Tecnodiversidade, Epistemologias Negras e Ontologias Indígenas:

Reflexões para a transformação dos fundamentos da Propriedade Intelectual

CEPI - FGV DIREITO SP
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17 min readApr 20, 2022

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O dia Mundial da Propriedade Intelectual, para além de uma data celebrativa, representa uma oportunidade para chamar atenção para as práticas e os impactos significativos em toda a sociedade da propriedade intelectual.

A fim de contribuir com qualificação do debate e, eventualmente, da tomada de decisões no campo, destacamos neste breve texto algumas questões e reflexões que marcaram o painel “Tecnodiversidade, Epistemologias Negras e Ontologias Indígenas: Reflexões para a transformação dos fundamentos da Propriedade Intelectual”, que aconteceu no âmbito do Congresso Global sobre Propriedade Intelectual e Interesse Público #IPWeek2021.

Nos últimos anos, multiplicaram-se as críticas sobre o caráter ocidental, masculino, branco e limitador da propriedade intelectual (PI)[1]. Dentre elas, identificam-se propostas para sua reformulação a partir de diversos paradigmas, inspirados, dentre outros, em feminismos negros, cosmologias indígenas e modelos alternativos de coordenar formas de conhecer e dar sentido ao mundo e à “inovação” tecnológica. Por exemplo, os conceitos de cosmotécnica e tecnodiversidade de Yuk Hui, o perspectivismo ameríndio formulado por Viveiros de Castro, e a crítica às epistemologias brancas de feministas negras podem servir de base para revisitar os fundamentos clássicos da PI.

O sistema de PI é baseado em criar exclusividades e monopólios, os quais exacerbam os problemas globais de escassez e rupturas.[2] Portanto, a importância de revisitar a PI é evidente. O sistema deve atender ao interesse público e promover o desenvolvimento tecnológico e socioeconômico — e é igualmente necessário redefinir e atualizar tais conceitos.

Nesse contexto, organizamos o painel “Tecnodiversidade, Epistemologias Negras e Ontologias Indígenas: Reflexões para a transformação dos fundamentos da Propriedade Intelectual”, organizado no âmbito do Congresso Global sobre Propriedade Intelectual e Interesse Público #IPWeek2021.

O debate vislumbrou caminhos para a reformulação da PI a partir da noção de diversidade — de pessoas, áreas, perspectivas, enquadramentos analíticos, regiões e potenciais soluções. Estas, ao invés de limitar, devem possibilitar garantia de direitos, incentivo à inovação e desenvolvimento, participação pública e instrumentos conectados com as realidades que coexistem no mundo. Ao invés de objetivar uma saída única, a mesa promoveu a multiplicidade e a reconformação dos paradigmas clássicos em prol de respostas mais diversas, ou seja, novos encontros teóricos, metodológicos e de práticas.

Participaram do painel: Ana Paula Camelo — CEPI FGV Direito SP; Glenda Dantas — Conexão Malunga; Luísa Valentini — Antropologia, Universidade de São Paulo (USP); Marcela Vieira — Global Health Centre, Graduate Institute, Genebra; Vitor Ido — South Centre, Genebra e Universidade de São Paulo (USP); Eliesio da Silva Vargas Marubo — Liderança do Povo indígena Marubo, Vale do Javari, Amazonas.

A seguir, oferecemos um resumo dos principais pontos discutidos.

Perspectivas de diálogo sobre Propriedade Intelectual: caminhos possíveis a partir da diversidade

Luísa Valentini

É antropóloga, tendo obtido os títulos de mestre e de doutora em Antropologia Social junto ao Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (USP).

Luísa chama atenção para a necessidade de se ampliar a perspectiva ontológica relacionada ao tema, o que implica reconhecer que o conhecimento é uma relação de convivência, uma relação na qual aquilo que se conhece não é um “que”, mas um “quem”: são sujeitos dotados de especificidade, movimento e mudança, quem se conhecem. Nesse sentido da ideia de conhecimento, é impossível pensar em termos de controle. Por trabalhar em convivência, a antropologia tem de lidar com esse tipo de relação há bastante tempo, apesar de deslizes na tentativa de transpor o raciocínio científico clássico moderno para outro, esforço que foi aos poucos abandonado, pela sua inviabilidade.

