A Crise dos Trinta: o Teatro e a Melancolia

Felipe Areda
Afecções
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8 min readJul 11, 2024

“T.R.I.N.T.A.”, peça-concerto do Teatro Caleidoscópio, marca três décadas de obras teatrais e lança um olhar melancólico para o ofício do fazer Teatro.

Créditos: Humberto Araujo.

— O teatro é arte do espectador — é com essa frase de Eugenio Barba que peço licença para falar do Teatro Caleidoscópio. Afinal, não seria possível lançar um olhar sobre sua obra sem revelar o quanto também meu próprio olhar é sua obra teatral. Em certa medida e incerta desmedida, meu olhar, atenção, escuta e pensamento — as matérias-primas do teatro, segundo Barba — foram forjados pelo encontro com o Teatro Caleidoscópio.

Era um menino em 2002, quando assisti, em um acolhedor teatro de bolso chamado Caleidoscópio, à peça “Cascudo”, uma deliciosa comédia dirigida por André Amahro construída a partir da obra “História dos nossos gestos”, de Câmara Cascudo. Naquele encontro, apaixonei-me pelo Teatro. Ou, seria melhor dizer, apaixonei-me no Teatro, pois ali aprendi que o Teatro não era somente uma linguagem, mas um terreiro, um espaço apaixonado de cultivo de si e do outro, encantado pelo mistério artístico do refazimento do que somos quando criamos sob um olhar atento.

Fui acolhido ainda menino nesse Teatro, sendo aluno de Lilian França e depois de André Amahro, o próprio zelador desse terreiro-caleidoscópico. Embora meus passos não tenham seguido no Teatro, ali aprendi uma lição preciosa, que vejo como a chama que subjaz o método proposto por André e que foi tomado por mim como parâmetro ético, estético e político nas rotas que segui em minha vida. No Teatro Caleidoscópio, aprendi a encarar todo conflito como espaço de criação e a encarar toda criação como oportunidade de transformação inesperada de si e do outro.

Assisti à “T.R.I.N.T.A.” na semana de sua curtíssima temporada de estreia no Teatro Paulo Autran, em Taguatinga. A peça-concerto, como se define, inicia apresentando uma versão “pocket” de “Otelo, o Mouro de Veneza”, de Shakespeare. Ao seu término, num giro caleidoscópico, o que vemos é reconfigurado e passamos a acompanhar a própria angústia dos atores e atrizes de uma companhia em crise.

Créditos: Humberto Araujo.

Nascida de uma criação coletiva, a dramaturgia interroga os desafios do ofício teatral. Não o faz de forma abstrata, mas situa essa angústia no contexto brasiliense, encarando desafios concretos: o fechamento dos teatros da cidade, uma lógica de financiamento infértil, a precarização do trabalho teatral, o esfacelamento de coletividades pela necessidade de sobrevivência.

Se, em “Cascudo”, a investigação do gesto era a força motriz dramatúrgica, em “T.R.I.N.T.A.” é o som que move a narrativa. Definindo-se como uma peça-concerto, as atuantes iniciam o espetáculo por detrás de microfones, acompanhadas de instrumentos musicais, tomando a sonoplastia como elemento de criação cênica e as belíssimas composições de André Amahro como alimento dramatúrgico.

O posicionamento dos microfones, numa disposição de apresentação musical, evidencia a presença (ou a ausência) do público. Olhando diretamente para a plateia, é justamente o olhar dela que se torna a protagonista desse espetáculo. Como diz a personagem Edu, lindamente interpretada por Yuri Fidelis — a gente sabe que são os farois que impedem os barcos de afundar. Ecoa-se a angústia: como navegar em mares nos quais é cada vez mais difícil de se encontrar farois atentos? A ressonância de Otelo, que é de algum modo a epígrafe do espetáculo, opera nesse ponto. Na tragédia Shakespereana, tematiza-se o olhar do outro e a sua capacidade de levar aos maiores sofrimentos. O olhar que duvida, que impossibilita, que introduz a descrença e que mata.

