Arqueologia digital

Allan Gomes
O Boteco
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4 min readSep 19, 2023

Era pra ser só uma thread no Twitter, mas…

Aquela rede está deixando de ser uma rede, e se tornando cada vez mais tóxica, então vamos trazendo aqui pro cercadinho algumas coisas.

Tava fritando aqui com as mudanças na Internet como a gente conheceu, lá nos idos de 2005, para o que é hoje. E ao mesmo tempo organizando coisas minhas na memória de HDs e computadores velhos às vezes me sinto como um arqueólogo de uma geração que viu/construiu a cultura digital.

Nesse processo de organização, contei pra uns amigos recentemente sobre uma banda de Pernambuco que eu encontrei em alguma garimpada no saudoso MySpace: Negroove. O som dos caras era muito rico, e sinto muito do que eles experimentaram ali atrás (na primeira década do século XXI), presente em badas como Baiana System ou ATTOOXXA (Sério, não sei como escreve, mas a ideia é essa aí, dobrar todas as letras).
O únicos disco da banda chama “Eles não usam ene” e basicamente não se encontra em lugar nenhum da Internet atual… mas tá ali guardadinho no meu HD.
Lembrando de Negroove, e começando a procurar por onde andam integrantes e tal, descobri que SIMPLESMENTE o DJ Urso de Bacurau é interpretado pelo vocalista da banda, o cantor Jr. Black. E descobri que tragicamente Jr. Black faleceu ano passado.

Outra garimpagem que remonta mais ou menos à mesma época, foi que eu estivem tentando me lembrar quais eram minhas primeiras referências de podcast, uma mídia que eu consumo BASTANTE ainda hoje. Não lembro como cheguei até esse podcast, mas me recordava de um nome: Caiowas. Dei uma pesquisada e não é que aqueles episódios gravados quase 20 anos atrás ainda estão no ar? Conheçam o podcast Caiowas.

Eu nunca procurei saber muita coisa sobre quem produzia o podcast, não era assim que consumíamos as coisas naquela época. Sei que é um cara que era envolvido em literatura, e enquanto escrevo essas linhas não procurei mais sobre ele. Mas reencontrando o podcast, ouvindo essa voz com sotaque carioca carregadíssimo, eu pude me dar conta de como é forte em mim até hoje essa construção direta entre música popular e poesia. É quase certo que esse podcast é responsável por isso.

Quando eu tô montando umas playlists/mixtape caseiras eu sempre quero colocar algo de poesia junto. O texto sobre a mixtape de músicas para esperar o fim do mundo tá aí pra provar.
Mas esse podcast é SOBRETUDO a origem da minha paixão pela música de Jorge Ben. A edição especial Big Ben está encrustada na minha mente. Foi em um dia de 2007 que o Allan de 21 anos esbarrou com esse ep e teve a cabeça explodida pelas possibilidades alquímicas sonoras da música de Jorge. Além disso, muitas outras referências que esse podcast acabou marcando na minha formação:
- Declamação de poemas. Até hoje eu tenho costume de ler algum poema e depois falar em voz alta, e por fim, gravo um áudio e deixo salvo nas minhas notas do Telegram;
- Paulo Autran declamando poemas, e o projeto Quadrante. Esse projeto o ator gravou até próximo a sua morte (inclusive ocorrida no ano de 2007, quando eu conheci o podcast), e era veiculado em alguma rádio de São Paulo ao qual não me recordo. E como quase tudo da era digital, é um programa que a gente não encontra mais muitas coisas online. No meu HD ainda tenho umas 40 gravações desse projeto salvas. Não sei até quando, com as constantes mudanças nas formas de armazenagem…

-Poesia pornográfica: tá, isso não é tão relevante na minha formação, mas ‘Poema da buceta cabeluda’ era um recurso que eu sempre usava em conversas de bar durante um tempo. E eu tenho no meu acervo uma antologia de poesia pornográfica brasileira que vai desde o século XVI, até a contemporaneidade. Livraço!

-MPB: tá certo, eu já conhecia MPB antes, mas esse podcast que me abriu os olhos pra fusão possível entre tudo o que se faz de música brasileira. Antes dele era uma caixinha entre ‘clássicos’ (Chico Buarque, Caetano, galera da bossa nova), ‘populares’ (os bregas, galera do samba, etc), e no Caiowas que eu percebi que isso é tudo a mesma coisa e dá pra misturar tudo perfeitamente. Foi aqui que ouvi pela primeira vez alguns dos sons que me marcaram e trago comigo desde então: Nelson Cavaquinho, Jorge Mautner, Cartola, BNegão, Clementina de Jesus e muitas outras potências.

Pra não ficar só em música, vou trazer um gif que eu não faço ideia a quanto tempo eu carrego nesses arquivos virtuais:

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