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As três ondas de projetos de lei sobre trabalho em plataformas digitais

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11 min readFeb 25, 2021

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Por Ana Carolina R. Dias Silveira* e Guilherme Forma Klafke*

Publicamos recentemente o briefing temático Trabalho sob demanda no Congresso (2010–2020): um oceano de possibilidades, no qual apresentamos o histórico do volume de projetos de lei que tramitaram nesse período na Câmara e no Senado. Nele indicamos três ondas, ou três fases, do debate legislativo sobre o tema (Gráfico 1). Este artigo detalha esses momentos e levanta algumas possibilidades para o desenvolvimento futuro dessa agenda no Congresso brasileiro.

Gráfico 1 — Volume de projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional, por tipo de PL (2015–2020)

Fonte: elaboração própria

1ª onda: o embate regulatório em torno da nova economia

As plataformas digitais de economia sob demanda começaram a surgir a partir da virada da década de 2010. Uber (2009), Cabify (2011), Easy Taxi (2011), iFood (2011), GetNinjas (2011), 99 [99 Táxi] (2012), Lyft (2012) e outras empresas que se consolidaram no mercado foram fundadas neste período. A pesquisa assumiu 2010 como marco inicial, procurando projetos de lei que tratassem da relação de prestação de serviços em plataformas digitais ou normas que pudessem afetá-la de alguma maneira.

Os primeiros cinco anos do recorte não retornaram projetos. A atividade legislativa sobre o tema somente teve início a partir de 2015. Projetos de lei que propunham regulamentação da profissão de motorista e motociclistas (PL 6429/2005, PL 99/2007, PL 703/2007), de entrega de mercadorias por meio de bicicleta (PL 2771/2008) e de isenção em IPI para moto-entregadores (PL 7190/2006, PL 4837/2009) não mencionavam “plataformas digitais” como elemento específico. Embora os primeiros projetos versassem sobre regulação do transporte remunerado de passageiros por meio de plataformas, o primeiro registro de nosso banco de dados se refere a uma proposta de regulação ampla do uso de bicicletas, abrangendo a atividade profissional de “ciclotaxista e cicloboy” (PL 1155/2015).

Abrangendo o período de 2015 até o final de 2018, a primeira onda de atividade legislativa se caracterizou por dois movimentos principais: os embates regulatórios entre categorias existentes (especialmente taxistas) e motoristas de aplicativo[1] e a tentativa de regular os aspectos tributários da atividade.

Em relação ao primeiro movimento, dos 20 PLs que tramitaram no período, 12 (60%) procuravam regular o “transporte individual de passageiros”. O embate mais evidente envolveu a qualificação da atividade em “transporte individual privado” ou “transporte individual público” de passageiros, destacado pela resistência dos taxistas contra motoristas de aplicativo (em especial o Uber), que motivou protestos e até atos de violência[2], desaguou nos tribunais e atraiu a atenção da academia para o tema.[3]

Mas outro choque importante e pouco mencionado ocorreu entre “transporte individual privado” e “transporte coletivo privado” (Figura 1). Os PLs 2632/2015, 3384/2015, 4312/2016, 5587/2016 e 5794/2016 propunham limitação explícita da autorização a veículos de até sete passageiros. A restrição pode parecer desimportante, mas seria suficiente para excluir a utilização de alguns utilitários típicos de serviços de van e transporte coletivo, como Kombis (9 lugares), Mercedes Sprinter (até 10 lugares), dentre outras. A restrição do debate ao “transporte individual” ainda repercute, haja vista a indefinição sobre transporte coletivo privado (ou até público) por meio de plataformas digitais, tais como Buser e UBus.

O segundo movimento decorreu diretamente da Lei Federal nº 13.640, de 26 de março de 2018, que autorizou explicitamente o transporte remunerado privado individual de passageiros. Dos mesmos 20 PLs, dois procuraram estender para os motoristas de aplicativo a isenção de IPI aplicável à aquisição de automóveis para transporte autônomo e três procuraram regular a cobrança do imposto sobre o serviço prestado. Com exceção de um (PL 7330/2017), todos foram apresentados após a nova lei. Apesar de não regularem especificamente aspectos da relação de trabalho, eles impactam diretamente o custo da prestação de serviços, a facilidade para troca de veículos e a definição da remuneração (alíquota de imposto).

Em síntese, a primeira onda se caracteriza por um forte embate regulatório. A atividade de transporte individual privado de passageiros, diferentemente da atividade de entrega de mercadorias, conflitou com duas atividades previamente reguladas, com benefícios e ônus próprios: o transporte público individual de passageiros (taxistas) e o transporte privado coletivo de passageiros (fretados).

