mundo já contavam com anos de história e luta dessa classe. No Brasil, por exemplo, os concursos para eleger a melhor transformista do carnaval eram muito famosos no decorrer do século XX, e são lembrados até hoje, graças ao trabalho de nomes como Madame Satã.

A cena nas capitais brasileiras está efervescente, com muitos garotos novos se montando para ganhar a noite. Mas será que eles têm noção da história que permitiu a existência da cultura drag, ou eles apenas passam por cima? Será que eles entendem a luta política de gênero que a arte drag representa? Sobre esses tópicos, conversamos com Dalvinha Brandão, a dona do deboche brasileiro ou, como diria Gloria Groove, a dona dessa porra toda. Conheça a história da queen e seu entendimento sobre sexualidade, gênero e as drags como uma classe profissional:

Drag Name: Dalvinha Brandão

Boy Name: Gustavo Bitencourt

Idade: 40 anos

Tempo de palco: 7 anos

Lugar Favorito: Bar do Amarelinho

Personalidade: Comete as maiores gafes tentando ser educada.

Qual a história da Dalvinha?

Eu trabalho com teatro, então, fui dirigir uma peça em Salvador e fiquei morando lá uns 3 meses durante esse processo. Morava em um lugar lá que ficava no Dois de Julho, quase no centro de Salvador, onde tem uma casa chamada Âncora do Marujo, que é uma casa conhecida como espaço de resistência da cultura transformista do Nordeste e da cidade. E eu ia pra lá todo dia. É um bar bem pequenininho, e toda noite tem show de transformistas, drags e travestis. A gente costumava jantar juntos, juntar todo mundo e assistir televisão.

Aí, quando eu fui voltar para Curitiba, na minha última semana de trabalho lá, uma das drags que ficou bem minha amiga, a Bia, ia fazer uma festa de aniversário lá no espaço e ela chegou e falou: “você vai ter que fazer show na minha festa, viado”. Eu pensei em não fazer e até acho que ela estava brincando, não estava levando muito a sério, mas eu levei. Passei a semana toda comprando um monte de coisa, acessórios, bijuterias e roupas e decidi fazer um show na festa dela. Ela botou 50 drags para fazer show naquela noite em um camarim de 2x2m, aquilo foi um inferno.

Aí eu fiz, foi uma merda, nada deu certo, eu levei um cdzinho e ele começou a pifar, daí eu fiquei dublando o áudio engasgado. Mas, por causa disso, fiquei com vontade de fazer um show sério, né? Eu tenho muita inspiração nessas cantoras europeias dos anos 60 e 70, tipo a Mina e a Dalida, aí quis fazer algo mais retrô. Comprei uma peruquinha curtinha que eu achei linda. Aí a primeira coisa que aconteceu quando eu entrei foi um viado falar: “Olha lá, não parece o Zacarias?”. Aí já comecei na vida meio caricata.

E o seu nome, como surgiu?

O nome Dalva veio de uma bicha que estava trabalhando com a gente, como maquiador e figurinista, e ele contou uma vez que a diarista dele se chamava Dalva. Eu achei bonito o nome. Quando eu cheguei para me apresentar, o Fernando, que é o dono do bar, falou: “mas Dalva, amor? Não pode, é muito pobre. Então pelo menos coloca um sobrenome bom, de respeito, coloca Brandão”. Dalva Brandão, aí ficou.

E a personalidade dela?

Foto de Larissa Adamowski

Então, quando fui me montar, eu já tinha toda a história dela na minha cabeça. Ela é tipo uma socialite decadente. Ela é meio moderna, adora ficar com as bichas, às vezes é um pouco homofóbica e não percebe. É daquela mulher que fala assim: “ai, adoro vocês gays, são tão criativos”. Ela tipo acha que gay serve pra maquiar ela. Então, ela é esse tipo de pessoa, é louca, inspirada na Narcisa, um pouco, e na Hebe. Ela é agressiva sem querer ser, homofóbica sem querer ser, é essa pessoa que não tem muita noção de si mesma e acaba sendo inconveniente.

Você poderia fazer um paralelo sobre as suas percepções do que era ser uma drag queen quando começou e agora?

Ah, mudou muito. No início, eu não enxergava como um trabalho. Eu fiz meio que para me divertir e ter uma experiência. Mas teve uma época meio de crise, pré Copa do Mundo, que estavam todos os artistas sem grana, porque eles estavam cancelando todos os editais. Eu estava em uma miséria desgraçada, aí eu me montava pra sair com amigos. Assim começaram a me chamar pra trabalhar. Eram bares que não tinham drags, normalmente, então eu ia pra ficar de hostess, depois discotecar e, depois, comecei a produzir festas em que as pessoas se montavam. E ali eu comecei a construir uma história, então é claro que minha percepção mudou. Até porque eu comecei a ganhar mais envolvimento político com essa personagem. Sou muito convidada para fazer eventos, falas, palestras e seminários sobre sexualidade, sobre a comunidade LGBT. Então, não dá pra Dalvinha ser mais aquela louca do início, porque eu não posso chegar num evento desses e falar um monte de merda. Acontece muito de chamarem a Dalva pra entrevista de televisão e quererem falar sobre drag. Mas Dalvinha não é uma drag, ela é uma mulher. Então, eu tenho que fazer um trabalho constante de ser eu e ser ela ao mesmo tempo.

