Músicas para esperar o fim do mundo

Uma playlist para a quarentena. Nem otimista, nem pessimista

Allan Gomes
O Boteco
6 min readMay 1, 2020

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Sou bastante apaixonado por música. Ouço tanto e de tantos tipos que algumas pessoas já até ficaram surpresas. Costumo dizer que é um interesse profundo como forma de compensação da minha completa inaptidão musical, já que sou desafinado, e nem no ‘Parabéns a você’ eu me garanto, preferindo ficar calado.

Toda esta introdução para falar que eu acabo me inspirando em momentos, sentimentos, situações da vida, e etc, para criar playlists. Uma das que eu achei mais interessante é a playlist criada após outubro de 2018 “É preciso estar atento e forte”, quase uma resposta à angústia geral que eu percebi entre diversas amizades e nos comentários gerais que acompanhei em redes sociais. Outro dia escrevo sobre essa playlist e trago ela aqui.

Hoje é para falar sobre as “Músicas para esperar o fim do mundo”, uma das mais recentes e com título inspirado no livro do Aílton Krenak (mas fica só no título mesmo, as músicas não se relacionam com o livro). Com essa sequência de músicas eu busquei traduzir um pouco desses sentimentos que movem o turbilhão de pensamentos durante essa longa quarentena imposta pela pandemia do novo coronavírus.

Eu ainda sou do tipo que baixa música. E ao longo de alguns anos acumulando arquivos digitais já tenho uns 200Gb de música. Muito desse acervo eu simplesmente não encontro nos serviços de streaming, o que faz com que algumas das playlists que eu monto off-line eu não consiga disponibilizar. A “Músicas para esperar o fim do mundo” foi construída offline, mas como eu gostaria de compartilhar com mais pessoas tentei trazer para o mundo dos streamings. O serviço que eu uso é o Deezer, que infelizmente não tem todas as músicas da playlist original.

Essa playlist abre com Juízo Final, na versão de Seu Jorge & Almaz [procurem esse disco que é das melhores coisas que o Seu Jorge já gravou. O ‘almaz’ nada mais é que uma formação da Nação Zumbi. E o repertório só tem coisa fina]. Gosto de como a sonoridade dela nos remete a um climinha leve e bucólico escolhi para abrir a sequência. Na letra, uma mensagem poderosa para os tempos que vivemos:

“O sol há de brilhar mais uma vez, a luz há de chegar aos corações, do mal será queimada a semente, o amor será eterno novamente”

Sim, a música fala sobre o Juízo Final, e pode ser que estejamos vendo um mundo se acabar, mas ainda assim acho importante alimentar a esperança de que é pra vir um mundo melhor. A música é uma composição do Nelson Cavaquinho, exímio cantador do fim, e já foi gravada por uma infinidade de vozes da música brasileira.

Já a segunda música traz a primeira frustração do processo de conversão da playlist montada em off-line para a versão streaming: aqui deveria estar Lavar as mãos, clássico infantil da trilha sonora do Castelo Rá tim bum cantado por Arnaldo Antunes, mas que ‘não está disponível para o seu país’ no Deezer, sejá lá o que isso quer dizer. E essa faixa não precisaria nem explicar, né? Eu coloco em alto volume de vez em quando para lembrar a vizinhança também sobre lavar as mãos.

Mas, seguindo com essa nossa versão online, entramos com Céu em dose dupla: Vinheta Quebrante e Lenda. Duas músicas do primeiro disco dessa cantora com o timbre meio rouco e que também me faz sentir acolhido/embalado. Essas duas estão aqui pela sonoridade e sensação gostosa, nem fiz questão de uma conexão temática ou pelas letras, a sonoridade as aproxima, penso eu. E muitas vezes é assim que eu construo essas minhas playlists, o som, ou as vibes, vão se aproximando e costurando.

Na sequência Curumin com Treme Terra, ainda sinto essa conexão sonora nesse bloco, mas essa música fala de renascimento, primavera, semente… é bom pra essa construção de novo mundo que está caindo sobre os nossos ombros, né?

Em seguida Erykah Badu em três faixas. Eu não sou fluente em inglês e nunca me ligo nas letras, de forma que quando eu coloco músicas gringas nas minhas playlists são por critérios que eu não sei explicar muito bem. Mas ouçam com atenção “You got me” porque Erykah Badu e The Roots mandam muito nessa faixa!

