Um review do relatório de tendências da newsletter Bits to Brands

Report do semanário digital de Beatriz Guarezi traz um apanhado importante para profissionais do mundo digital — aqui estão meus pensamentos sobre ele

Ricardo Oliveira
O canvas de conteúdo
9 min readMar 2, 2020

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A Bits to Brands (BtB daqui pra frente) está no meu top 5 newsletters preferidas da atualidade, junto a nomes importantes como o Meio e The Brief (onde conheci a BtB). O trabalho de Beatriz Guarezi tem como base uma ideia daquelas que eu gostaria de ter tido: falar sobre branding e tecnologia, o que naturalmente faz abrir um leque grande de possibilidades.

Em sua curadoria semanal, a BtB seleciona temas ligados a comportamento, marketing, conteúdo, consumo, inovação e tudo mais que cerca o universo das startups, big techs e marcas imersas no digital.

Nada mais natural que alguém que se dedica a esse trabalho também elabore o seu report de tendências, lançado no último dia 27 de fevereiro. Antes de deixar meus comentários sobre cada uma das 6 partes do documento, quero dizer que você tem que conferi-lo por conta própria. Isso aqui não é uma tentativa de resumir um livro pra você (aliás, Bia, está na hora de falar da “praga” dos apps de resumo). Vá lá, faça sua leitura e volte aqui comigo pra esse momento “revisão dos pares”.

Antes de falar da primeira tendência, Guarezi faz algo essencial: estabelece o território sobre o que significa falar de “futuro”. E apesar da futurologia do mundo das tecnologias ser um exercício científico interessante, não é a isso que o documento se propõe.

“É sobre visualizar coisas que têm acontecido aqui e ali e encontrar o fio condutor delas”

Gosto muito de usar o termo vetor, que aprendi com meu ex-professor de mestrado Marcos Nicolau. Um vetor é um “catalisador” (como diz Scott Galloway na citação do relatório), algo que estabelece a direção e o ritmo de um certo assunto — nesse caso, um assunto social, cultural, comportamental. Daí a importância de se afirmar: “esta lista não contém nada que não tenha acontecido” — é uma observação para “ligar os pontos” e “visualizar o futuro”. Certeiro.

1. Pessoas virtuais: avatares, personagens, mascotes?

Essa é a tendência que certamente eu mais me identifico profissionalmente, por razões simples: apontei esse tipo de conteúdo como tendência em meu livro digital “O Futuro do Conteúdo” ano passado, graças a um projeto bem executado que realizamos para um hospital local (numa época em que a Lu do Magalu estava iniciando sua escalada rumo ao sucesso). A “Doutora Neves” virou o tema do TCC de Luíza Araújo, que está devendo trazer esse resumo para vocês aqui. Como apontado pelo relatório de Guarezi e pela pesquisa de Luíza, personagens de marca são a última fronteira de humanização de marcas no que se pode vislumbrar hoje.

Lil Miquela: ela não existe. Não existe?

Claro que hoje, com a consagração da Lu e seus primos varejistas, o projeto mais inusitado é o da modelo virtual Lil Miquela. Num primeiro olhar é creepy, bizarramente ultrarrealista, sensual, mas revelador dos anseios de uma geração de diminuiu as barreiras de entrada sobre quem acompanhar na timeline. Pode ser até um personagem, como ficou claro com o sucesso da investida da Globo na última novela das 21h.

Claro que quando a gente fala dessa virtualização é importante citar aquele que foi um dos primeiros projetos a chamar atenção nesse sentido. Ami Yamato é uma personagem criada em 2011 (!!!) para ser uma youtuber virtual 3D e tem lá seus mais de 140 mil inscritos na plataforma — já recebeu até indicação ao Shorty Awards.

Claro que quando o report fala em “para ser alguém na Internet você não vai precisar ser alguém na vida real” a gente lembra automaticamente de “Jogador Nº 1”, livro de Enerst Cline que foi adaptado com destreza por Steven Spielberg para os cinemas. Brincadeiras como a “Dona Silvana” só atestam que essa pode ser a nova barreira a ser ultrapassada: a virtualização de personagens populares, controlados por humanos (claro) em sistemas em tempo real. Ou seja: lives, stories, podcasts, apresentados por caricaturas, mascotes, personagens feitos por humanos mas tecnicamente viáveis para seu anonimato em tempo real. E esse assunto se conecta a tendência número 6.

