Analice

Felipe J.S. Ant
O Cangaceiro, uma visual novel
6 min readNov 23, 2016

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O passado de uma das personagens principais.

Lá na Casa dos Carneiros, sete candeeiros,
Iluminam a sala de amor;
Sete violas em clamores, sete cantadores
São sete tiranas de amor, para amiga em flor
Que partiu e até hoje não voltou

É impossível contar a história de Analice Carneiro sem começar pela história de sua mãe, Ana Carneiro.

Os Carneiros viviam em uma pequena fazenda no interior do Ceará, tinham algumas criações e plantavam mandioca para fazer farinha e vender na vila. Ana foi a última filha de um total de seis irmãs.

No dia que Ana nasceu as dores começaram logo cedo — sempre contava o Velho Carneiro — A mãe estava de barriga baixa, perto da boa hora. O dia passava , e mais fortes vinham as dores, mas a mãe era mulher teimosa e não aceitava parteira. Todas as outras irmãs tinham nascido sozinhas, e quanto mais filhas nasciam, mais ela ganhava confiança de que não carecia de ajuda de fora, até porque as irmãs aprendiam o ofício. Mas Analice seria diferente. — O Velho acendia seu cachimbo e olhava pro horizonte — Até hoje não sei se me arrependo ou se aceito como obra de Deus.

Eu tinha que entregar os sacos de farinha lá no Crato. Era negócio rápido e precisava do dinheiro. Sai de casa com o coração pequeno e fui lambendo no chicote as costas dos burrinhos. A carroça pulava tanto que por mais de uma vez quase eu que caí pra fora. Era relincho e chicote. Relincho e chicote. Descarreguei ligeiro, voltei pro carro e apertei os bichos. Era uma noite sem lua, tão escura que não se via nem as pedras no chão. Era mau agouro. Eu desviava de galho, me equilibrava na banqueta, rogava baixo pra tudo que é santo, quando então um vulto passou rápido bem na minha frente. Os burros empinaram e a carroça deu um solavanco. Voei. Quando dei por mim, estava de costas do chão, meio tonto demorei para perceber que do meu lado jazia um filhote de Suçuarana. De olhos arregalados me mirando e sangue fresco ainda saindo da boca, a roda não deu chance para o pobre. Ainda estava juntando os pensamentos quando ouvi o miado da mãe. Alto. Atravessado. Gelou minha espinha das costas até a nuca. Já tinha ouvido muito miado de Suçuarana, mas nenhum foi tão doído. Os burros corcoveavam, doidos de medo, e levantei num pulo para segurá-los e assim que olhei pra trás eu a vi.

Ela me encarava de boca aberta, olhava o cadáver do filho, dava uma volta e armava bote de novo. Saquei do facão, puxei o máximo de ar pro pulmão e gritei com todo folego que tinha:

- Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo, Suçuarana! Sei que dói tua cria morta, sei porque também sou pai. Sei que dói, Suçuarana, porque nessa terra, de cada três rebento, um Deus toma pra si e a gente não vê crescer. Sinto sua dor e reconheço seu direito de vingança, mas juro por tudo que é mais sagrado, que se você matar esse pai de família para compensação, eu te furo esse bucho de ponta a ponta e a gente vai cair preso junto até o inferno!

Ela miou de novo, o mesmo grito, e gritou de novo. Me devolvia o discurso e seus termos. Era choro e raiva. Eu estendia o facão, eu era bicho também. Gritou, gritou, e sumiu no mato. Eu corri para os burros e voltei para a minha corrida. Dobrei as chicotadas. Queria ver Ana, queria ver vossa mãe. Mas parecia que o miado da Suçuarana me seguia. — Tu roubou minha cria, homem sem coração. Nada fica impune nesse sertão. Meu filhote. Meu filhotinho. Há de me pagar.

Os miados misturaram com os gritos de mãe, que chorava e urrava para botar Ana para fora. Era tanto sangue na cama que eu não sabia mais o que era lençol e o que era perna. Ela gritava e eu ouvia os miados. Entrei no quarto agoniado, vossa mãe quando me percebeu, arregalou os olhos, e eu juro por por Padrinho Padre Cícero, os olhos dela estavam iguais os olhos daquela Suçuarana.

Ana nasceu gritando também, era cabeludinha, vermelhinha que nem ciriguela madura. Vossa mãe caiu de febre. Nos delírios ela recusava peito ,fugia de medo, gritava que Ana não era nossa filha, que era filhote de onça e ia morder o peito dela. Aguentou uma semana assim, era um sofrimento, até que finalmente Deus achou por bem leva-la.” — Nessa hora o velho Carneiro embargava a voz, dava outra pitada longa e espremia os olhos como quem tenta enxergar algo na mata escura. — A Suçuarana cobrou o pagamento. Levou vossa mãe e me deu a alma do filhote dela para cuidar. É por isso que Ana é brava desse jeito. Ela é Suçuarana.

O Velho falava assim porque Ana nunca agira como as outras irmãs, não se resignava as tarefas do lar, queria aprender a montar e a atirar, andava de facão e mais de uma vez se meteu em brigas nas festas de santo. E o Velho nunca metia bronca, tinha nela uma predileção, mesmo que nunca admitisse. Quando Ana arranjava as suas, ele ria e a chamava de Suçuaraninha.

O tempo passou e Ana não tinha nem 18 anos quando um bando de cangaceiros invadiu as terras dos Carneiro. O Velho acabou que virou o coitero. Os coiteros eram aqueles donos de terra que davam abrigo aos cangaceiros, as vezes por negócio de politica, ou como no caso do Velho, pelo medo do rifle.

Os cangaceiros ficaram por uma semana e a casa viveu em função deles. O líder, que se chamava Antônio, era um homem muito bonito e andava com um cangaço todo enfeitado com moedas de ouros e uma corrente no pescoço. Colocava perfume também e gostava de fazer forró todas as noites. Como o Velho Carneiro tinha muitas filhas, ele mandava que todas fossem dançar com os cangaceiros na festa. O velho se mordia mas deixava, era isso ou o risco da família toda ir se juntar a Mãe.

Mas era Ana que recusava, pisava no pé dos cangaceiros, mordia , brigava para não ir. E talvez fora essa coragem que encantara por Antonio. Ao invés de forçar o convite ao baile ele passou a corteja-la. Trazia presentes, passeava no lago com ela e contava todas as intempéries que o bando já tinha passado. Até que em um Domingo o bando inteiro sumiu. Levando junto consigo três reses gordas, um bode e Ana.

O Velho se doeu, mas aceitou sem falar palavra, para ele Ana era mesmo uma suçuarana e que nenhuma suçuarana aguentaria viver essa presa nessa vida de batalhar hoje o feijão do dia seguinte. Ana precisava da natureza.

Um ano se passou. Era uma outra noite sem lua, a família estava toda em casa nos preparos para dormir, quando um miado de onça arrepiou a espinha do velho. Ele então pulou da cama, armou o rifle e fez um sinal da cruz — A onça desgraçada, já me basta ter levado uma! — e foi sair para caça, mas assim que abriu a porta quase tropeçou em um cestinho feito de palha. E lá estava um pequenino e lindo bebê, vermelhinho, vinha encoberto numa pele, que o Velho reconheceu imediatamente. Era pele de Suçuarana. Era Analice.

Felipe J.S. Antunes

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Felipe J.S. Ant
O Cangaceiro, uma visual novel

Quando escrever um livro, me chamarei escritor. Enquanto isso, vou tentando