Ao reencontrar um Teatro Caleidoscópio balzaquiano, deparei-me com uma peça marcadamente melancólica. É, nesse sentido, bastante diferente da impetuosa “A Farsa de Pixreals” que celebrava, em 2004, a primeira década do grupo. Na Farsa, que devo ter visto praticamente todas as vezes que foi apresentada em Brasília, com olhares atentos de um menino, víamos duas forças em um conflito cartunesco no subterrâneo de um teatro. Uma que tentava destruir e outra que tentava salvar a chama sagrada do Teatro, o fogo de Prometeu.

Se há vinte anos, o Caleidoscópio apresentava um ímpeto otimista, há, nessa peça-concerto, uma “crise dos trinta”, momento em que nós nos interrogamos sobre nossos caminhos, encaramos nossos fracassos e precisamos nos mover pela necessidade de sobrevivência. O fogo Prometeu é inclusive ironicamente citado nessa peça, quando a personagem Edu decide abandonar a companhia para trabalhar em um grupo pouco artístico numa peça comercial sobre Prometeu, já que nessa outra companhia ele pelo menos será pago pelos ensaios. Se não há chama para criar obras, que haja pelo menos recursos para manter a sobrevivência de projetos.

O artista fracassado é tema recorrente de André Amahro e não pude deixar de recordar do lindíssimo “Gatos morrem nos asfalto”, dramaturgia publicada em 1992 e encenada em 1993, que apresentava a melancolia de artistas-gatos-de-rua em uma ficção urbana. Aliás, em “T.R.I.N.T.A.”, as personagens de Gatos retornam. A bailarina depressiva Lis, agora interpretada por Rachel Aló, torna-se uma atriz com problemas de drogadição. A cantora decadente Misty agora, brilhantemente interpretada por Vanessa Di Farias, precisa se equilibrar entre a carreira como atriz e o seu trabalho como professora de ensino fundamental.

Por falar em Misty… O nome dessa personagem é em razão da pungente canção de Sarah Vaughan, cujos primeiros versos diziam — Look at me! I’m as helpless as a kitten up a tree and I feel like I’m clingin’ to a cloud. (Olhe para mim! Estou tão indefesa quanto um gatinho numa árvore e eu sinto como se estivesse tentando me agarrar a uma nuvem). A figura do gatinho perdido era acionada por André Amahro com a melancolia do artista diante da ausência do olhar do outro. Aqui, Misty e as outras personagens não encontram esse olhar, não encontram o farol e se dispersam no mar.

Créditos: Humberto Araujo

A Melancolia, aprendemos com Freud, é o assombro do objeto perdido. O objeto perdido opera como um buraco na psique, drenando a libido e a capacidade de representar. Gosto, aliás, de como o nome “T.R.I.N.T.A.” é apresentado, fragmentado, como se fosse uma sigla do que não consegue ainda ser representado. Um nome cheio de buracos.

Essa descrição pode fazer parecer que é uma peça triste. Isso seria, contudo, seguir caminhos do esperado. Devo lembrar que esse Teatro, que se inspira nos movimentos do caleidoscópio, tem como princípio a imprevisibilidade. A peça é engraçada e divertidíssima! O riso do próprio fracasso é ferramenta contra a fragmentação, a escassez e a própria melancolia.

Créditos: Humberto Araujo.

Não é uma obra soturna, é poeticamente luminosa com uma luz lindamente construída por Cláudio Lago, que transforma o cenário estático em um deleite caleidoscópico. A belíssima trilha do violonista Elias Santos, sempre em cena, move cada giro cênico com delicadeza.

Como disse, uma das maiores lições desse teatro é tomar o conflito como potente espaço de transformação, de si, do outro, da coletividade, da realidade. Nessa peça, somos interrogados — quantas horas de teatro essa cidade permite? Saí do espetáculo com a certeza indignada: quero mais teatro! Precisamos de mais teatro em nossa cidade! Precisamos nos reocupar em terreiros-caleidoscópicos!