Soma-se a isso que as próprias pessoas e coletivos com quem antropólogas/os trabalham têm algo a dizer sobre essa ideia de conhecimento como uma relação entre quéns. Pessoas cujas relações de conhecimento não se inscrevem numa metafísica ocidental, e que reconhecem como quéns aquilo que o Ocidente quer ver como quês, falam recorrentemente do conhecimento como uma relação de aproximação contínua, mas nunca total, entre diferentes; uma relação cuidadosa, feita de gestos que propiciam a continuidade da convivência e que atenuam os riscos nela implicados. Tais modos de pensar as relações de conhecimento são reconhecíveis entre povos indígenas e também em religiões de matriz africana no Brasil, meios nos quais reaparece, em diferentes variações, a ideia de que é preciso produzir a convivência de modo respeitoso à potência daqueles com quem se está convivendo.

Luísa sugere assim que se reconheça o quanto a noção de propriedade intelectual deve ser transformada diante desses modos de conhecimento. Isso ocorre com frequência na apresentação, tradução ou sistematização de conhecimentos de povos indígenas. Nem sempre é possível fazer uso de figurações restritas à autoria e invenções nos artefatos que realizam essa mediação, sendo preciso fazer modos de apresentação de redes de pessoas na criação de conhecimentos e transmissão. E porque se trata de redes de pessoas, se trata também de conjuntos em movimento. Instrumentos como contratos, termos de anuência e outros dispositivos muito vinculantes são pouco sensíveis às dinâmicas e preocupações locais sobre o que quer dizer conhecimento. Segundo a pesquisadora, isso está muito bem indicado em protocolos comunitários de consulta: a convivência é exigida numa perspectiva de continuidade presente e futura. A continuidade, o fomento à convivência no tempo, é o que permite se reconhecer a subjetividade e a transformação contínua dos conhecimentos.

Marcela Vieira

Advogada especialista em Direito da Propriedade Intelectual e Novas Tecnologias da Informação pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e mestre em Política e Gestão em Saúde pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e coordenadora da Knowledge Network for Innovation and Access to Medicines do Global Health Centre do Graduate Institute of Geneva.

Marcela Vieira compartilha sua perspectiva a partir da relação entre direito à saúde e propriedade intelectual, especialmente na frente de litígios em PI. A partir dessa experiência pessoal, ela chama atenção para a questão da relação entre técnica e promoção de direitos, o que implicou a necessidade de aprender a linguagem da propriedade intelectual por parte dos ativistas de saúde. Fazendo referência à atuação da Conectas Direitos Humanos, da REBRIP, e da criação do GTPI, ela chama atenção para um debate mais amplo na área de comércio e direitos, na agenda do direito à saúde e acesso a medicamentos a partir de barreiras muito concretas. Por exemplo, as patentes sobre medicamentos antiretrovirais contra HIV/AIDS, as quais, de maneira muito concreta, de fato impediam acesso a boa parte das populações dos medicamentos que estavam sendo desenvolvidos.

Segundo Marcela, isso levou a várias questões sobre quem tem acesso e o direito a ter acesso a depender da sua localização geográfica. Ela ilustra essa distinção lembrando que pessoas nos EUA e Europa tiveram acesso muito antes de países do Sul Global e países africanos onde a pandemia de AIDS estava no seu auge. A partir desse exemplo, remete-se à discussão dessa forma de gestão e apropriação do conhecimento como propriedade intelectual, como uma propriedade privada, que fica com uma única empresa farmacêutica que determina quem pode ter acesso a esse conhecimento. Nesse sentido, chama-se atenção para a não separação entre técnica e política no campo da PI. Havia portanto, por parte dos ativistas de saúde, uma perspectiva muito prática e pragmática de reconhecer que os direitos de PI estavam afetando o acesso. E no Brasil, isso estava relacionado com a redemocratização e a criação do SUS, com a perspectiva universal do direito à saúde e de acesso a medicamentos essenciais. E daí vimos que essa mobilização política também interferiu na forma como essas organizações se articularam em torno do tema de PI, que é muitas vezes visto como algo muito técnico, mas profundamente político.