A resolução do embate por meio da modificação do inc. X do art. 4º da Política Nacional de Mobilidade Urbana (Lei Federal n. 12.587/2012, alterada pela Lei Federal n. 13.640/2018) levou a uma tentativa de acomodação posterior da prestação desses serviços, uma “ressaca legislativa” que perdurou até o início de 2019. Ao mesmo tempo, delegou para o âmbito municipal as disputas políticas que apareciam no Congresso. A atividade de entrega de mercadorias, por sua vez, não atraiu grande atenção neste momento.[4]

Figura 1 — Intersecção dos embates regulatórios sobre motoristas de aplicativos

Fonte: elaboração própria

2ª onda: o embate sobre a “uberização” do trabalho

A ressaca legislativa durou até 2019, quando foi substituída por uma onda de projetos que se voltaram para a realidade dos motoristas de transporte de passageiros por aplicativos em si. O Gráfico 1 mostra um aumento contínuo do volume de projetos de lei em tramitação sobre trabalho em plataformas digitais a partir do primeiro trimestre de 2019. Destaca também o primeiro projeto relacionado exclusivamente com entregadores de mercadorias (PL 1363/2019), embora direcionado para a proteção dos consumidores. O aumento de quase 800% na quantidade de PLs tramitando no Congresso, ocorrido entre janeiro e março de 2020 (de 7 para 51 PLs), resulta da convergência de dois movimentos legislativos: de um lado, a discussão sobre a natureza do vínculo jurídico entre motoristas de aplicativos e plataformas digitais; de outro, a preocupação com a segurança dos consumidores e, em menor medida, dos próprios motoristas.

O ano de 2019 marcou o início da discussão trabalhista na prestação de serviços por meio de plataformas digitais no Congresso.[5] Há um claro direcionamento para a regulação de particularidades da atividade, como percentual de cobrança de comissão (PLs 448/2019, 2255/2019 e 58/2020), a regulação das sanções (PL 1355/2019) ou a previsão de seguro pessoal (PLs 3498/2019, 5795/2019 e 6110/2019). Os PLs 5069/2019, 5622/2019, 6015/2019, 6423/2019 previam explicitamente a configuração do vínculo empregatício entre motorista e a empresa.

Assim, se a 1ª onda é marcada pela tentativa de acomodar a atividade entre o transporte público individual e o transporte privado coletivo de passageiros, a 2ª onda é marcada pela tentativa de garantir direitos a esses prestadores de serviço, especialmente pela caracterização dos prestadores como autônomos ou empregados.

O segundo movimento legislativo que se destaca nesse período revela preocupação com a segurança de consumidores e, em menor medida, dos prestadores de serviços. Além do PL 1363/2019 já mencionado, outros projetos previam a implementação de câmeras ou botão de pânico em casos de emergência (PLs 2143/2019, 5529/2019, 5819/2019, 293/2020, 328/2020, 665/2020) ou exigiam política de identificação e conferência de dados cadastrais (PL 1572/2019, 4309/2019, 308/2020, 594/2020), inclusive por reconhecimento biométrico (PL 329/2020). A discussão sobre dados pessoais aparece atrelada principalmente ao cadastro fidedigno das informações no aplicativo, como garantia de segurança dos consumidores (em relação a falsos motoristas) e dos motoristas (em relação a falsos consumidores).

Em síntese, a 2ª onda, que se iniciou no primeiro trimestre de 2019 e continuou até o primeiro trimestre de 2020, caracterizou-se pela superação do embate entre motoristas de aplicativos e taxistas no Congresso — ou melhor, pelo deslocamento da disputa para o âmbito municipal –, e pelo começo do embate entre motoristas e empresas de plataformas digitais. A frequência de PLs versando sobre condições de segurança para consumidores e motoristas reforça esse deslocamento para a regulação do dia a dia da atividade em si.

3ª onda: o embate sobre condições de trabalho em tempos de Covid-19

A 3ª onda legislativa se caracteriza pela rápida expansão no volume de PLs aplicáveis a entregadores e motoristas ou a trabalhadores de aplicativos em geral. Eles totalizavam 11 projetos em fevereiro de 2020, saltando para 54 em dezembro do mesmo ano (cinco vezes mais). Enquanto eram cerca de 25% do total de PLs tramitando em fevereiro de 2020, passaram a ser quase 55% dos projetos em dezembro do mesmo ano. Dois momentos marcantes neste período foram o início da pandemia de COVID-19 e as manifestações dos entregadores no mês de julho. Eles coincidem com movimentos de intensificação do processo legislativo. Em fevereiro de 2020, PLs aplicáveis a entregadores e motoristas ou a trabalhadores de aplicativos em geral eram 11, saltando para 18 em março e 24 em abril. Já o mês de julho teve o maior aumento mensal entre todos os meses (11 projetos).

