Rômulo Zanotto, Cláudio Marques e Marília Hughes, casal de diretores de "A Cidade do Futuro" (BRA, 2016), vencedor do prêmio de Melhor Longa-metragem eleito pelo público, na 5a Edição do Festival Internacional de Cinema de Curitiba | 2016 | (Foto: Moyses Vaz)

As Cidades do Futuro

Meu encontro com o casal de cineastas Cláudio Marques e Marília Hughes para a Revista One, durante a última edição do Festival Internacional de Cinema de Curitiba

Rômulo Zanotto

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Como serão as cidades do futuro? Não falo de espaços naves e escadas e rampas rolantes, como a gente vê nos Jetsons. Falo de valores, de organização social, de vida privada. As pessoas serão mais prisioneiras ou mais livres? Mais reacionárias ou conservadoras? Mais progressistas ou mais retrógradas?

Em A Cidade do Futuro (Brasil, 2016), Cláudio Marques e Marília Hughes vão até o sertão baiano para falar de aceitação. Vão até o futuro, começando no passado.

Serra do Ramalho é uma das cidades que nasceu na década de 1970, fruto das desapropriações e realocações de cidades inteiras no norte da Bahia, inundadas pela construção da barragem de Sobradinho. “Um lugar muito particular, uma cidade construída a partir de uma violência, que é a realocação forçada daquelas pessoas”, toma a palavra a diretora Marília em nossa conversa. “Queríamos contar alguma história a partir daquele lugar.”

Logo, conheceram então Milla, Gilmar e Igor. Os atores e personagens do filme. “Pesquisando, entrando em contato com a cidade, conversando com as pessoas, conhecemos os três”, conta Marília. “São jovens que vivem em Serra do Ramalho, têm um trabalho de teatro amador, e achamos que era interessante levar arte para aquele lugar através do teatro. Fomos nos aproximando, conhecendo a história deles…”

Resultado: os três formam uma família entre si, fora dos padrões. A história foi parar nas telas.

Cena do filme "A Cidade do Futuro" (Brasil, 2016 — Dir.: Cláudio Marques e Marília Hughes) | (Foto — Divulgação)

"Uma história tão libertária, tão progressista, do futuro. Uma proposta de família tão diferente, acontecendo numa cidade tão pequena.” (Marília Hughes)

“Não é exatamente a história deles porque a gente ficcionaliza uma parte”, explica Marília. “Mas achamos interessante que isto esteja acontecendo tão distante de um centro urbano, num município a 14 horas de ônibus de Salvador. Uma história tão libertária, tão progressista, do futuro, uma proposta de família tão diferente dos padrões acontecendo numa cidade tão pequena.”

Neste momento da análise, Marília amplia o leque, fazendo um paralelo entre as histórias da família e da região, para encontrar na origem da cidade noções arquetípicas de pertencimento e liberdade. Sobretudo da liberdade de ser como se é, no lugar onde se nasceu.

“Diferente dos pais deles, que chegaram naquele lugar à força, os três nasceram ali. Eles não querem ser forçados a migrar por causa da opção familiar que eles fizeram. Eles lutam para ficar e ter suas escolhas reconhecidas e respeitadas. Enquanto os pais tinham uma mágoa por terem sido tratados como cidadãos de segunda classe, forçados a abandonar suas casas.”

Milla, Igor e Gilmar não querem repetir a história dos pais, o deslocamento forçado. Trata-se um ato político, de profunda consciência de suas histórias, de quem eles são, do direito que têm de viver a família desta forma.

"A gente achou muito bonito eles romperem este ciclo de violência”, explana Marília, "de ser expulso de algum lugar pela força do mundo ou por querer ser quem você é".

É neste momento que Cláudio, co-diretor do filme e marido de Marília, entra na conversa. "Já fomos muito para o exterior com o filme", conta ele. "Quanto mais a gente entra [no interior do país e das pessoas], parece que mais a gente sai também. É um movimento muito importante. Entender cada vez mais a nossa identidade, estar cada vez mais aberto para fora.”

Cláudio e Marília conversam comigo acompanhados do filho no carrinho de bebê. A menos que haja um terceiro ou quarto elemento na relação e que não esteja presente no encontro, os dois me parecem uma família tradicional. No jeito de pensar, agir, passear com as crianças no shopping. (risos) Pergunto se é isso mesmo, se eles são uma família tradicional. Rimos e eles confirmam que sim.

Rômulo Zanotto (de costas), Cláudio Marques e Marília Hughes | Festival Internacional de Cinema de Curitiba | 2016 | (Foto: Moyses Vaz)

É legal que uma família tradicional faça um filme mostrando outros modelos, com um viés mais libertário”, fala Marília, balançando o carrinho de bebê. “Isso dá força ao filme. Você poderia dizer: 'claro, só poderia ser um gay a fazer esse filme, ou alguém que está levantando uma bandeira’. E aí, é surpreendido por um casal tradicional, com filho e tal. Acho isso bem interessante, principalmente neste momento conservador.”

É pelo momento conservador que faço uma provocação aos cineastas e pergunto se as cidades, logo ali, estão mais para o que sempre imaginamos como ideias de futuro, ou estarão mais para o passado.

Marília diz que é impossível afirmar que será mais libertária, mas pelo menos deveria ser. “Pode ser apenas uma utopia, mas tem que ser a meta, o horizonte, para onde a gente deve querer ir. Um lugar onde todas as possibilidades de amor, convivência e diferenças possam ser consideradas possíveis, tenham o mesmo respeito e o mesmo tratamento.”

“Pode ser apenas uma utopia, mas tem que ser a meta: um lugar onde todas as possibilidades de amor, convivência e diferenças possam ser consideradas possíveis, tenham o mesmo respeito e o mesmo tratamento.” (Marília Hughes)

Em questão de direitos civis a gente ainda tem muito que fazer”, complementa Cláudio. A educação brasileira é precária. Isso resulta em falta de repertório e formação, fazendo com que as pessoas se tornem intolerantes”.

É ele quem encerra a conversa, voltando à violência da expulsão na gênese da cidade do filme: “As pessoas continuam sendo expulsas, continuam não sendo respeitadas como cidadãos. Seja porque é nordestino, seja porque é negro, porque é gay, travesti, porque você é você”.

É interessante perceber que um Festival reúna uma plateia com algumas centenas de pessoas dispostas a discutir e debater o futuro, enquanto outra parcela da sociedade ainda está em casa discutindo se boicota ou não a novela das oito por causa de um beijo gay.

“As pessoas continuam sendo expulsas, continuam não sendo respeitadas como cidadãos." (Cláudio Marques)

Rômulo Zanotto, Cláudio Marques e Marília Hughes, em conversa durante a 5a Edição do Festival Internacional de Cinema de Curitiba | 2016 | (Foto: Moyses Vaz)

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Rômulo Zanotto

Escritor e jornalista literário. Autor do romance "Quero ser Fernanda Young". Curitiba.