Entrevista com Michele DeStefano — Law Without Walls; University of Miami

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Pesquisadores do Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação (CEPI) entrevistam a professora Michele DeStefano no âmbito da pesquisa “Liderança e Inovação no Direito: a emergência dos líderes de inovação jurídica em um setor em transformação”.

Michele DeStefano, uma das principais referências do campo, é professora, palestrante, consultora independente e facilitadora de projetos de inovação e tecnologia, criação de cultura, formação de equipes e iniciativas internacionais em escritórios de advocacia, departamentos jurídicos corporativos e startups jurídicas. É autora de Legal Upheaval (2018) e New Suits (2019).

A entrevista foi realizada e traduzida por Ana Paula Camelo, Ana Carolina R. Dias Silveira e Bruno Ett Bícego.

Eu acredito que qualquer processo de mudança, qualquer tipo de inovação ou esforço de transformação, precisa de um líder que também possa gerenciar ou de um gerente que também possa liderar. — Michele DeStefano

1. Em seu livro “Legal Upheaval: A Guide to Creativity, Collaboration, and Innovation in Law” (2018), você define três tipos de inovação e três tipos de inovadores (intrapreneurship, entrepreneurship, extrapreneurship), mostrando concretamente diferentes fluxos e estratégias relacionadas a novas formas de criar valor para organizações jurídicas. Você também explora que inovação é muito mais do que tecnologia. No entanto, mesmo assim, esta é a associação mais comum que encontramos no debate público relacionado ao futuro do setor jurídico e das profissões jurídicas. Na sua opinião, por que essa narrativa ainda é forte e como podemos desconstruir esse imaginário? Você gostaria de compartilhar algumas iniciativas que você desenvolveu de forma colaborativa, criativa e impactante?

Ser um “intraempreendedor” é ainda mais importante hoje para advogados de escritórios e de departamentos jurídicos de empresas, visto que o mundo se tornou digital. As empresas ao redor do mundo estão se transformando digitalmente em um ritmo muito acelerado. Isso significa que os advogados precisam mudar, visando atender às necessidades de agilidade dos negócios. Eles precisam ser “intraempreendedores” criativos para ajudar seus clientes em sua jornada de transformação digital. Já se foram os dias em que advogados externos poderiam ser meramente conselheiros de seus clientes; já se foram os dias em que os diretores de departamentos jurídicos de empresas agiam apenas na contenção de riscos ou de despesas.

Hoje em dia, os diretores de departamentos jurídicos de empresas precisam ser geradores de receitas e, o que eu chamo em meu livro “Legal Upheaval”, “consiglieres de inovação”, os quais devem antever as tendências, questões para seus clientes. Se a empresa na qual um advogado interno trabalha é uma empresa de locação de veículos, é função desse advogado ver onde a empresa irá ganhar dinheiro no futuro. Se não for com aluguel de carros (e provavelmente não será por essa via, mas sim a partir dos dados que ela coleta), como que seu advogado pode ajudar a dar vida a essa visão de futuro? E como os advogados externos podem ajudar internamente a fazer isso? Certamente não é focando, inicialmente, na tecnologia. Ao invés disso, trata-se de focar na maximização de experiências e na minimização das dores (dos problemas) tanto para os clientes internos de negócios quanto para os clientes externos. De fato, esse é o verdadeiro significado de transformação digital.

Muitas pessoas focam na tecnologia ou na parte digital da transformação digital, no entanto, é a parte da transformação que importa e essa é a parte mais difícil de realizar. Isso acontece porque transformações de qualquer tipo exigem inspiração de mudança, o que significa tanto liderança e habilidade de seguir[1], quanto gestão de mudanças e de inovação. Infelizmente, pesquisas apontam que quase 75% dos esforços de gerenciamento de mudanças falham. Evidentemente, um dos motivos mais comuns? Não fazer a PRIMEIRA coisa certa em primeiro lugar. E a primeira coisa certa é focar nas pessoas (nossos clientes) e no como (ao contrário do que fazemos): como nós prestamos serviços aos nossos clientes, a experiência dos serviços.

Em meu livro mais recente, Legal Upheaval, meu principal mantra está focado em convencer todos os profissionais jurídicos, quer seu modelo de negócios esteja quebrado ou não, a lapidar o DNA de um inovador — não de modo que eles se tornem inovadores e empreendedores, mas, ao invés disso, para que eles se tornem “intraempreendedores”, que identifiquem e resolvam problemas de forma colaborativa, com uma mentalidade de crescimento, que vejam que o chamado para a colaboração é muito mais do que um chamado para a colaboração reativa — e respondam a esse chamado de forma pró-ativa, cooperando com os clientes na jornada de transformação.