Falando em gênero, qual a sua opinião sobre o espaço de voz das drag queens dentro da discussão de gênero?

Eu acredito que tem muitos jeitos diferentes de ser drag, esse é um primeiro ponto. Isso é uma coisa que eu fui percebendo nos lugares. Como eu trabalho com teatro, acabo viajando muito pelo país inteiro, e é legal de ver que a relação de gênero difere muito de cada um. A primeira drag que eu admirei na vida foi a Carolina Vargas, de Salvador, e ela é um bofe montado, com o vestidinho e a peruquinha. Ela chega e diz, “sou um ator, um transformista”, sempre é um homem. Mas eu tenho uma amiga de São Luís, a Cíntia Sapequara, por exemplo, que se você chamá-la pelo nome masculino enquanto montada, ela não responde. Cada pessoa se identifica de um jeito muito específico.

E como você se vê nessa história toda?

Eu sinto que apesar de saber que eu sou um homem, viado, quando eu me monto, tenho uma relação diferente com o gênero, tanto na relação com as pessoas, como com a expectativa das pessoas em relação ao meu comportamento. Tem também a minha relação com a minha aparência. De dia, eu sou a pessoa mais largada, mas quando eu tô montada, se tiver um cíliozinho fora do lugar, eu já fico encucada. Então, muda sim a forma que me percebo.

E o que você acha sobre o gender queer?

Eu não gosto do uso do gender queer como um termo guarda-chuva ou como uma identidade, sabe? Porque a ideia de queer surge nos Estados Unidos em um período histórico muito específico e ela trata, acima de tudo, de uma possibilidade, de que a gente poder ser tudo. Agora, trazer esse termo para o Brasil de 2016 é meio merda, porque a gente tem ainda necessidades tão básicas em relação aos direitos de cidadania de pessoas trans, por exemplo. Então, se a gente usa o gender queer pra englobar tudo o que existe de diferente do padrão, a gente vai apagando as lutas, primeiro dos que estão mais embaixo. Então, nesse momento, acho que a gente ainda precisa diferenciar as identidades.

Já que você tocou nesse assunto. Você poderia me ajudar a fazer essa distinção?

Eu fazia muito isso com uma amiga minha, a Leonarda Glück, que é uma atriz trans, e a gente já fez algumas intervenções na rua pra explicar isso pras pessoas. Vou tentar ser sucinta: Travesti e transexual depende do que a pessoa vai dizer que é, porque aqui no Brasil a gente tem essa identidade de travesti que tem uma força histórica gigantesca. Vem das pessoas que começaram a aparecer e que não eram vistas nem como homens e nem como mulheres. Depois, muita gente começou a usar o “transexual”, que é um termo mais polido e bem visto dentro da academia. Mas ainda há muitas pessoas que optam por falar “eu sou travesti”, para se ligar a essa história das travas que estão lutando desde muito tempo.

Agora, ser drag queen tem mais a ver com uma performatividade, é quando uma pessoa quer viver outro gênero, ou outra vida mesmo, de um jeito temporário. Então, eu acho que é um estado de passagem. Você constrói aquilo por um momento. É como se fosse aquela mandala dos monges tibetanos, que eles passam o ano inteiro montando uma mandala e, uma hora, eles destroem. A drag queen faz isso, ela passa horas construindo uma imagem de si mesma e, depois, ela mesma destrói e retoma.

Transformista, assim como a diferença de travesti e transexual, também tem uma ligação com uma identificação política, pra mim. Por exemplo, lá em Salvador, as bichas não gostam que chamem elas de drag queen, elas gostam que chamem de transformista. Porque até tem um movimento de sindicalização da profissão de transformista e de ligação histórica com esses espaços que estão lá, há muitos anos, recebendo os shows. E, se a gente pensar, drag queen é um termo que começou a ser usado só nos anos 90, na época do “Priscila, rainha do deserto”. Mas as transformistas já estavam por aqui há muito tempo.

Você tem uma drag mãe?

Na verdade não, mas eu tenho muitas filhas. Como eu ministrava oficinas de drag queen, então, muita gente acabou saindo de lá. Eu já fiz umas três edições em Curitiba, algumas em Floripa, fiz no Rio, em São Paulo, em Natal. É um encontro de quatro dias, onde eu ensino algumas técnicas e levo um bocado de história. No último dia, levo as meninas para fazer um show, geralmente em alguma festa que tenha abertura pra fazer. E, se não passou pela oficina, passou pelas minhas festas.

Quanto tempo você leva pra se montar, em média?

Foto de Antonio Wolff/LuxLab Studio

Ahh, umas três ou quatro horas. Eu tenho todo um ritualzinho. Eu monto minha luz, ponho minha música, deixo tudo em cima da mesa e sento na minha cadeira. Essas coisas que tem que se montar um monte de drag no mesmo lugar, eu chego pronta já. Odeio me montar com drag falando do meu lado, tenho vontade de matar.

