A regulação de plataformas e a proteção da soberania digital do Brasil

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Por Marina Quezia Mota Alves — Advogada, com atuação nas áreas de Proteção de Dados e Propriedade Intelectual. Bacharel em Direito pela Universidade Federal da Bahia. Contato: marinaqueziaa@gmail.com.

Não é recente a discussão acerca da regulação das plataformas digitais no Brasil. De acordo com o Observatório do Marco Civil da Internet (2020), os primeiros passos foram dados em 1999, com o Projeto de Lei n. 84/1999, cujo viés de vigilância foi extremamente criticado. Uma década depois, foi lançado o Decálogo do Comitê Gestor da Internet (CGI.br), uma das principais inspirações para o Marco Civil da Internet (Lei n. 12.965/2014 ou “MCI”), o qual dispunha sobre os princípios a serem respeitados no contexto brasileiro da Internet.

No mesmo ano, abriu-se o projeto para construção coletiva do MCI, legislação que viria a se tornar modelo para outros países ao redor do mundo quando aprovado, em 2014. Desde então, a atuação dos chamados “provedores de aplicações de Internet” ampliou bastante, sendo até apontados como ferramentas de proliferação de fake news e de discursos de ódio, que, inclusive, marcaram as eleições de 2022 (Grassi; Ruediger, 2023).

Por esse motivo, o modelo de responsabilização das plataformas digitais[1] voltou a estar no centro dos debates em 2023. A Câmara dos Deputados colocou em pauta o Projeto de Lei n. 2630/2020, que discute novos modelos de responsabilização das plataformas e já foi aprovado no plenário do Senado, e chegou a tentar votá-lo em regime de urgência. Em paralelo, o Supremo Tribunal Federal marcou datas para julgar a constitucionalidade dos artigos 12 e 19 do Marco Civil da Internet nos temas 533 e 987, mas os julgamentos foram adiados.

A partir do relatório de “Ações e Diretrizes para a Regulação de Plataformas Digitais no Brasil”, publicado pelo CGI.br em 2023, observamos que não basta que o Supremo Tribunal Federal decida pela constitucionalidade ou não dos referidos dispositivos para resolver o problema. No que diz respeito à regulação das plataformas digitais, o Grupo de Trabalho que publicou o relatório sugere, ao menos, quatro ações, quais sejam: (i) definir aspectos, questões e princípios a serem considerados no modelo de regulação de plataformas digitais no Brasil; (ii) definir qual seria o escopo de regulação e a abordagem a ser adotada pelo CGI.br; (iii) definir um órgão regulador somente para as matérias das plataformas; (iv) viabilizar a realização de um processo regulatório com participação multissetorial (CGI.br, 2023).

Em relação à primeira ação, em específico, aponta-se que é necessário considerar o elemento da “soberania digital” de forma mais aprofundada na definição dos princípios, diretrizes e critérios que irão viabilizar o interesse público nessa nova arquitetura regulatória. Nesse contexto, esse ensaio busca, então, explorar como a regulação de plataformas pode ser importante como ferramenta de fortalecimento da soberania digital do Brasil. Para isso, abordamos as nuances relacionadas à soberania digital e, tendo-a como paradigma, tangenciamos algumas oportunidades e desafios a serem enfrentados na regulação das plataformas no país.

A regulação das plataformas como parte da estratégia nacional pela soberania digital

As discussões sobre soberania digital, por muitas vezes, esbarram na dificuldade de consenso acerca de seu conceito. Inicialmente, a soberania digital estava muito associada a questões de segurança nacional e ao enforcement de legislações. Hoje, também se apresenta relacionada ao desenvolvimento da indústria local por meio da criação de mais oportunidades para as empresas nacionais, à proteção de direitos fundamentais e empoderamento de cidadãos e comunidades, e à preservação de culturas, valores e tradições locais (Internet Society, 2022).

Via de regra, a definição adotada e o tipo de autodeterminação defendida dependem bastante do contexto nacional e do ator que profere o discurso (Pohle; Thiel, 2020). No contexto da regulação de plataformas digitais, é possível adotar a soberania digital como um conceito “guarda-chuva”, abrangendo diversas ações e políticas que possam defender os diferentes aspectos da soberania digital (ISOC Brasil, 2023). Ou seja, ao invés de limitá-la a uma abordagem, o que geralmente é feito quando a menção à soberania digital não passa de um recurso de retórica, o ideal seria utilizar suas diversas abordagens para compreender múltiplas frentes de atuação.