Já que estamos pisando na seara do rap, porque não voltar para as músicas nacionais nesse estilo? Introduzindo Emicida temos essa vinheta de uma das mixtapes (Para quem já mordeu um cachorro por comida, até que eu cheguei lonte) que o rapper gravou antes do primeiro disco de estúdio. A cacofonia desse som acho que casa bem com o clima da playlist como um todo e ajuda a marcar a virada do que tivemos até o momento. Daqui pra frente ao invés de falarmos de atmosfera, clima, as músicas passam a se referir a estados internos. Zica vai lá e Canção para meus amigos mortos são coisas que eu gostaria de dizer para mim mesmo e para os outros.

“Amor e flow, muito flow
Aí, respeita quem pôde chegar onde a gente chegou!”

Would be a Killer é um título auto-explicativo. Não é muito nobre pensar em matar outras pessoas, mas é algo que muitas vezes passa pela cabeça ao ver gente se esforçando para que outros morram. With little help from My Friends, é basicamente um grande reconhecimento de como a gente tá conseguindo sobreviver em nossa época: com uma ajudinha dos amigos. A lo cubano é provocação, mais do que alguma conexão com a letra, pelo exemplo e liderança que a ilha ainda é capaz de ser durante essa pandemia.

Desengano da Vista é um chamado ao discernimento, tão em falta agora e há um tempo já. É música de Pedro ‘Sorongo’ Santos, que tem um álbum maravilhoso e quase esquecido: Krishnanda. Bem naquela pegada mística que nos anos 70 também nos deu “Racional” e “A tábua de esmeralda” aqui no Brasil. O Pedro, o sorongo, e Krishnanda renderiam um texto exclusivo.

Esses tempos caiu minha ficha de como foi importante alguns movimentos dos Marcelo D2 no início da carreira solo para ‘resgatar’ alguns nomes da música black e de nicho dos anos 70. Gerson King Combo (Mandamentos Black) e Claudia foram alguns, essa segunda aparece aqui justamente com Deixa eu dizer que é mais conhecida no sample do D2, mas que ela inteira é MUITO foda, e o disco onde a Claudia lançou essa música também. Quem não precisa desabafar ultimamente né?

Aqui outra perda que eu acho significativa nessa transposição da playlist off-line para a on-line: poemas. Eu sempre acho bacana introduzir algumas declamações no meio das sequências de música. E tenho salvo declamações naquele acervo que comentei no começo. As minhas preferidas são na voz do Paulo Autran, que tinha na rádio Band FM um programa chamado Quadrante, mas que infelizmente são bem difíceis de encontrar na Internet atual. Aqui nessa “Músicas para esperar o fim do mundo” teríamos Paulo Autran declamando “Quando eu era jovem”, poema de Fernando Pessoa. Como encontrei no Youtube, deixo aqui pra vocês:

Unbroken, unshave. É uma instrumental da Budos Band. Gosto de usar algumas faixas para ‘cortar’ ou demarcar as playlists e sonoramente essa cumpre essa função aqui. Mas o título é justamente como me sinto: inquebrável, e sem me barbear.

Na volta, uma sequência de três faixas um pouco menos motivacionais. É um pouco a situação de uma geração que já está na vida adulta plena e tá vendo ruir muitas certezas. Revolver, do Walter Franco, dá a letra de um momento de ebulição interna, quase uma dissipação provocada pelo isolamento, o medo da morte, a incerteza diante do futuro.

Lembrar de esquecer // Esquecer de lembrar // Cansar de dormir // Dormir descansar // Sorrir de doer // Doer de sangrar

Tudo pra ser feliz, de Totonho e os cabra, é exatamente o que eu falei antes: uma geração que quebrou a cara por achar que a felicidade estava em uma série de elementos que na verdade ficaram para trás, em um mundo que é outro agora. [Quê? Na verdade é uma letra romântica sobre desencontro amoroso? Xiii]

A gente encerra com um conselho: Morra bem, viva rápido, de Don L. Mais do que um niilismo frente à vida, é um chamado à ação. Por pior que esteja, vamo lá em busca dessa vida melhor para poder ‘morrer bem’

Morra bem, viva rápido
Né a vitória que cê quer ? Então brinda
Peça, lute com fé, irmão
Viva

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Allan Gomes
O Boteco

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