2. Mídias privadas em lugares públicos

Gosto da ideia de “Mídias íntimas” para exemplificar a ideia trazida na segunda tendência, chamada “Era da Interação”.

Aqui, Beatriz fala sobre como as mudanças perpetuadas e publicizadas pela Facebook Company em seus aplicativos promovem novas possibilidades de consumo de conteúdo. Claro que essa perspectiva se deve muito à aposta da Mary Meeker ano passado, falando sobre a ascensão do dark social. Na época (em junho), mencionei na newsletter do Futuro do Conteúdo que formatos como podcast e newsletters têm uma razão específica para bombar na era do “cansaço digital”: o grande problema das timelines e o fluxo de ansiedade das mesmas é a necessidade de feedback que temos para que esses espaços tenham alguma lógica. É uma economia social cruel que podcasts e newsletters não se conectam da mesma forma que os feeds/timelines. O tempo de resposta é diferente, as interações são diferentes.

Mas e a intimidade?

Simples: inbox de e-mail é 100% privado e pode ser íntimo; para ouvir podcasts você faz de forma privada, em geral (no fone “dentro” do seu ouvido ou no carro, sozinho) e pode fazer parte da sua intimidade (“não quero que você saiba o que estou ouvindo”). Talvez a menção pendente nesse trecho do relatório seja o grande coringa do Facebook nos tempos atuais: o WhatsApp não seria o grande catalisador dessa transformação nas terras digitais de Zuckerberg? Vale pensar, BtB.

Imagem coletada do report.

3. Conteúdo original (de marca)

Quando a gente olha na perspectiva de hoje, parece ser uma super novidade da era digital que marcas façam conteúdo como fazem hoje. Fato é que essa é uma estratégia de marketing na transição do século XIX para o XX, tendo começado com os franceses da Michelin e seu guia de viagens e os americanos da John Deere e sua revista de agricultura The Furrow.

Ver marcas como a Apple investindo em uma plataforma própria de streaming revela, porém, um outro espírito do tempo: o de que conteúdo agora dita o “valuation” (pra usar a ótima percepção do relatório) das marcas. Ou seja: projetos de conteúdo original influenciam diretamente na visão dos acionistas dos grandes players.

Claro que os gráficos sobre a Netflix são assustadores: a marca parece estar entendendo que licenciar conteúdos dos outros é mais “caro” ou menos “rentável” para ela do que fazer os próprios. Isso muda tudo.

“Não é product placement, não é conteúdo patrocinado. É conteúdo original -seja próprio, ou em parceria”

E é por isso que eu não posso deixar de fazer mais uma ponte com o que apontei em “O Futuro do Conteúdo”: quando conteúdo passa a fazer parte da cultura de uma empresa, ele transforma todas as suas camadas, porque conteúdo é a principal forma de se conectar a pessoas nos nossos tempos.

Youtuber Nath Finanças fala de saúde financeira para pessoas de baixa renda

4. Quanto vale uma corretora de investimentos?

Apresentando a tendência na transformação do sentido de economizar e “administrar” seu dinheiro, o report traz o panorama das corretoras de investimentos. Tendo a XP apontada como expoente desse processo e sendo ela dona de marcas como Rico e Clear, eu faço aqui um link com uma conversa que já tive com um especialista da área.

Tanto a Rico como a Clear têm alguns youtubers como “embaixadores” das suas marcas. Youtubers com canais grandes que falam sobre finanças e sempre recomendam os serviços de cada respectiva corretora. O colega da área provocava: já parou pra pensar que se ele indica a corretora X, Y ou Z ele perde a credibilidade quanto à opinião dele sobre a corretora? Afinal, corretoras dependem de percepções sobre o modo como cuidam do seu dinheiro: garantias, sugestões de carteiras baseadas em critérios técnicos, tarifas sem nota de rodapé minúsculas e tudo mais.