Em específico, não se deve encarar a proteção da soberania digital somente frente a outros Estados, como no conceito tradicional de “soberania”, mas também em relação a grandes corporações. Nesse sentido, Cédric Durand (2022) alerta para a necessidade de combater o que chama de “tecnofeudalismo”, encontrando meios para regular o novo capital digital, inclusive por meio da responsabilização de atores — principalmente as Big Techs — pelos seus efeitos, como a discriminação e o consumismo exacerbado.

Esse quadro se torna preocupante na medida em que se verifica que as atividades mais realizadas na Internet pelos brasileiros — que são o envio de mensagens instantâneas e o uso de redes sociais — utilizam principalmente os aplicativos Whatsapp, Skype, Messenger, Facebook, Instagram e Tik Tok (NIC.br, 2023), sendo que a maior parte dessas aplicações pertence à mesma corporação, que é a Meta[2]. Aduz-se, portanto, que regular plataformas digitais no Brasil impactará diretamente as Big Techs que exercem o capitalismo de vigilância (Zuboff, 2021, p. 20), sendo uma importante ferramenta para proteger e fortalecer a soberania digital do Brasil.

Nessa toada, ao considerar a soberania digital como ponto de partida, é fundamental refletir sobre os impactos em relação às propriedades críticas do Modo Internet de Interconectividade[3], as quais são apontadas como explicação do sucesso da Internet como conhecemos. Destaca-se, aqui, o problema da possível fragmentação da Internet, que pode se dar por meio do aumento da censura no conteúdo, do bloqueio do acesso a determinados aplicativos e sites, da criação de redes limitadas por fronteiras geográficas e da ausência de compromisso com uma gestão multissetorial e global da Internet (ISOC Brasil, 2023; Lana, 2022). Outro desafio consiste em garantir que a regulação seja ágil e flexível o suficiente para acompanhar a dinamicidade da inovação (Lemos, 2023).

Por outro lado, tem-se boas oportunidades nessa regulação pautada na soberania digital. A mais importante, indubitavelmente, consiste na proteção dos direitos humanos no cenário digital, garantindo o interesse público e o bem comum. Pacheco (2023) defende, inclusive, que a regulação pode ser “uma forma de minimizar os custos sociais indesejáveis e garantir que o debate público online promova conhecimento e participação igualitária”. Além disso, não se pode ignorar o aspecto econômico[4] de uma regulação adequada. Com a implementação de ações antitruste, por exemplo, possibilita-se a entrada de novas plataformas no mercado (Lemos, 2023).

Infelizmente, de acordo com Barrios (2022), o Brasil ainda não possui iniciativas coordenadas relacionadas à transformação digital, bem como de um plano de longo prazo pela busca pela soberania digital, sendo questionável a continuidade das políticas públicas até então anunciadas. Tampouco há notícias sobre a implementação do Programa de Emergência para a Soberania Digital (Lefèvre, 2022), entregue como sugestão de pesquisadores, ativistas e professores ao atual presidente durante o período eleitoral.

Vale ressaltar, conforme proposto no programa supracitado, que é preciso atuar em várias frentes, de forma simultânea, para construir um país verdadeiramente soberano na seara digital. Além da regulação das plataformas, faz-se necessário buscar uma conectividade significativa[5] para a população brasileira e endereçar outros problemas associados à forte dependência tecnológica que o Brasil apresenta atualmente, a exemplo do zero rating[6] (Lefèvre, 2022). Urge, portanto, buscar que a regulação adequada das plataformas digitais seja apenas uma das medidas adotadas dentro de um plano coeso em prol da superação da dependência internacional.

Considerações Finais

A regulação das plataformas digitais, especialmente no cenário de domínio das Big Techs, é um importante caminho para fortalecer a soberania digital do Brasil. É possível construir uma regulação adequada, com a participação dos diversos agentes interessados, que seja capaz de coibir abusos na coleta e no tratamento de dados pessoais, proteger os titulares de dados pessoais em nível individual e coletivo, diminuir a interferência das Big Techs na democracia e, ainda assim, fomentar a inovação no país e estimular seu desenvolvimento econômico.

