Considerações para a formação de uma soberania digital do Sul Global a partir do Brasil

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Por Mark W. Datysgeld — Bacharel e Mestre em Relações Internacionais, com foco em Governança da Internet. É especializado em políticas voltadas à saúde e também no uso online de diferentes sistemas de escrita de línguas. Mark é membro do Conselho do GNSO da ICANN. Com sua consultoria Governance Primer, desenvolve pesquisas e auxilia na criação de estratégias transnacionais envolvendo questões de tecnologia. Mark leciona e cria cursos, tendo organizado e palestrado em dezenas de eventos e aulas em diferentes línguas. Possui experiência profissional prévia de vários anos, e ainda atua sempre que se faz oportuno, em programação e desenvolvimento de multimídia.

A evolução das tecnologias digitais e da Internet está desencadeando transformações na maneira como entendemos o conceito de soberania. Tradicionalmente definida como o exercício exclusivo de poder (ou coerção) de um Estado dentro de seu território, a soberania está sendo repensada para refletir a natureza global das redes. Observamos cada vez mais Estados clamando por uma autoridade sobre o ciberespaço, e o Sul Global vai se juntando ao debate, ainda de modo incipiente.

O próprio termo “soberania” já permite certa flexibilidade interpretativa, em parte devido ao modo como diferentes áreas de conhecimento o compreendem. Para as Relações Internacionais, a soberania existe em três dimensões: a interna (autoridade final dentro de seu território); a externa (não intervenção de outros Estados em seu território); e a intersubjetiva (reconhecimento da soberania por outros Estados). Em vez de competirem, essas dimensões na verdade se complementam na formação da soberania estatal como um todo (HÄGEL, 2018).Apesar de a soberania ser um conceito entendido como absoluto na história contemporânea, durante a década de 1990 era muito discutida a possibilidade de um mundo pós-soberano, no qual os Estados teriam menor participação no fluxo das relações humanas, a partir de uma lente mais globalista e integrativa (THOMSON, 1995). No entanto, eventos como os Ataques Terroristas aos EUA de 11 de setembro de 2001, assim como a Primavera Árabe iniciada em 2010, trouxeram o aspecto da soberania estatal de volta à proeminência. Desde então, se observa um gradual aumento da busca por soberania em diversas esferas, sempre visando de algum modo o ganho de maior segurança ou estabilidade para o Estado.

Apesar de a soberania ser um conceito entendido como absoluto na história contemporânea, durante a década de 1990 era muito discutida a possibilidade de um mundo pós-soberano, no qual os Estados teriam menor participação no fluxo das relações humanas, a partir de uma lente mais globalista e integrativa (THOMSON, 1995). No entanto, eventos como os Ataques Terroristas aos EUA de 11 de setembro de 2001, assim como a Primavera Árabe iniciada em 2010, trouxeram o aspecto da soberania estatal de volta à proeminência. Desde então, se observa um gradual aumento da busca por soberania em diversas esferas, sempre visando de algum modo o ganho de maior segurança ou estabilidade para o Estado.

Amarrando essa lógica com o tema da Primavera Árabe, podemos pensar na expansão da Internet como potencialmente o segundo maior fator a já ter impactado a soberania estatal, atrás apenas da formação da Organização das Nações Unidas (ONU). A influência de redes sociais nos resultados de eleições, o surgimento de ataques digitais transfronteiriços, e a emergência da governança multissetorial da Internet, são três exemplos das complexidades agregadas à soberania na era digital.

Também vemos que entidades supranacionais e privadas de grande escala realmente são capazes de afetar o equilíbrio da soberania estatal, mas raramente conseguem anulá-la em Estados bem estruturados. Por exemplo, se uma empresa se torna mais forte do que o Estado pensa ser desejável, esse possui um poder desproporcional de afetar o funcionamento dela. Isso está ocorrendo na China com empresas como a Alibaba e a Tencent, que sofreram a imposição de sanções e multas internas extremamente pesadas para forçar uma conformidade maior com os planos do governo (MCMORROW, LIU e LENG, 2023).