A pesquisadora também cita que, na área de acesso a medicamentos — mas que também está presente na área de direitos autorais — , foi um movimento que é primordialmente político, antes de ser técnico. No contexto de garantia de direitos e de mobilizações políticas pela garantia do acesso a medicamentos e do acesso à saúde, essa barreira foi sentida muito diretamente no movimento de AIDS e tem acontecido com a Covid-19, dentre outras. A partir desse cenário em que a necessidade de entendimento aprofundado do que estava acontecendo se fez mais evidente no sentido de visibilizar “o que é essa tal de ‘patente’ que impede que haja acesso, que haja um medicamento mais barato da Índia”. Marcela lembra que o Brasil era produtor de genéricos e não podia produzir mais medicamentos, então havia impactos claros na forma de acesso, e a necessidade de entrar mais no debate técnico, inclusive como forma de ser reconhecido como ator legítimo.

Marcela também chama atenção para processos de exclusão de organizações de pacientes do debate sob a justificativa de não ter a ‘técnica’ — embora técnica e política não sejam dissociáveis, relembra. Nesse sentido, a necessidade de aprofundamento no discurso técnico se fez proeminente para garantir a necessidade/direito de participação. Desse movimento, iniciativas de capacitação com ativistas e outras estratégias de mobilização foram sendo construídas a fim de lidar com a padronização do discurso, com o desafio de trazer a questão para públicos em geral (furando a bolha da tecnicidade) e explorar aspectos políticos e de garantia de direitos humanos.

Glenda Dantas

Glenda Dantas é Jornalista pela Universidade Federal da Bahia, co-criadora da Conexão Malunga (plataforma de discussões sobre TIC’s para a autonomia), pós-graduanda em Comunicação Estratégia (UFBA), membra voluntária do Laboratório de Identidades Digitais e Diversidade (UFRJ), editora da Agenda, Arte e Cultura (UFBA). Pesquisa sobre Identidades Digitais e Governança da Internet.

Glenda Dantas, por sua vez, chama atenção para a relação entre comunicação e tecnologia. Ela aponta as experiências de construção de conhecimentos relativos a comunicação, oficinas de literacia digital e na articulação com outras redes de ciberativistas e outros atores (dentre os quais indígenas), para pensar o desenvolvimento da Internet de modo a não mais reproduzir a lógica das mazelas estruturais, a exemplo das questões de gênero e raça e como elas se desdobram frente ao desenvolvimento. Ou seja, sobre como usar o conhecimento e como proteger os conhecimentos disponibilizados na Internet.

Glenda lembra que a questão de acesso é marcada por diferenças entre grupos de classes e raças diferentes, fazendo referência ao fato de que atores marginalizados têm acesso de baixa qualidade à Internet, seja por características dos dispositivos que têm acesso (por smartphones, pacotes de dados, etc.), seja devido a políticas impostas, como o zero rating, quando o pacote de dados acaba e ficam apenas com acesso às redes sociais — conglomerados situados no norte global e suscitando várias vulnerabilidades de informações. A partir desses exemplos, chama-se atenção para o fato de que a limitação de acesso de grupos vulnerabilizados se relaciona com limitação de acesso a direitos que se reatualizam em ambientes digitais.

Se temos o conhecimento sistematizado, temos como pensar em suas mudanças. Como essas estruturas de poder são feitas para serem mantidas?, pergunta Glenda. Elas se mantêm porque existe o racismo estrutural, o sexismo, que fazem com que alguns grupos sejam privilegiados nesse contexto. Na Conexão Malunga, afirma ela, promovem-se oficinas voltadas à segurança digital, especialmente negros e indígenas, o que vai além de disponibilizar ferramentas e recursos jurídicos, mas refletir sobre os usos das práticas — e criação de consciência coletiva sobre as práticas que temos em mãos. Nesse sentido, utilizam conceitos como autoconhecimento para autonomia (Audre Lorde), o conceito de bem-viver (especialmente o desenvolvido pela Marcha de Mulheres Negras de 2015) para pensar o desenvolvimento tecnológico que não reproduza a lógica colonizadora, seja na academia, nos acessos, mas também em nossas práticas quotidianas — em como nos colocamos no ambiente digital. Pensando nisso, em 2019 a Conexão Malunga convidou alguns poetas e slammers de Salvador e Sergipe para o projeto Tecnologias: rostos, vozes e cor, para instrumentalizar este público sobre como poderiam disseminar seus conhecimentos e empoderá-los como membros de produção coletiva, potencializados pela Internet.

