Canjica ou curau?

Lucas Rezende
O Bloco de Notas

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Mais um episódio de: explicar para o amigo paulista que no Brasil de cima a gente chama munguzá o que ele chama de canjica e de canjica o que ele chama de curau. E pra explicar o que é o pé-de-moleque do nortista? Uma novela inteira de 104 capítulos.

Vamos concordar que esse período de arraiais é o mais propício cenário para o famoso “é canjica ou é curau?”, mas a questão aqui levantada é maior do que isso: a pluralidade das palavras e significados.

Brasil de cima x Brasil de baixo

Patativa do Assaré já falava sobre o Brasil de cima versus Brasil de baixo, mas este ainda um tema muito atual e sempre revisitado. O faço então, (ou tento) de uma forma leve e levianamente humorada.

Oito meses após a minha saída de Manaus ainda encontro episódios engraçados envolvendo sotaques, gírias e simplesmente o nome das coisas. O mais recente, envolvendo este maravilhoso período de arraial.

Longe quase 4,0 mil quilômetros de casa, qual meu imenso prazer em ter encontrado uma família que praticamente me adotou, e sempre que pode me convida para festa e eventos da família? Alegria quase superada ao me convidarem para um aniversário de uma quase irmã adotiva minha. Pasmem, com o tema: festa junina.

A coisa só melhorava quando me falaram que ia ter cuscuz e canjica. Eu fiquei feliz e atônito ao receber o convite. “Nossa! Que saudade de um cuscuz” pra relembrar meus cafés de domingo na terrinha. Tudo certo: chegou dia da festa, até me vesti como mandava o figurino.

Tão logo cheguei na casa da minha segunda família e já foram me mostrando os famigerados quitutes.

Canjica x Munguzá

Tudo bem, já tinha ouvido falar que os nomes eram trocados a depender da região onde você esteja, e a propósito, o munguzá estava muito bom, quase tão bom quanto o da minha mainha.

Cuscuz (?)

Diferente do caso anterior, onde havia dois nomes para a mesma comida, aqui o mesmo nome serve para dois pratos diferentes. Fui tão sequioso por um cuscuz nortista/nordestino, sabe aquele sequinho feito com milharina? Exato. Às vezes com queijo ou carne seca, ou regado com leite de coco, como mainha gosta. Mas ali na minha frente estava, não sei bem, o primo do cuscuz que eu conhecia que teve um filho com o angu mineiro.

Não consegui esconder meu descontentamento inicial, infelizmente. Fiquei até encabulado, parecia que antes de provar eu já estava fazendo a famosa desfeita. Descontentamento pela expectativa não atingida, não pelo prato em si.

Pé-de-moleque

Quando me mostraram o pé-de-moleque eu pensei “ué tô vendo paçoca”. Cheguei até a compartilhar esse pensamento, mas que foi logo desfeito ao me dizerem que paçoca é outra coisa. Até tentei explicar como era o pé-de-moleque que eu conhecia, mas aparentemente confundi mais ainda minha família são-pedrense.

Quentão

Este eu sequer conhecia, talvez tivesse visto em algum filme ou novela. A verdade é que era algo novo pra mim. Cogitei desconhecer por uma razão climática: ora, em Manaus, numa noite comum com seus 28º, quem iria consumir uma bebida, quente, feita com água, cachaça, mangarataia e especiarias?

Logo rebati esse pensamento. “E por acaso pode faltar tacacá num arraial amazonense? Numa quermesse?” e vai além, quantas noites quentes eu não ia pro Largo de São Sebastião, admirar o Teatro Amazonas tomando uma cuia de tacacá fervendo? E quantos não fazem o mesmo?

Todos sabem o quanto o Brasil é um país continental, mas eu percebi nessa noite que temos vários países nesse continente.

E o melhor, no momento atual da minha vida, posso aproveitar, posso usufruir, posso me esbaldar com essa diversidade toda.

Não preciso nem dizer que provar quentão pela primeira vez foi algo muito especial, sentir o gosto da cachaça, o aroma das especiarias e a ardência do gengibre no finalzinho. Comer um cuscuz (pelo menos chamaram assim) com frango e um molho bem encorpado numa noite fria, e um doce de amendoim que chamaram de pé-de-moleque sendo a cereja deste bolo junino.

Essa mesma família são-pedrense me conta várias histórias e receitas do interiorano, do caipira, do sertanejo, e em contrapartida adora me ouvir falar das terras de Ajuricaba, do Forte de São José da Barra (Manaus).

E o que fica depois de tudo isso é ver a diversidade cultural como ela tem de ser, uma cultura sem sobrepujar outra, apenas ouvindo-a, entendendo-a, compreendendo-a realmente e reciprocamente.

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