O diabinho do ‘não fiz nada’

Allan Gomes
O Boteco
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3 min readMar 31, 2023

Andam chamando por aí de ansiedade por produtividade, ou algo assim… mas eu tenho percebido diferente em mim

Photo by petr sidorov on Unsplash

Nos últimos anos — que coincidiram com uma certa pandemia — tenho notado que a minha cabeça não tem operado 100%. Não como era antes, pelo menos. Aparentemente tem algo a ver com ansiedade, mas enquanto eu não vou a algum especialista para confirmar, venho fazendo registros e sondagens mentais, tentando identificar esses estados e como entro e saio deles. Um dos mais recorrentes é a sensação de chegar ao fim do dia e pensar “Puta que pariu, o dia inteiro passou e NÃO FIZ NADA”.

Percebam aqui que eu estou deliberadamente fugindo de nomenclatura técnica, ou até mesmo de me aprofundar no aspecto da psicologia em si. Não quero ser irresponsável. Reconheço que sim, isso parece uma característica de ansiedade, mas como não estou apto a distribuir diagnósticos, não vou enquadrar esse ser, o diabinho do ‘não fiz nada’ em algum CID.

Não sei por aí, nas cabeças de vocês, isso também acontece, e acho que talvez seja uma característica de pessoas que trabalham como eu, sem vínculos empregatícios, horário de ponto, e essas coisas modernas que em português às vezes resumem no termo: home office. O fato é que me pego com frequência me batendo, geralmente a noite, próximo das 21h, com a horrível sensação de ter perdido o dia. De não ter feito nada o dia inteiro. Em geral é angustiante o sentimento, mas eu tenho trabalhado em um antídoto: repassar mentalmente as coisas que fiz. TODAS. Não apenas as ligadas a trabalho.

Funciona assim: o diabinho já encosta ali nos meandros da minha mente por volta das 17h. O sol começa a se por, e ergo os olhos e penso ‘putz, já tá acabando o dia e eu acabei não fazendo TAL COISA, deixa logo eu fazer…’ e lá vai eu pra 345° tarefa do dia. A noite cai (o frio desce.. ê brincadeira), e geralmente eu ainda estou dedicado a algo, e de repente bate às 21h, e com essa hora um certo pânico-angústia-frustração com a constatação de que O DIA ACABOU E EU NÃO FIZ NADA!

Bom, após passar dias e dias, que se tornaram semanas, e que eu identifiquei depois que era algo frequente há meses, lidando sozinho e desarmado com esse diabinho, eu me voltei para as questões filosóficas: “Como assim NADA!? O que é o Nada para você, senhor diabinho??” Diante do silêncio, eu passei a jogar na cara algumas das coisas que eu tinha feito no decorrer do dia. Algumas muito relevantes, outras nem tanto, mas notei que o desgraçado do diabinho não leva nada disso em conta quando vem com o papo de ‘não fiz nada’. Portanto, isso também é uma vantagem na hora de combatê-lo.

Nada? Pois eu limpei a caixa de areia da gata! Nada!? E o email que eu escrevi respondendo aquela proposta de contratação? Nada, não senhor! Hoje foi o dia em que eu encarei 3 reuniões e acabei não tendo tempo de almoçar!

Pois… descobri que reagir traz bons resultados. É cansativo ter que lidar com esse diabinho com frequência, eu preferia não saber nem da existência dele, mas pelo menos não é mais um fator que pode atrapalhar o dia seguinte.

Um ponto que gostaria de destacar aqui é: chamei esse estado mental de diabinho pois não tenho certeza se tem haver com a ansiedade da produtividade. Não sei em que paisagem mental ele se encaixa. A sensação que tenho é apenas de falta de ajuste na auto-percepção. Pois no combate ao tal diabinho eu não faço questão de enumerar tarefas de trabalho, ou domésticas, ou pensar em prestar contas a uma externalidade, é apenas uma necessidade de organizar mentalmente O QUE EU FIZ.

E eu amo quando ao final do dia consigo listar lazeres, aprendizados, ou até mesmo um texto despretensioso dessa publicação tão negligenciada e que pode ser tão melhor utilizada que é este Boteco.

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Allan Gomes
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