Essa instrumentalização sobre a propriedade intelectual se complementa com a formação sobre as possibilidades da Internet, evidenciando a importância de se entender o direito autoral e pensar a PI enquanto “um trabalho de formiguinha” com um público cuja maioria dos participantes eram jovens periféricos.

Eliesio Marubo

Possui graduação em Direito pela Universidade do Estado do Amazonas (2016). Atua na frente de Mobilização para a promoção da qualidade de saúde dos Portadores de Hepatites Virais. Tem atuado na assessoria jurídica para a promoção dos direitos indígenas. É liderança do povo indígena MARUBO da TI-Vale do Javari.

Eliesio Marubo, do povo Marubo, no Amazonas, rodeados pela Colômbia e pelo Peru, traz à discussão sua trajetória e formação em direito na Universidade Estadual do Amazonas, bem como sua atuação junto ao seu povo como procurador jurídico. Um dos principais destaques de sua fala trata da importância de se entender o esforço de fazer com que o direito, um conhecimento não-indígena, seja conjugado com o conhecimento tradicional. Esse esforço compartilhado pelo painelista, que é ao mesmo tempo individual e coletivo, surge vinculado ao artigo 231 da Constituição.[3] “Eu enalteço a tradição e usando o conhecimento de vocês, não-indígenas, com o conhecimento tradicional. Me apoio muito na pergunta que você me fez: no potencial do conhecimento externo para galgar espaços e fazer tipos de diálogos com a sociedade de vocês para tratar questões como essa — como o caso da biopirataria e da apropriação indevida.”, afirma Eliesio.

Eliesio cita como exemplo o tema de biopirataria sobre a perspectiva do olhar Marubo, de que as coisas ligadas à nossa natureza e nosso meio social, quando retiradas de forma indevida, causam um mal social também — seja na evolução do povo, seja na parte intelectual do povo. A partir desse recorte, ele mostra a relação entre o local de análise do tema e a nossa forma de viver, se organizar, etc.

Na medida em que um conhecimento tradicional é feito de forma descontrolada, temos vários reflexos sobre vários olhares, argumenta Eliesio. Em suas próprias palavras:

“Nós tínhamos um pajé muito conhecedor de temas tradicionais, e sobre a ótica da cultura Marubo — faleceu este ano -, ele morreu depois que houve alguém que levou um pouco do rapé que ele utilizava para outro lugar, bebendo ayahuasca, que se chama também de Santo Daime, desempenhou um papel que apenas um Marubo poderia, e o pajé morreu como fruto dessa ação externa feita sem controle. Então é uma forma de apropriação e uso indevido, com um prejuízo para a comunidade. Podem dizer: isso é crendice. Mas vivemos milhares de anos e estamos lá até hoje usando essas técnicas, e há coisas que o conhecimento de vocês não vai conseguir dar conta. Isso de alguma maneira isso influencia em nossa forma de organizar, na forma como nossa perspectiva de vida acontece e em que há essas paradas bruscas, deixa-se de ganhar muita coisa — ao se perder um pajé, há muitas perdas na perspectiva intelectual, pois não teve a oportunidade de fazer a transição que era devida de fazer. E estamos usufruindo de algo e levando aos outros prejuízos.”

Dessa forma, Eliesio mostra como utiliza o direito para debater coisas que não estão na perspectiva dos não-indígenas, ressaltando a dificuldade de fazer esse tipo de análise perante um tribunal, que se mostra muito racional, com lógica que não alcança essa outra realidade e desfavorece a coletividade do seu povo. Para mudar estruturas, a estratégia tem sido trazer essas questões no Judiciário, mostrando que os direitos são baseados em algum lugar.

Vitor Ido

Pesquisador da organização intergovernamental South Centre (Genebra), no programa de Saúde, Propriedade Intelectual e Biodiversidade. Doutor (2021) e mestre (2017) em Direitos Humanos — FDUSP. Graduado em Direito pela mesma instituição (2014). Graduado em Ciências Sociais também pela Universidade de São Paulo (FFLCH/USP) (2017).