Todavia, diante das diversas nuances que a soberania digital apresenta, há outras frentes que devem ser atacadas, como a problemática do zero rating e a questão da infraestrutura que permite o acesso à Internet no país. Não basta regular as plataformas digitais sem garantir um acesso universal, gratuito e de qualidade à Internet. Nessa toada, faz-se fundamental a adoção de uma estratégia nacional, articulada e multissetorial pela soberania digital no Brasil, para a construção de uma sociedade mais democrática em todos os seus espaços, físicos ou virtuais.

[1] No modelo atual, o art. 19 do Marco Civil da Internet estabelece que, se não houver decisão judicial obrigando a remoção de determinado conteúdo e seu respectivo descumprimento, não há responsabilidade civil dos provedores de aplicações.

[2] Ainda em relação à Meta, nas palavras de Flávia Lefèvre (2023), “não podemos deixar de denunciar que hoje no Brasil, o acesso a Internet se dá principalmente por dispositivos móveis, com planos pré-pagos associados a zero rating, privilegiando ilegalmente o tráfego de dados das plataformas da Meta, com a quebra da neutralidade da rede, nos termos como está expresso nos arts. 4°, 7° e 9° do MCI, cujo resultado é um vergonhoso fosso digital que vulnerabiliza os mais pobres e a criação de terrenos férteis para todo o tipo de desinformação”.

[3] O Modo Internet de Interconectividade consiste em um conjunto de cinco características, também chamadas de “propriedades críticas da Internet”, que seriam responsáveis por sustentar a existência da Internet e possibilitar seu crescimento saudável. Tais características são: (i) uma infraestrutura acessível com um protocolo comum, (ii) arquitetura aberta de blocos estruturais interoperáveis e reutilizáveis, (iii) gerenciamento descentralizado e um sistema de roteamento distribuído único, (iv) identificadores globais comuns, e (v) uma rede de propósito geral. (ISOC Brasil, 2020).

[4] Em relação aos impactos econômicos da regulação em prol da soberania digital, o professor Luca Belli apresenta o caso da proibição do zero rating na Índia, o qual obrigou as grandes corporações a reduzir os custos de acesso à internet, o que gerou um impacto direto na economia em razão do aumento na quantidade de pessoas conectadas (ou seja, tendo acesso a serviços e podendo realizar compras, por exemplo) e da inovação por empresas nacionais (NIC.br, 2023b).

[5] Conectividade significativa refere-se a “uma experiência na Internet que contribua para a inserção social e econômica dos usuários, de forma segura e com custo acessível para o consumidor. Para se alcançar esse nível de conectividade é necessário, além de uma infraestrutura de telecomunicações desenvolvida, que os consumidores tenham acesso aos dispositivos adequados e possuam as habilidades digitais necessárias para o melhor aproveitamento das atividades realizadas no mundo on-line” (ANATEL, 2023).

[6] O zero rating consiste em uma prática em que certos tipos de tráfego de dados não são contabilizados na franquia de internet móvel do usuário. No Brasil, a Meta possui acordos com as principais operadoras para “patrocinar o tráfego de suas aplicações para as contas de mais de 110 milhões de consumidores”, sendo criticada por afetar o princípio da neutralidade da rede, criar vantagens competitivas e afetar o acesso à informação de seus usuários (Lefèvre, 2022).

Referências

ANATEL. Anatel e Idec realizam pesquisa sobre conectividade significativa. 2023. Disponível em: https://www.gov.br/anatel/pt-br/consumidor/destaques/anatel-e-idec-realizam-pesquisa-sobre-conectividade-significativa. Acesso em: 16 abr. 2024.

BARRIOS, L. G. Soberania, Planejamento Estatal e Transformação Digital: análise comparada dos instrumentos jurídicos da União Europeia e do Brasil. Revista Semestral de Direito Econômico, Porto Alegre, v. 2, n. 1, 2023. Disponível em: http://resede.com.br/index.php/revista/article/view/69. Acesso em: 18 fev. 2024.

COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL (CGI.br). Ações e Diretrizes para a Regulação de Plataformas Digitais no Brasil. Relatório da Oficina realizada pelo GT Regulação de Plataformas. 2023. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/4/20230208141956/Acoes_Diretrizes_Regulacao_Plataformas_Digitais_Brasil.pdf. Acesso em: 18 fev. 2024.

COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL (CGI.br). Resolução CGI.br/RES/2009/003/P. Princípios para a Governança e Uso da Internet no Brasil. São Paulo, 2009. Disponível em: https://cgi.br/resolucoes/documento/2009/003/. Acesso em: 18 fev. 2024.

DURAND, C. Caminhos para combater o tecnofeudalismo. [Entrevista concedida a] Julián Varsavsky. Traduzido por Cepat. Outras Mídias, 2022. Disponível em: https://outraspalavras.net/outrasmidias/caminhos-para-combater-o-tecnofeudalismo/. Acesso em: 18 fev. 2024.

GRASSI, A.; RUEDIGER, M. A. (coord.). Eleições 2022, desinformação e ataques ao sistema eleitoral: repercussão do debate público digital das eleições presidenciais brasileiras de 2022. Rio de Janeiro: FGV ECMI, 2023. 38 p. Disponível em: https://democraciadigital.dapp.fgv.br/wp-content/uploads/2023/08/PTEstudo-16_Eleicoes-2022Ficha-ISBN.pdf. Acesso em: 18 fev. 2024.

INTERNET SOCIETY. Navigating Digital Sovereignty and Its Impact on the Internet. 2022. Disponível em: https://www.internetsociety.org/resources/doc/2022/navigating-digital-sovereignty-and-its-impact-on-the-internet/. Acesso em: 18 fev. 2024.

ISOC BRASIL. Contribuição da ISOC Brasil para a consulta pública do CGI.br sobre regulação de plataformas. 2023. Disponível em: https://isoc.org.br/noticia/consulta-sobre-regulacao-de-plataformas-digitais-no-brasil-promovida-pelo-comite-gestor-da-internet- do-brasil-cgi-br. Acesso em: 18 fev. 2024.

ISOC BRASIL. O Modo Internet de Interconectividade. Um fundamento para o sucesso. 2020. Disponível em: https://www.isoc.org.br/files/IWN_introducao_traducao%20(1).pdf. Acesso em: 16 abr. 2024.

​​LANA, P. P. A fragmentação da Internet: propriedade intelectual na América do Sul. LACNIC, 2022. Disponível em: https://descargas.lacnic.net/lideres/2022/lacnic-lideres_pedroperdigaolana.pdf. Acesso em: 18 fev. 2024.

LEFÈVRE, F. A dependência digital no Brasil. 2022. Disponível em: https://flavialefevre.com.br/pt/a-dependencia-digital-do-brasil. Acesso em: 18 fev. 2024.

LEFÈVRE, F. Soberania e Segurança negligenciadas. 2023. Disponível em: https://flavialefevre.com.br/pt/soberania-e-seguranca-negligenciadas. Acesso em: 18 fev. 2024.

LEMOS, A. L. M.. O Futuro da Sociedade de Plataformas no Brasil. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, [s.l.], v. 46, 2023.

NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DO PONTO BR (NIC.br). Pesquisa sobre o uso das tecnologias de informação e comunicação nos domicílios brasileiros: TIC Domicílios 2022. São Paulo: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2023a.

NÚCLEO DE INFORMAÇÃO E COORDENAÇÃO DO PONTO BR (NIC.br). Sessão Principal 3 — Soberania Digital: em busca de uma agenda comum. Fórum da Internet no Brasil. Uberlândia: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2023b. [Vídeo]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uPcYT0TaII0. Acesso em: 18 fev. 2024. Participação de Filipe Saraiva, Luca Belli, Renata Mielli, Rodolfo Avelino, Mariana de Vasconcellos e Rafael Evangelista.

OBSERVATÓRIO DO MARCO CIVIL DA INTERNET. Histórico do Marco Civil. [2020]. Disponível em: https://www.omci.org.br/historico-do-marco-civil/timeline. Acesso em: 18 fev. 2024.

PACHECO, D. Navegar é preciso! Regular (as redes) também. Jornal da USP, São Paulo, 28 jul. 2023. Disponível em: https://jornal.usp.br/atualidades/especial-desconstruindo-a-desinformacao-navegar-e-preciso-regular-as-redes-tambem/. Acesso em: 18 fev. 2024.

POHLE, J.; THIEL, T. Digital sovereignty. Internet Policy Review, [s.l.], v. 9, n. 4, 2020. Disponível em: https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=4081180. Acesso em: 18 fev. 2024.

ZUBOFF, S. A Era do Capitalismo de Vigilância. A luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2021.

Autora

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