Contextualização

A Internet é algo físico. Ela é um arranjo de cabos, satélites, computadores, e outras máquinas, todas posicionadas em locais reais e compondo uma infraestrutura global. A Internet não existe em uma suposta nuvem, e sim em servidores, muitas vezes localizados nos EUA, e rodando em equipamento e código estadunidense, chinês ou nórdico. As redes estão, portanto, submetidas ao controle estatal.

Propomos aqui pensar que a soberania digital abrange (definições do autor):

  • Software, protocolos e padrões: afetam diretamente questões de segurança, privacidade, e aspectos comerciais. Definem as políticas que incidem na coleta ou interceptação de dados por empresas ou outros governos. Também facilitam a criação de monopólios, tal como os padrões do mundo físico (ex.: protocolo TCP/IP).
  • Hardware e infraestrutura: o controle da tecnologia subjacente à Internet se torna cada vez mais disputado, com questões como a produção de chips, roteadores, celulares, e outros componentes virando uma prioridade estratégica na pauta dos Estados (ex.: disputa EUA vs. China a respeito de equipamentos de comunicação).
  • Discurso: A definição de o que poderia ou não ser dito por indivíduos e organizações costumava ser uma função exercida quase que unicamente pelos Estados em relação às mídias sobre as quais possuíam alguma forma de controle, mas com a globalização da informação, esse passou a ser um desafio muito maior, agora elevado para o ambiente da Internet (ex.: “fake news” ou “desinformação”).

A literatura sobre soberania digital é predominantemente em língua inglesa e focada no Norte Global. Já as publicações em português e espanhol tendem a enfatizar o “colonialismo digital”, muitas vezes sem reconhecer o Sul Global como um ator que também gera soluções próprias e busca inovar dento de suas limitações. Essa abordagem assume frequentemente o Sul Global como uma vítima passiva.

Propomos aqui que uma alternativa significativa seria a de destacar todo o caminho já traçado na direção do estabelecimento desses atores como reativos e capazes de gerar suas próprias soluções e estratégias, apontando para a necessidade de sistematizar informações sobre a soberania digital no Sul Global de forma mais objetiva para entender as lógicas sendo adotadas e enfatizar aquelas que sinalizem bons resultados.

Brasil e o Sul Global

No Brasil, a trajetória da soberania digital precede o debate contemporâneo, remontando ao período militar e à reserva de mercado para computadores, bem como a uma posterior promoção do software livre. Essas iniciativas, apesar de seus limites, contribuíram para o fortalecimento de uma base tecnológica nacional e uma cultura de software livre. Para explorarmos melhor os conceitos:

  • Período militar: durante a época da reserva de mercado, o Brasil investiu pesadamente na produção de computadores nacionais e na limitação da importação de máquinas estrangeiras, algo cujos efeitos podiam ser observados até pouco tempo atrás na montagem de máquinas por marcas nacionais. Isso acabou não gerando a condição da produção de computadores capazes de competir no mercado global, mas fomentou o crescimento de empresas brasileiras de computação e a formação de profissionais em áreas relevantes para a tecnologia digital.
  • Período democrático: existiu um forte incentivo à adoção de software de código aberto e de sistemas operacionais como o Linux entre as décadas de 2000 e 2010. A cultura de software livre no Brasil é notável, e os programadores do país são numerosos e significativamente ativos em bases de código aberto como o Github (GITHUB, 2022). Ocorreu uma certa migração para o uso de softwares de código fechado na última década, mas isso não ofusca o fato de que foi estabelecida uma relação forte com a programação colaborativa que perdura até os dias de hoje.

Vemos outros atores do Sul Global com preocupações similares. A Índia, por exemplo, também adotou em 2014 uma lei afirmando que “O governo da índia irá fazer um esforço para adotar software de código aberto em todos os sistemas de e-governança implementados pelas várias organizações governamentais” (INDIAN MINISTRY OF COMMUNICATION & INFORMATION TECHNOLOGY, 2014), política essa que viu implementação efetiva. Outro sentimento similar é expresso na “The Digital Transformation Strategy for Africa (2020–2030)” da União Africana, na qual é feita menção explicita a “garantir que a África tenha posse de ferramentas modernas de administração digital” (AFRICAN UNION, 2020).