Nesta fala, Vitor Ido aborda temas adicionais que dialogam com as discussões acima mencionadas, as quais demonstram a complexidade e variedade de questões que podem e devem ser tratadas no debate público na agenda de Propriedade Intelectual, focando na ideia de tecnodiversidade a partir da obra de Yuk Hui.[4] Partindo da referência à cosmotécnica na China, ele busca situar em perspectiva mais ampla a discussão sobre as enormes mudanças do sistema de PI na China contemporânea: estaria o país transformando o sistema de PI (tornando-o algo novo, tecnicamente “diverso”), ou apenas reforçando-o a partir dos paradigmas já existentes?

Na sua apresentação, Vitor cita o que chama de três contos da propriedade intelectual: (1) Acesso a medicamentos; (2) Conhecimentos tradicionais (o fato de o sistema não funcionar para conhecimentos não-ocidentais, por definição); (3) raça e interseccionalidade para pensar nas ausências cujos efeitos diferentes tecnológicos e políticos são cada vez mais marcantes.

Vitor cita o livro de Anjali Vats (2020), The Color of Creatorship,[5] para fazer referência às reflexões sobre interseccionalidade, reparação e justiça pensando em quem está dentro e quem está fora dessas narrativas, bem como argumentos jurídicos. Vats não coloca uma visão unitária pela qual a PI é sempre a razão de desposse e espoliação: seu uso estratégico por minorias pode também ser um sinal de compensação histórica. A partir dessa discussão, o pesquisador chama atenção para o fato de que se obter, deter e controlar uma propriedade intelectual pode ser um instrumento de espoliar e destruir acesso (a medicamentos, a conhecimento, à cultura, a tecnologias, etc.) e promover apropriação indevida, no entanto, por outro lado, também há uma espoliação em não permitir que certos sujeitos — no caso, escravizados nos EUA — sejam legitimamente reconhecidos como potenciais detentores desses direitos.

Vitor lembra que, por décadas, associa-se a China à pirataria, à cópia, à contrafação. Contudo, lembra também que esse processo pode ser situado nas amplas discussões sobre transplantes jurídicos e na expansão colonial do direito ocidental para o Sul Global, além de possibilitar uma reflexão mais geral sobre a expansão global da PI após o TRIPS — que previa justamente a harmonização e não a diversificação das normas de PI. Em suas palavras:

“Em outras palavras, é possível ver a ‘ascensão da China’ tanto como um caso particular de um processo geral (a PI sendo expandida em tempo, geográfica, escopo para novos povos e novas partes do mundo), ou como uma especificidade única. Por que essa discussão interessa à propriedade intelectual? Em um sentido mais restrito, porque faz pensar na ameaça à hegemonia ocidental diante da crescente participação chinesa. De modo mais amplo, permite refletir sobre o papel do que se chama de ‘cultura’ nos sistemas de PI, e o quanto ele afeta e é afetado pelos processos mais amplos do capitalismo global. A questão, do ponto de vista teórico — talvez mais do que do que pragmático — diz respeito a identificar se se trata de uma transformação do sistema global de PI (tendo agora a China como um grande ator central) ou, pelo contrário, de uma incorporação desse sistema global dentro da China”.

Para lidar com esse dilema, o pesquisador cita pelo menos duas alternativas. A primeira é analisar as diferenças e similaridades do sistema jurídico de PI na China com os standards dos EUA e da EU e/ou refletir, de modo mais amplo — com bagagem etnográfica e potencialmente focada na filosofia política –, se a China promove um experimento de real diversidade tecnológica. Fazendo referência a Yuk Hui, Vitor convida o debate a uma reflexão sobre como as cosmologias aplicam-se à questão da tecnologia, e a partir daí a ideia de que não se trata de uma única tecnologia, mas tecnologias — e por consequência, tecnodiversidade.

Segundo ele, “Os fundamentos da PI são voltados à ideia de um inventor homem, caucasiano, cis, heterossexual, euroamericano. Em muitos sentidos, esse autor/inventor ideal é uma figura mais crucial para entender o funcionamento do sistema do que os debates sobre os fundamentos filosóficos da propriedade intelectual — normalmente baseados no debate Locke, Hegel, utilitarismo/incentivos. Talvez a ascensão chinesa como uma potência no campo da PI — de uma terra antes associada às falsificações e hoje cada vez mais associada ao domínio tecnológico e à inovação — nos permita mudar um pouco a imagem do inventor fundamental (não apenas caucasiano e euroamericano, mas também asiático?), mas faz pouco ou nada para promover alternativas”.

