Soberania tecnológica e disputa por hegemonia: notas sobre a situação brasileira

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Por Helena Martins do Rêgo Barreto — Doutora em Comunicação Social pela Universidade de Brasília (UnB, 2018), com período sanduíche no Instituto Superior de Economia e Gestão (Iseg) da Universidade de Lisboa, financiado pelo Programa de Doutorado-sanduíche no Exterior (PDSE) da Capes. É professora do curso de Comunicação Social — Publicidade e Propaganda da UFC e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFC. Pós-doutoranda em Economia pela Universidade Federal de Sergipe (UFS), com estágio na Universidade do Minho, como parte do projeto “A governança econômica das redes digitais: para uma análise dos mercados e da concorrência da internet e seus impactos sobre os direitos dos usuários”, financiado pela FAPESP (processo 23/07423–6). E-mail: helena.martins@ufc.br

O impulso de mundialização do capital das últimas décadas, em sua relação com o desenvolvimento da arquitetura da rede mundial de computadores, significou, no setor de tecnologia, a hegemonia das plataformas comerciais estadunidenses, que conquistaram alcance global e monopolizaram a mediação entre os atores das redes. Apenas as chinesas competem com estas (Davis; Xiao, 2021). Diante desse quadro, o tema da soberania tem sido recuperado. Partindo do conceito de soberania como “uma forma de poder legítimo e de controle” (Floridi, 2020, p. 372), são muitos os desafios para uma definição externa sobre o funcionamento das plataformas, agentes centrais na disputa por hegemonia na sociedade atual. Seguindo Gramsci, entendemos que a hegemonia se constitui a partir da produção de coerção e de consenso. Ocorre que as plataformas hoje controlam boa parte do espaço de debate público, da infraestrutura às aplicações de redes sociais, e reúnem poder econômico e político muitas vezes superior a Estados nacionais e organismos multilaterais. Enfrentá-las significa por em questão a dominância que exercem, dentro e fora da internet.

O problema remete à própria ideia neoliberal de superação ou incapacidade do Estado na chamada globalização e também à apreciação sobre o desenvolvimento tecnológico. Floridi (2020), por exemplo, argumenta que a ideia da soberania nacional como o poder de controle exercido pelo Estado sobre seu território, sobre os recursos que nele se encontram e sobre as pessoas é uma ideia moderna, ao passo que qualifica o presente como não só “pós-moderna”, mas como “era digital”. Essa visão acaba tratando o digital de uma forma determinista e apologética. Na prática, como inapreensível pelos estados nacionais. Mas, na verdade, a organização das redes, inclusive o funcionamento transfronteiriço dela, se dá a partir de uma série de definições sobre infraestruturas e protocolos, bem como de decisões que orientam a forma de exploração delas.

A plataformização que assistimos hoje é, nesse sentido, resultado de escolhas que, como explicam Mastrini e Mestman (1996), levaram à re-regulação, no sentido de direcioná-lo para a exploração privada. O Estado foi acionado para viabilizar a ampliação do espaço de atuação do setor privado e facilitar a circulação de capitais. Para tanto, diversos países, como o Brasil, em que até então o Estado controlava as telecomunicações, foram impelidos a seguir o modelo privado de telecomunicações e de informática deflagrado, nos Estados Unidos, a partir do desmembramento da AT&T. Essa mudança foi definidora do padrão da convergência audiovisual-telecomunicações-informática (Martins, 2018), a que se seguiu a plataformização. Consequentemente, esta se deu com uma presença muito minoritária, para não dizer inexistente em países como o Brasil, da ideia de serviço público provido pelo Estado.