E qual é a sua melhor lembrança como Dalvinha?

Ai meu deus, não sei dizer não. Bem, eu peguei um gostoso esses dias, no Carnaval do Rio de Janeiro, que me rendeu ótimas lembranças. Brincadeira, eu acho que a Quinta Cítrica, um evento de comédia que eu organizo, é uma grande memória. É um espaço de comédia onde não há aquele comediante padrão. Eu convido gente que nunca fez e que eu acho que pode ser engraçado, gente da música, da literatura e que vai lá e tenta fazer humor. Já está na quinta edição e eu amo muito fazer.

E agora, qual foi o pior momento da Dalva?

As merdas que a gente faz, descobrimos depois que faz parte da vida, né? Mas assim, teve um período bem pesado que eu senti com a falta de grana. Há uns dois, três anos atrás eu ainda não estava conseguindo viver disso, mas tava querendo viver disso. Daí rolavam alguns bicos esporádicos, mas eu tava devendo sete meses de aluguel. Então, a falta de grana e a falta de perspectiva de mercado de trabalho foram barra pra mim.

Qual é o principal objetivo do seu trabalho como drag?

DalvaShow Live, no Espaço Cultural A Boca, Natal (RN), 2015. Foto de Johann Jean.

O meu principal objetivo é o deboche, eu acho. A gente tá debochando de uma certa convenção sobre o gênero, e eu gosto de debochar disso. Gosto de debochar inclusive da gente mesmo, dos movimentos sociais. Então, é o deboche mesmo.

E por conta disso, alguém já te interpretou mal ou já gerou alguma richa com outra pessoa?

Já, opa! Algumas vezes, tem gente que se irrita, né? Mas assim, apesar de eu ser debochada, justamente porque eu tenho tanta convicção política do meu deboche, eu não faço ele de qualquer jeito, entende? Quando eu vou fazer uma piada publicamente ou um stand up, eu penso no que vou falar. Mas eu faço piada de lésbica, por exemplo, e acontece de uma ou outra se irritar. E se alguém vir me criticar, eu tenho controle do que eu tô fazendo, então a gente vai conversar. E de repente eu errei mesmo, então eu também tenho que saber ouvir.

Algo que eu sempre quis entender é se as drags tem um sentimento de comunidade, ou de pertencimento a um grupo?

Eu sinto que aqui no Rio está rolando um sentimento de comunidade muito forte, e em Curitiba também. Como aumentou muito o número de artistas, eu vejo elas realizando muitas coisas. Porque a gente passou um vácuo, né? No final dos anos 90 até 2010 mais ou menos, não tinha, sobraram algumas poucas da geração anterior, a Diandra, a Brigitte. Pouca gente fazia e não tinha espaço pra fazer, ou seja, não havia espaço para essas pessoas se encontrarem e criarem esse senso de comunidade. Porque depende muito do espaço físico, né? Você tem esse senso de comunidade quando você consegue encontrar as pessoas, ver elas e interagir.

Acho que agora está acontecendo. Tem uma geração nova que se conhece. Entretanto, acho que ainda é muito pouco, porque temos uma amizade, mas muito pouco senso de classe profissional. Então, o que acontece? A gente não sabe se articular para manter esse mercado funcionando e daqui a pouco RuPaul’s Drag Race vai acabar, a modinha vai passar, e como é que a gente vai manter? Não tem. A gente precisa construir um mercado e pra isso a gente precisa ir ver o show das colegas, precisa criar os nossos próprios espaços, precisa saber negociar o cachê para não diminuir toda a categoria profissional.

Qual a sua opinião sobre as referências midiáticas contemporâneas brasileiras sobre o tema, como o Drag-se, Glitter e Academia de Drags, e sobre a nova geração drag?

Eu acho tudo muito importante, mesmo. Sou fã da Academia, não perco, acho o Drag-se muito foda. Eu sou uma pessoa mais velha que começou a trabalhar mais tarde no ramo, então, acabei começando um pouco antes da moda da RuPaul pegar. Eu vi a mudança no mercado que aconteceu por causa disso. Meu cachê dobrou. Então, eu tenho só a agradecer às bichas porque eu consegui trabalhar mais. Mas, por outro lado, sinto que tem uma grande parte da nova geração que é superdesinteressada em saber o que já aconteceu com esse universo. Voltando ao senso de comunidade, eu acho muito importante que essa comunidade englobe pessoas com grande experiência e bichas que estão começando agora, pra ter uma troca de qualidades. Por isso eu acho legal ter espaços que juntem diferentes gerações, diferentes segmentos, porque falta muito conhecimento histórico.

O Circuito Artes da Noite que eu to produzindo aqui no Rio, em parceria com a Giorgia e a Isabel do festival ‘Yes! Nós temos Burlesco’, tem muito essa função, de falar da nossa história, e de criar espaço pra diferentes gerações se encontrarem. Aliás, 14 a 29 de maio, Teatro Cacilda Becker, tá todo mundo convidado.

Leia também:

Malu Falcão fala sobre seu papel político como drag queen curitibana

--

--