Para DeStefano, o intrapreneurship está relacionado à criação de inovação internamente em um escritório de advocacia ou departamento jurídico. Já o empreendedorismo vem associado à atuação com inovação e novos modelos de negócio que empreendem e conduzem inovação no Direito. O extrapreneurship, por sua vez, está baseado na proposta de mudança, não apenas do ponto de vista interno de uma organização, mas também sob a ótica de dinâmicas externas, capazes de atingir outras organizações, “para impactar a mudança e trazer essas experiências de volta, para tentar mudar de dentro para fora — e de fora para dentro — em um loop contínuo”. (DeStefano, 2018, Edição Kindle, Cap. 2–597–612)

2. Ainda explorando o incrível conteúdo de seu livro, uma das discussões que muito contribuiu para nossa pesquisa e para outras discussões relacionadas ao ponto de encontro entre educação jurídica e inovação jurídica foi a Lawyers Skills Delta (“Pirâmide de Habilidades dos Advogados”, em tradução livre). Considerando que a inovação está no nível mais alto e exige habilidades e treinamento dos outros níveis. Você também mencionou que nem todas as habilidades podem ser desenvolvidas em um contexto educacional. Diante disso, como as faculdades de direito podem se envolver com essa realidade para preparar futuros profissionais, inclusive aqueles que possam se tornar futuros líderes de inovação nas organizações jurídicas?

Em primeiro lugar e acima de tudo, eu recomendo que as escolas de direito aproveitem os programas que já existem, tenham um histórico de treinamento das habilidades da Lawyers Skills Delta e preparem nossos futuros advogados para serem prestadores de serviços profissionais centrados nos clientes. Então, é óbvio que eu tenho que fazer menção aqui à LawWithoutWalls (LWOW), e não apenas porque eu sou sua fundadora, mas porque este consiste em um [programa de] aprendizado experimental baseado em equipes com foco em advogados, profissionais de negócios e estudantes. Essa abordagem multidisciplinar, intergeracional, colaborativa e baseada em equipes é a chave para seu sucesso em aperfeiçoar as habilidades na Lawyers Skills Delta.

Existem outros programas que fazem isso também, como o IFLP [The Institute for the Future of Law Practice] e o Digital Legal Exchange, e, assim como o LWOW, eles também possuem esse tipo de abordagem. Para ter sucesso em desenvolver, aperfeiçoar esses tipos de habilidades (autoconhecimento, liderança, foco no cliente, competência cultural, mentalidade de crescimento, associação e ousadia), o formato deve ser baseado em equipes, multidisciplinar e intergeracional, o que significa que as escolas de direito precisam mudar seu formato [tradicional]. No entanto, mais do que isso, elas precisam abrir suas mentes, seus corações e suas portas, não somente para novas formas de ensino, mas para novos tipos de “professores” e recebê-los como iguais em sua missão.

Dentre as competências destacadas por Michele DeStefano, nos parece interessante e oportuno explorar o que ela identifica como competência cultural. Segundo ela, esta “é provavelmente a habilidade mais importante que os indivíduos precisam para um advogado de sucesso no mundo global de hoje. Assim como a competência tecnológica não vem da leitura sobre tecnologia, a competência cultural não vem da leitura sobre como se dar bem com pessoas que exibem diferentes marcadores culturais. A competência cultural vem de trabalhar com pessoas diferentes — e cometer erros” (DeStefano, 2018, Edição Kindle, Cap. 7–2358).

3. Em nossa pesquisa, observamos que os papéis desempenhados pelos líderes de inovação, gestores de projetos e líderes de TI, apesar das diferenças, têm aspectos em comum que acabam resultando em uma confusão entre essas funções e atribuições com as dos líderes de inovação. Como você vê essa fusão de funções de liderança e gestão? Na sua opinião, quais características diferenciam a posição de líder de inovação em escritórios de advocacia?

Existem diversos artigos por aí sobre as diferenças entre gestores e líderes. Por exemplo, alega-se frequentemente que líderes focam em pessoas, enquanto os gerentes focam em desempenho. Líderes abraçam o caos e inspiram os outros, enquanto os gerentes abraçam o processo e trabalham para resolver problemas rapidamente. Quer sejam essas diferenças verdadeiras ou não, eu acredito que qualquer processo de mudança, qualquer tipo de inovação ou esforço de transformação, precisam de um líder que também consiga gerenciar ou de um gerente que também consiga liderar.

Portanto, eu acho que a fusão de papéis e identidades é algo positivo, desde que a pessoa que ocupe a posição consiga fazer as duas coisas. Em 2013, David Burkus escreveu um artigo da HBR chamado “Innovation isn’t an Idea Problem” (em tradução livre, “A inovação não é um problema de ideia”), e ele estava muito certo. As ideias custam “dez centavos uma dúzia”. Qualquer um pode ter uma boa ideia e existem muitos escritórios de advocacia e departamentos jurídicos com grandes ideias. Mas, como qualquer investidor de risco irá dizer, mais importante do que a ideia é a pessoa que dará vida a ela. E somente alguém que tenha criatividade, visão e carisma para inspirar — junto com gerenciamento de projetos e processos e habilidades de execução — pode desempenhar o papel de líder de Inovação em um escritório de advocacia.