A situação do Brasil

Na América Latina, a retomada do debate sobre soberania dá-se em um contexto muito diferente daquele vivido entre os anos 1960 e 1980, quando o tema era vinculado à afirmação da autonomia política e econômica dos Estados. Uma preocupação que refletia a crítica ao imperialismo materializado no apoio à golpes militares e que encontrava eco nos movimentos revolucionários, caso da Revolução Cubana de 1959, cujo desenvolvimento tecnológico passou a ser voltado ao desenvolvimento do país e ao atendimento das necessidades da população (Dussel, 1993). Em países como o Brasil, isso se expressou na defesa de políticas nacionais de comunicação, por exemplo, no processo de redemocratização. A partir dos anos 1990, esse tipo de problemática tornou-se distante. Era momento de expectativas geradas com a afirmação de regimes democráticos e, sobretudo, de hegemonia do pensamento neoliberal, com sua ode ao fim do Estado e também às “narrativas totalizantes”. Nos estudos de Comunicação, o foco hegemônico passou a ser nos usos sociais dos meios, deslocando a crítica da própria arquitetura tecnológica e dos sistemas.

Nesse período deu-se a consolidação do Brasil como um país consumidor de tecnologias estrangeiras e espaço para a atuação das transnacionais. Para tanto, tanto o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento (CPqD) quanto a Telebras foram fragilizados, prejudicando a expansão e o melhoramento das telecomunicações, situação que favoreceu a defesa da privatização do setor, efetivada em meados dos anos 1990 (Martins, 2018). O resultado que temos hoje é que as telecomunicações são controladas por três empresas transnacionais (Vivo, Claro, Tim) e pela Oi[1]. Esta é a única ainda controlada por capital nacional, embora não mais apenas, e que há anos enfrenta processo de falência, apesar das políticas dos primeiros governos Lula terem tentado fazer da Oi uma “campeã nacional”, sem alterações no processo de privatização efetivado antes. Essa situação ilustra o limite da aposta nesse tipo de política.

É fato que nos últimos anos houve uma dinamização no setor dedicado ao provimento de conexão, inclusive em termos de companhias nacionais. Os Provedores de Pequeno Porte (PPPs), como também são conhecidos já são mais de 60% dos contratos de banda larga fixa feitos no país, o que incomoda os grandes players[2]. Eles cresceram por ofertar conexão em espaços que não eram de interesse das grandes companhias e valendo-se de medidas como exceções tributárias e isenção de obrigações (Fernandes; Chagas, 2019). À primeira vista, esse pode ser visto como um exemplo de política industrial de sucesso, a ser replicado na camada de aplicações. Não obstante, não é difícil ver o processo de aquisição dessas companhias pelo capital internacional. Pesquisa TIC Provedores, do Comitê Gestor da Internet no Brasil (CGI.br)[3], constatou a redução da participação das microempresas, que passou 56% para 46% entre 2020 e 2022, ao passo que o percentual de médias cresceu de 13% para 17%. Entre os motivos elencados para a mudança, as fusões e aquisições no setor, bem como a crise econômica no contexto da pandemia da Covid-19.

Além disso, o que me parece fundamental, essa política não confronta fundamentalmente a lógica de operação das empresas transacionais. Cumpre recordar que a privatização das telecomunicações manteve dois regimes, público e privado. No caso do público, com obrigações de cobertura, modacidade tarifária etc. Isso fez com que houvesse garantia de acesso por meio de orelhões, por exemplo, nos mais diversos locais do país. Houve defesa de que o regime público fosse ampliado para que o provimento de conexão à Internet fosse prestado nesse regime[4], o que poderia levar à obrigatoriedade de universalização do acesso. No entanto, o que vimos foi uma reafirmação da lógica privatista (Martins, 2018b), por meio de medidas legislativas que reduziram o regime público em benefício dos interesses privados, isto é, da ampliação da mercantilização. O setor empresarial já anuncia uma nova fase de aquisições, agora por parte de grandes operadoras[5].