Ana Paula Camelo

Líder de pesquisa no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV DIREITO SP e participa do International interdisciplinary Postdoctoral Program (IPP) no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP). Doutora em Política Científica e Tecnológica e Mestre em Divulgação Científica e Cultural pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Ana Paula aponta possíveis desdobramentos do encontro — e em uma contribuição que considera “o que podemos fazer e esperar do futuro desse debate”. A pesquisadora convida a, partindo dessas abordagens (as quais, ainda que distintas, são também alinhadas), visibilizar e aprofundar formas de incluir o conhecimento tradicional paralelamente à viabilização de empoderamento do conhecimento técnico, de forma a criar/garantir espaços de participação e janelas de efetivas rupturas e hackeamentos “desde dentro”. Nesse movimento, incluir marcadores de raça e gênero, e pensar a própria tecnologia, o Direito e a interface com outras áreas é indispensável. Além disso, espera-se que espaços como o realizado pela mesa se multipliquem e que, em suas palavras, “nossas redes também se multipliquem para pensar a propriedade intelectual e o interesse público em espaços de compartilhamento de fato seguros, juridicamente protegidos e que tratem das necessidades de seus participantes”.

Por fim, como oportunidades para futuros estudos, debates e intervenções, seguem algumas sugestões (elas também, marcadas pela diversidade) selecionadas a partir do painel:

  • Produção de conhecimento crítico sobre PI envolvendo mais pessoas e garantindo um olhar multicultural e multiétnico;
  • Modelos alternativos de inovação farmacêutica, distinto daquele baseado em propriedade intelectual e patentes;
  • Identificação de como grupos e organizações produzem conhecimento de forma distinta e seus desdobramentos;
  • Conciliação do debate entre o local/regional/global e a tendência de limitação do enfoque a experiências nos EUA e Europa e/ou na literatura em inglês;
  • Dedicação a um olhar da descolonização a partir, e não apesar, dos conhecimentos tradicionais, de forma a reforçar a importância da PI com o foco de fortalecimento humano;
  • Políticas de diversidade em PI para além de uma inclusão formalista.

[1] Ver, por exemplo: VATS, Anjali. The Color of Creatorship: Intellectual Property, Race and the Making of Americans. Stanford: Stanford University Press, 2020; VANNI, Amaka. On Intellectual Property Rights, Access to Medicines and Imperialism. TWAIL Review, 23 March 2021. Available at: https://twailr.com/on-intellectual-property-rights- access-to-medicines-and-vaccine-imperialism/

[2] Ver: SALOMÃO FILHO, Calixto. Contemporary IP Paradoxes. International Review of Industrial Property and Copyright law, 10 Feb 2022, p. 1–3.

[3] Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

§ 1º São terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescindíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.

§ 2º As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.

§ 3º O aproveitamento dos recursos hídricos, incluídos os potenciais energéticos, a pesquisa e a lavra das riquezas minerais em terras indígenas só podem ser efetivados com autorização do Congresso Nacional, ouvidas as comunidades afetadas, ficando-lhes assegurada participação nos resultados da lavra, na forma da lei.

§ 4º As terras de que trata este artigo são inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis.

§ 5º É vedada a remoção dos grupos indígenas de suas terras, salvo, “ad referendum” do Congresso Nacional, em caso de catástrofe ou epidemia que ponha em risco sua população, ou no interesse da soberania do País, após deliberação do Congresso Nacional, garantido, em qualquer hipótese, o retorno imediato logo que cesse o risco.

§ 6º São nulos e extintos, não produzindo efeitos jurídicos, os atos que tenham por objeto a ocupação, o domínio e a posse das terras a que se refere este artigo, ou a exploração das riquezas naturais do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes, ressalvado relevante interesse público da União, segundo o que dispuser lei complementar, não gerando a nulidade e a extinção direito a indenização ou a ações contra a União, salvo, na forma da lei, quanto às benfeitorias derivadas da ocupação de boa fé.

§ 7º Não se aplica às terras indígenas o disposto no art. 174, § 3º e § 4º.

[4] HUI, Yuk. Tecnodiversidade. São Paulo: Ubu, 2020.

[5] VATS, Anjali. The Color of Creatorship: Intellectual Property, Race and the Making of Americans. Stanford: Stanford University Press, 2020

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional do CEPI e/ou da FGV e/ou as instituições parceiras.

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