A provocação não deixa se ser interessante quando a gente observa que os mais famosos conteudistas desse cenário são patrocinados por corretoras. É uma sinuca, claro: não há tantos potenciais patrocinadores assim e o Brasil vive um boom de corretoras. E é por isso que é tão interessante a visão de uma outsider como a Nath Finanças, que procura um público de baixa renda. Esses são os influenciadores que podem trazer novo sentido a esse vetor no médio e longo prazo.

Imagem coletada do report.

5. A voz da experiência

Essa certamente foi uma das tendências mais interessantes. Apesar do assunto dos migrantes digitais não ser novo, estamos chegando na época em que eles já estão conquistando décadas de experiência com Internet. Ou seja: alguém que tinha seus 40 anos quando a Internet chegou ao Brasil no começo dos anos 90 (e foi ativo no consumo de informação) hoje pode ter seus 60 anos e ser um diferente tipo de “idoso” — conectado, consumidor digital e produtor de conteúdo.

“Marcas e produtos precisam começar a se adaptar a essa nova realidade dos nada velhos idosos”

O fato de que daqui a 10 anos teremos mais idosos do que pessoas com até 14 anos assusta. Fala sobre as novas escolhas dos jovens adultos de hoje: ter menos filhos ou nem ter, mas também de se cuidar mais para viver mais. Aqui vive a ambição mais obscura do vale do silício e que é um subtema na série Years and Years (HBO/BBC, 2019): a vida “eterna” por meio do digital, na transferência de consciência para a nuvem. Seria isso o equivalente científico de viver pra sempre?

6. As mil faces do deepfake

Finalizando as tendências, Beatriz traz a perspectiva sobre a importância do rosto digital nos tempos de hoje. Um corpo digitalizado já pode não ser o original há décadas graças ao Photoshop, mas é com as tecnologias de deep fake que estamos vendo um novo paradigma ser quebrado.

Ainda que a tecnologia seja assunto majoritário da mídia para falar dos aspectos negativos (quando usada para simular a fala de uma personalidade), acho importante listar aqui alguns vídeos que exemplificam o uso criativo do deep fake:

Ctrl + Shift + Fake: o canal já conta com mais de 300 mil inscritos e faz a fusão de rostos de atores em filmes e séries. Abaixo, um dos seus melhores exemplos do potencial criativo: o que aconteceria se Neo tivesse escolhido a pílula azul e seguido com a vida normal? Rende um mashup entre “Matrix” e “Como Enlouquecer Seu Chefe” (curiosamente, dirigido por Mike Judge, criador da série Silicon Valley).

Collider: o site de cultura pop americano fez uma paródia das famosas mesas-redondas do The Hollywood Reporter, usando atores que imitam as vozes das celebridades e… trocando seus rostos pelos dos próprios atores. O resultado é mais assustador do que engraçado.

Jim Meskimen: este ator é um grande imitador de atores famosos. O que fez? Um vídeo em que imita vários e o seu rosto é substituído pelo rosto do ator de cada voz. É impressionante.

Pra mim, é nisso que temos que focar quando falamos de deep fake, sem perder de vista o uso negativo que criminosos podem fazer da tecnologia.

Quando observamos calmamente, no entanto, a primeira e a sexta tendência falam sobre representação, personas e agenciamento de corpo através da tecnologia. Quando seremos surpreendidos por alguém que escolheu viver outra vida no digital (antigo) utilizando outro corpo, outra voz, outra personalidade com traços perfeitamente realísticos?

Se ainda não ficou claro, o report da Bits to Brands é rico e vale sua leitura — e se você é um profissional de marketing, comunicação, publicidade, tecnologia, é obrigatório. Ao fim, Beatriz deixa suas fontes, o que potencializa a leitura para um outro patamar de aprofundamento. Seguir a Bits to Brands é essencial para acompanhar essas novidades e espero que minha leitura tenha ajudado leitores (ou não) da newsletter a ampliar a discussão.

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Ricardo Oliveira
O canvas de conteúdo

Faço conteúdo e escrevo sobre ele. Empresário fundador do Dois Cafés (www.estudiodoiscafes.com.br), palestrante e professor.