Guiada pela lógica da mercantilização, a garantia do acesso no Brasil permanece desigual. Embora a desigualdade no acesso venha diminuindo com a ampliação da conexão da população mais pobre, a diferença na qualidade evidencia que se trata de uma inclusão precária. A pesquisa TIC Domicílios 2023[6] mostra que o percentual de domicílios da classe C conectados passou de 87% em 2022 para 91% em 2023. No caso da DE, de 60% para 67%. 87% destes acessaram a rede exclusivamente pelo telefone celular, sobretudo por Wi-Fi (36%) ou somente pela rede móvel (11%), a maioria a partir de planos pré-pagos. Um tipo de acesso que limita as habilidades digitais, conforme a pesquisa. Os planos pré-pagos possuem franquia de dados, mas geralmente permitem o acesso às grandes plataformas de rede sociais, como Facebook e Instagram, com as quais as operadoras possuem acordos. Isto é, a população mais pobre é levada a usar mais essas plataformas.

Considerações finais

De sua parte, o Estado brasileiro vinha diminuindo sua capacidade de atuar no ambiente digital. Sob o governo de Jair Bolsonaro, foram feitos acordos entre o governo brasileiro e corporações como Cisco, Amazon e Microsoft (Amadeu, 2020). O Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro) e a Empresa de Tecnologias e Informações da Previdência Social (Dataprev) chegaram a ser ameaçados de privatização[7]. Corretamente, o governo Lula, desde a transição, mostrou-se contrário e efetivamente sustou tais iniciativas. Também tem recomendado a o investimento em nuvem própria, anunciada como “soberana”[8].

Ainda falta, contudo, uma política articulada que leve ao enfrentamento da dominância das grandes plataformas. Se soberania tecnológica se refere à disputa de hegemonia na etapa atual do capitalismo, deve envolver propriedade sobre infraestrutura, capacidade de proteção de dados e, sobretudo, a inserção do desenvolvimento tecnológico em um projeto mais amplo para o país. Isso significa escolher que tecnologia, para quê, com quais objetivos e beneficiando que classe social. Regulações e promoção de usos são também partes dessas iniciativas, mas limitadas se não forem casadas com políticas que rompam a dependência tecnológica e que promovam uma soberania tecnológica popular, que promova tecnologias para atender as necessidades da população e não a dinâmica de acumulação do capital.

Referências

AMADEU, S. Brasil, colônia digital. IHU Online, 26 jun. 2020. Disponível em: <https://www.ihu.unisinos.br/78-noticias/600360-brasil-colonia-digital-artigo-de-sergio-amadeu>. Acesso em: 5 mar. 2024.

DAVIS, M.; XIAO, J. De-Westernizing Platform Studies: History and Logics of Chinese and U.S. Platforms. International Journal of Communication, v. 15, n. 0, p. 20, 1 jan. 2021.

FERNANDES, C. M.; CHAGAS, G. C. 21 anos de privatização da Telebras: políticas públicas para o setor de telecomunicações. Revista Eletrônica Internacional De Economia Política Da Informação Da Comunicação E Da Cultura, 21(3), 61–73, 2019. Recuperado de https://periodicos.ufs.br/eptic/article/view/12469

FLORIDI, L. The Fight for Digital Sovereignty: What It Is, and Why It Matters, Especially for the EU. Philosophy & Technology, v. 33, n. 3, p. 369–378, set. 2020.

GRAMSCI, A. Cadernos do Cárcere. Tradução Carlos Nelson Coutinho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 3. Maquiavel: notas sobre o Estado e a política.

MARTINS, H. O mercado de comunicações brasileiro no contexto da convergência: análise das estratégias do Grupo Globo e da América Móvil. 2018. 369 f., il. Tese (Doutorado em Comunicação) — Universidade de Brasília, Brasília, 2018.

MARTINS, H. Telecomunicações: sob o signo da lógica privatista. Revista Eletrônica Internacional De Economia Política Da Informação Da Comunicação E Da Cultura, 20(2), 196–215. 2018b. Recuperado de https://periodicos.ufs.br/eptic/article/view/9639

MASTRINI, G.; MESTMAN, M. ¿Desregulación o re-regulación? De la derrota de las políticas a la política de la derrota. CIC Cuardernos de Información y Comunicación, Madrid, n. 2, 1996.

Autora

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