4. Finalmente, no artigo “The law firm chief innovation officer: goals, roles and holes” (2018), você discutiu se o líder de inovação em um escritório de advocacia é uma maneira eficaz de suprir as necessidades das organizações, as mudanças nas demandas do mercado e a satisfação das expectativas dos clientes. Como você vê o impacto da pandemia da COVID-19 nas funções e rotinas dos líderes de inovação jurídica e para as organizações jurídicas em um sentido amplo?

Eu vejo o impacto da pandemia da COVID-19 tanto como negativo quanto positivo. É verdade que não há nada melhor do que um barco em chamas para fazer as pessoas nadarem e essa pandemia serviu como um barco em chamas. Muitos advogados já adotaram novas tecnologias e trabalham virtualmente, os quais não faziam isso antes. No entanto, eu sou adepta da ideia de focar no porquê as pessoas fazem o que fazem, pois se a motivação não vem de dentro ou, pelo menos, de um lugar positivo, os novos comportamentos ideais podem não serem adotados e, mesmo que sejam, eles podem não durar. É como fazer dieta. Se você está fazendo dieta, porque você deseja ter uma vida saudável e se preocupa com seu corpo, as mudanças que você fizer serão diferentes e, potencialmente, mais duradouras, em comparação a se você estivesse fazendo dieta para ganhar uma aposta que fez com alguém para perder 5 quilos em 3 semanas.

É verdade que advogados e escritórios de advocacia estão, atualmente, se transformando, mas se advogados e escritórios de advocacia estão adotando novas formas de trabalhar tão somente por causa da pandemia (ou seja, um barco em chamas), eu tenho dois medos: primeiro, eles podem estar desenvolvendo alguns maus hábitos (junto com alguns bons), em termos de trabalho online e em equipe; e, segundo, quando o mundo abrir-se novamente, eles podem regredir, lentamente, a hábitos e velhos métodos de trabalho. Dito isso, a pandemia também representa uma grande luz no fim do túnel e isso é mudança, e a mudança por si só pode ser muito positiva. Os advogados estão mudando e inovando a forma como trabalham.

Além disso, para contradizer meus medos, existe uma grande pesquisa demonstrando que a criatividade não vem apenas do “pensar fora da caixa”. Na verdade, Drew Boyd e Jacob Goldenberg escreveram um livro todo [“Inside the Box”, 2014] sobre a posição contrária: inovação e criatividade podem vir de ter que pensar “dentro da caixa”.

E, como Mark Cohen apontou recentemente durante um painel do Financial Times Digital Lawyers (patrocinado pelo Digital Legal Exchange): a maior ameaça é paralisar-se e não fazer nada. E eu concordo com Mark! E, com sorte, todos podemos concordar que os profissionais do Direito e o mercado jurídico — escritórios de advocacia, empresas jurídicas, departamentos jurídicos e até mesmo escolas de direito ao redor de todo o globo — avançaram e não fizeram pouca coisa durante esse período difícil.

[1] Tradução livre do termo em inglês followship, que não possui tradução direta e consolidada para o Português. Na sua dissertação de mestrado em Relações Internacionais, Reinaldo Alencar Domingues nos ajuda a compreender melhor o conceito. Segundo ele: “No processo de liderança, o poder é exercido nas duas direções. Do líder em relação aos seguidores e destes sobre o líder. O ato de seguir (followship) não significa passividade e submissão. Se liderar é agir em conjunto em direção a um objetivo em comum, não fica claro quem define este último. A liderança como um processo social representa a relação complexa entre as duas partes sobre a construção de um projeto coletivo. O poder dos seguidores — ou “constituintes” do processo de liderança — está na capacidade de se opor, resistir ou influenciar as metas e os caminhos a serem percorridos (HERMANN, 1995, p.156)” (DOMINGUES, 2013, p.24). Outras discussões interessantes relacionadas a esse conceito é a própria definição do termo no Dicionário Collins e a publicação “‘Followship’ is the new Leadership!” (2016).

DOMINGUES, Reinaldo Alencar. O perfil do Brasil como potência regional sulamericana no governo Lula (2003–2010). 2013. 108 f. Dissertação (Mestrado em Relações Internacionais) — Universidade de Brasília, Brasília, 2013.

​HERMANN, Margaret. Leaders, Leadership, and Flexibility: Influences on Heads of Government as Negotiators and Mediators. Annals of the American Academy of Political and Social Science, Vol. 542, Flexibility in International Negotiation and Mediation, pp. 148–167, (Nov., 1995).

E para quem quiser conhecer melhor o trabalho de Michele DeStefano:

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