A escrita como relação e a relação com a escrita

Daniel Cobianchi
O Campo
Published in
4 min readFeb 27, 2021

Uma conversa com Ana Holanda, uma jornalista e escritora.

Eu era escritor. Digo que “era” porque se me perguntarem hoje, eu logo respondo que “não, não sou escritor”. Mas essa mesma questão teria uma resposta diferente se fosse feita a mim aos meus sete anos. O meu primeiro — e único — livro escrevi aos sete anos. Escrevi, produzi, ilustrei e distribuí uma única versão com um título bem grande na capa: “Os sonhos de Miguel”. Logo abaixo, tinha um desenho de um menino voando.

“Sonhos de Miguel” contava a história de um menino sonhador que um dia conseguiu realizar todos eles. Mas, no fim, lá na última página, Miguel acordava e percebia que todas aquelas realizações não passavam de um sonho. Ou seja, Miguel sonhou que realizou seus sonhos.

Acabou ali o meu único livro. Presenteei a uma amiga, que nunca mais vi — nem a amiga e nem o livro. Talvez alguns sonhos meus morreram juntos com os sonhos de Miguel.

A escrita seguiu comigo — e não poderia ser diferente. Mas uma escrita técnica, mecânica, que a gente aprende para passar no vestibular. Mesmo tendo feito faculdade de Comunicação, ainda sinto que não fiz as pazes completamente com a minha escrita.

Esse tema da escrita foi aparecer, ou reaparecer, para mim mais velho. Uma palestra, alguns vídeos, um livro incrível chamado “Como se encontrar na escrita: O caminho para despertar a escrita afetuosa em você”, de Ana Holanda, foram alguns caminhos de descoberta. Assim surgiu uma vontade de mergulhar nesse mundo e logo um impulso em conversar com a própria Ana, a escritora do livro.

Decidi então enviar uma mensagem a ela, convidando-a para um papo. Escrevi, apaguei, reescrevi, apaguei de novo. Mas enviei! E ela me respondeu: “Uau. Claro que topo”.

Ana me contou que não foi uma criança escritora, no entanto, os livros entraram em sua vida como uma abertura de portas. Com uma estante cheia de livros em sua casa, ela se aventurava a buscar aqueles guardados nas prateleiras mais altas, dos autores e autoras mais célebres. Mesmo tendo seus primeiros rascunhos na adolescência, “ser escritora” ainda era algo distante. Algo apenas para sonhadoras.

O que nos faz acreditar que “escrever não é comigo”, muitas vezes, é uma barreira interna. Não consideramos a escrita como uma possibilidade. Não experimentamos a escrita como parte da gente, como algo que precisa ser vivido.

Uma época em que exercitei bastante a escrita — e não por uma escolha própria — foi durante o ensino médio. A preparação para o vestibular não me assustava apenas pelas fórmulas de física — como esquecer o “Qui MaCeTe” para calcular calorimetria? — ou as equações complexas de matemática, mas pelas redações. Escrever “do jeito certo” sobre um tema que eu não dominava. Aí vieram as técnicas, as formas, as regras, e tudo mais que fazia da minha escrita o resultado de uma receita pronta.

Sempre lembro que, em um dos vestibulares, era necessário escrever três redações, cada uma sobre um tema diferente. Me preocupei tanto com a forma e com o novo acordo ortográfico que escrevi duas redações em páginas invertidas. Resultado: zerei as duas e pontuei apenas a terceira, não alcançando a pontuação necessária para seguir para a próxima fase.

Talvez durante essa fase eu não permiti me abrir para a minha própria escrita — e nem tinha noção disso. Continuei mantendo uma escrita distante, sem ter ali o que mais importa.

Mas o que impede a gente de compartilhar o que somos?

Escrever é iluminar. Trazer atenção para o que precisa ser falado e discutido. Também é um exercício, uma hábito que é construído aos poucos. A Ana mesmo demorou para acrescentar “escritora” entre os seus papeis. Foi mais fácil se apresentar como “professora” primeiro.

A virada para mim é perceber a escrita como uma relação. Não como algo feito, pronto, e que chegará em alguém; mas como o próprio artefato de troca. Um dos trechos do livro “Como se encontra na escrita”, da Ana, me ajudou a entender isso:

“Um texto deveria ser sempre um encontro, em que você me vê e eu te vejo. E isso é profundo. Por que, através do meu texto, eu deixo de olhar de cima para baixo e passo a olhar nos olhos, na mesma altura que o outro. Para mim, a escrita é isso. Uma experiência de amor, de humanidade na sua essência. Eu estou te vendo. Vamos conversar.”

Para essa relação acontecer, precisamos tirar as armaduras, os escudos. É como estar sem roupa. E isso não é fácil! Nessa conversa com a Ana descobri alguns motivos que fazem essa distância ainda estar presente na escrita.

Esses escudos que nos protegem são as palavras. Um exemplo disso são os jargões ou expressões técnicas — uma forma de nos proteger atrás de palavras muitas vezes inacessíveis, que causa distância, dúvida e desconexão. Não aproxima.

Tão importante quanto observamos esses bloqueios é entender de onde vem a nossa escrita, o “lugar de nascimento da escrita”. A Ana me explicou assim: “Normalmente, você escreve do lugar que você está, e não a partir de quem você é. ‘Ganhei prêmios, sou doutor…’, trazemos isso para o discurso. Começamos a escrever sobre onde estamos, e não quem somos, e esse lugar é um lugar de desencontro. Se desnudar é o primeiro passo para se aproximar — estou tirando isso que estava entre nós e agora estou me aproximando de você, estou te olhando nos olhos. Esse é o verdadeiro papel da comunicação, conversar de verdade. A gente tem que escrever do lugar de quem a gente é, e não de onde a gente está. E fazer isso é se abrir, se mostrar vulnerável.”

Talvez eu ainda não seja íntimo da minha escrita. Talvez eu precise mudar a forma como penso a escrita. Talvez eu precise lembrar o tempo todo que a palavra existe para dar sentido, e não para ocupar o espaço vazio das folhas.

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