Por fim, há um tema na peça que me toca especialmente: a memória. Se o Teatro é a arte do efêmero, não o é por ser passageira, mas por ser uma ação irrepetível, irreproduzível, irrefazível, inimitável, incopiável, irreprisável. Ela se faz na presença, no encontro, na atenção. Nesse momento, só nesse momento, a artista é capaz de afetar o outro para sempre, criando memórias que serão levadas por toda a vida. Por isso, a memória é a obra do Teatro.

Ao assistir a peça no dia 07 de julho de 2024, recordava que há trinta anos, naquele exato dia meu pai foi assassinado a tiros, quando eu tinha apenas seis anos. Nesse mesmo ano, 1994, o Teatro Caleidoscópio nascia com a peça “A Festa de Baco”.

Alguns anos depois, esse menino, bastante ferido por essa história de horror, mas também pela homofobia que esfacelava meu corpo adolescente, era um gatinho indefeso tentando se agarrar às nuvens. Um dia, esse gatinho encontrou refúgio no Teatro Caleidoscópio.

Foi nesse terreiro que conheci as principais ferramentas que me fortaleceram. Nele, fiz-me barco e aprendi importantes lições de navegação no caos e na ordem, e nas outras dicotomias que aprendi, com o André, a dar nome ao ver as lições do Caleidoscópio. A beleza das marés que nós transformam na presença/ausência, na permanência/impermanência, no repouso/movimento, na unicidade/multiplicidade, na singularidade/pluralidade, na integridade/fragmentação, na parcialidade/totalidade, na invariabilidade/variabilidade, na aleatoriedade/precisão, na vulnerabilidade/firmeza, na crise/criação, na melancolia/libido, por fim, na morte/vida.

Aliás, quem quiser conhecer mais sobre a teoria estética e antropologia filosófica do Teatro Caleidoscópio, o livro “Viagem ao Anel Giratório — O espetáculo cênico e o espírito caleidoscópico”, de André Amahro, também será lançado como parte da celebração dos 30 anos do grupo.

Mas, em mim, esse aprendizado está incrustado na memória não por lições teóricas, mas por eu ter sido feito, pelas artistas desse teatro, obra. Peças que fui espectador, como “A Farsa de Pixreals” (2004), “O Sorriso da Casa de Jóias” (1996, que vi incontáveis vezes na sua remontagem), “Cascudo” (2002) e “Striptease” (2003, essa eu sabia o todas as falas decoradas), criaram marcas profundas no meu olhar e me ajudaram erigir os mais importantes farois, aqueles que carregamos dentro da gente. Farois para nunca nos perdemos de nós mesmas nos desafiantes mares do mundo.

Nesse sentido, celebro os trinta anos do Teatro Caleidoscópio percebendo feliz que a chama de Prometeu, que ilumina meu farol, está viva em mim.

Créditos: Humberto Araujo.

Assim como Misty nesse espetáculo (destaco que qualquer chance de ver Vanessa Di Farias, uma das maiores artistas de nossa geração em palco, é imperdível!), não sou mais um gatinho indefeso, essa chama arde em mim como pura ferocidade!

Vida longa à chama do Teatro Caleidoscópio!

Ficha técnica:

T.R.I.N.T.A. Peça-concerto.

Direção Geral: André Amahro
Assistência de Direção, Iluminação e Figurino: Cláudio Lago
Elenco: André Amahro, Claudio Lago, Raquel Aló, Vanessa Di Farias e Yuri Fidelis
Canções: André Amahro e Vanessa Di Farias
Violão e Trilha Sonora ao vivo: Elias Santos
Engenharia de Som: Max Paulo

Serviço:

Dias 12, 13 e 14 de julho de 2024
Local: Teatro Galpão Hugo Rodas
Espaço Cultural Renato Russo — 508 Sul
Sessões: sexta e sábado, às 20h; e domingo, às 17h (com tradução em libras) e às 19h.
Duração: 70 min
Classificação indicativa: 14 anos

Ingressos no Sympla.

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Felipe Areda
Afecções

Felipe Areda é afetado, como bem definiu os meninos que o xingavam na infância.