Este panorama suscita reflexões sobre o papel do Brasil e do Sul Global na soberania digital, dentro da complexidade crescente de um cenário global onde a tecnologia digital desempenha um papel central. Historicamente, o Brasil tem sido um ator proeminente na governança da Internet, demonstrando capacidade técnica e uma disponibilidade de recursos relevantes à área. Isso posiciona o país não apenas como participante, mas potencialmente como um dos líderes em moldar a direção da soberania digital no Sul Global.

A governança da Internet, caracterizada por seu modelo multiparticipativo, oferece uma plataforma para a colaboração transnacional que enfatiza a importância do reconhecimento de uma variedade de interesses e perspectivas. No entanto, a eficácia desse modelo depende da capacidade dos atores de adaptação contínua das instituições e modelos, pois esses podem ir decaindo em utilidade frente a um mundo com mais soberania digital. Se faz relevante entender a intersecção entre essa retomada da ênfase estatal e a continuidade da participação produtiva dos demais atores do Sul Global.

Podemos encerrar o raciocínio tentando resumir essa breve exposição no posicionamento de que o desafio para o Sul Global se apresenta como duplo: é fundamental garantir que suas vozes sejam ouvidas em fóruns internacionais e por atores estrangeiros (plano externo), ao mesmo tempo que é necessário desenvolver estratégias nacionais que promovam a inclusão digital, segurança cibernética, e inovação tecnológica (plano interno).

Considerações finais

O debate sobre a soberania digital é não apenas amplo, mas também incipiente. Observa-se que os estudos existentes, predominantemente concentrados em língua inglesa, abordam a soberania digital sob uma ótica do Norte Global, deixando lacunas significativas no entendimento global do assunto. As fontes em português e espanhol se focam por demasiado em “colonialismo digital” e pouco é pesquisado sobre exemplos positivos pré-existentes.

Assim, evidencia-se a necessidade de uma melhor sistematização das informações sobre a soberania digital no Sul Global. A compreensão mais focada em como a soberania digital se manifesta em diferentes contextos e situações é crucial para entendermos como o tema nos afeta diretamente e como podemos agir de forma proativa para avançá-lo.

Diante disso, surge uma questão fundamental: qual é o papel do Sul Global neste cenário? Como podemos participar de maneira eficiente e ativa no debate sobre soberania digital e não nos limitarmos a ser meros observadores de sua evolução? A resposta a essa pergunta é vital para assegurar que o Sul Global não apenas contribua com suas perspectivas únicas, mas também molde ativamente o futuro da governança global.

Referências

AFRICAN UNION. The Digital Transformation Strategy for Africa (2020–2030). African Union, 2020. Disponivel em: <https://au.int/en/documents/20200518/digital-transformation-strategy-africa-2020-2030>. Acesso em: 2024.

GITHUB. A global community of developers. Github, 2022. Disponivel em: <https://octoverse.github.com/2022/global-tech-talent>. Acesso em: 2024.

HÄGEL, P. Sovereignty. Oxford Bibliographies, 2018. Disponivel em: <https://www.oxfordbibliographies.com/display/document/obo-9780199743292/obo-9780199743292-0031.xml>. Acesso em: 2024.

INDIAN MINISTRY OF COMMUNICATION & INFORMATION TECHNOLOGY. F. №1(3)/2014 — EG II: Policy on Adoption of Open Source Software for Government of India. National Portal of India, 2014. Disponivel em: <https://www.meity.gov.in/writereaddata/files/policy_on_adoption_of_oss.pdf>.

MCMORROW, R.; LIU, Q.; LENG, C. China moves to take ‘golden shares’ in Alibaba and Tencent units. Financial Times, 2023. Disponivel em: <https://www.ft.com/content/65e60815-c5a0-4c4a-bcec-4af0f76462de >. Acesso em: 2024.

THOMSON, J. E. State Sovereignty in International Relations: Bridging the Gap between Theory and Empirical Research. International Studies Quarterly, Oxford, v. 39, n. 2, p. 213–233, Jun. 1995.

Autor

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