A identificação da pandemia como um “ponto de virada” na atividade legislativa sobre trabalho por meio das plataformas digitais é mais clara e acontece em dois sentidos principais. Em primeiro, ela trouxe para o debate a condição de trabalho específica dos entregadores de mercadorias. Uma comparação da frequência de benefícios e condições de trabalho entre PLs voltados apenas a motoristas de aplicativos, PLs voltados apenas a entregadores e PLs voltados para motoristas e entregadores evidencia a diferença de pautas entre os projetos (Gráfico 2). Em 70% dos projetos voltados apenas para motoristas identificamos no máximo um código dentre os 19 códigos de benefícios e condições de trabalho, enquanto em 50% dos projetos voltados apenas para entregadores observamos 4 códigos ou mais.

Gráfico 2 — Porcentagem de PLs por quantidade de códigos de benefícios e condições de trabalho aplicados, segundo tipos de PLs

Em segundo lugar, ela ampliou a discussão sobre benefícios e condições de trabalho em relação às ondas anteriores, contemplando novas necessidades, especialmente em relação à saúde e segurança de trabalho. A comparação entre as três ondas mostra como o debate sobre condições de trabalho ganhou proeminência a partir da pandemia de COVID-19 (Gráfico 3). Quase 30% dos projetos da 3ª onda atraíram seis ou mais códigos, enquanto eles foram 10% dos projetos da 2ª onda e 5% dos projetos da 1ª onda.

Gráfico 3 — Porcentagem de PLs por quantidade de códigos de benefícios e condições de trabalho aplicados, segundo ondas de atividade legislativas

As manifestações dos entregadores, apelidadas de “Breque dos Apps”[6], por sua vez, coincidem com o início da apresentação de projetos mais abrangentes, inclusive alguns que se propõem a serem marcos regulatórios do trabalho nas plataformas digitais. O PL 3570/2020 (Lei de Proteção dos Trabalhadores de Aplicativos de Transporte Individual Privado ou Entrega de Mercadorias) foi apresentado em 30 de junho. Em seguida, observa-se a apresentação dos PLs “gêmeos” 3748/2020 e 3754/2020 (Regime de Trabalho sob Demanda), do PL 3797/2020 (Marco Regulatório para Contratação de prestadores de serviços de aplicativos de entrega e motoristas) e do PL 4172/2020 (Novo contrato de trabalho em plataformas digitais de transporte individual privado ou de entrega de mercadorias), todas propostas de regulação abrangente do trabalho nas plataformas. Apenas a análise dos projetos de lei, contudo, não permite afirmar se as manifestações foram decisivas para esse processo ou se ele foi resultado de um amadurecimento e da consolidação de propostas que surgiram em profusão meses antes — e que deixaram de aparecer a partir de setembro.

Em síntese, a 3ª onda representou, ao mesmo tempo, uma mudança quantitativa e qualitativa na atividade do Congresso. Quantitativamente, significou a duplicação do volume de projetos em tramitação. Qualitativamente, significou um triplo movimento de: i) expansão dos direitos em pauta; ii) expansão das categorias em pauta; iii) expansão da regulação em pauta.

Perspectivas da atividade legislativa sobre trabalho por plataformas digitais no Congresso

A identificação das ondas legislativas sobre trabalho por plataformas digitais contribui não apenas para a compreensão do histórico do tema, mas para a formulação de hipóteses alternativas sobre desdobramentos futuros desse movimento. Apontamos quatro possíveis tendências que podem decorrer do aprofundamento do processo iniciado pela 3ª onda. Elas podem acontecer em conjunto ou separadas, e o direcionamento dependerá de vários fatores, como a construção da pauta pública de debate, a ação dos atores relevantes e a ação dos parlamentares.

Quadro 1 — Tendências possíveis para a atividade legislativa após 2020

Fonte: elaboração própria

[1] Essa primeira onda foi bastante influenciada pelo impacto do ingresso da Uber no mercado brasileiro, em 2014.

[2] SOUZA, Felipe. ‘Vai ter morte’, diz taxista sobre regulamentação do aplicativo Uber. Folha de S. Paulo, 19 jun. 2015.

[3] ZANATTA, Rafael A. F.; PAULA, Pedro do Carmo B. de; KIRA, Beatriz. Contribuições para o debate sobre regulação do aplicativo Uber no Brasil. São Paulo: InternetLab, 2015.

[4] A Lei Federal n. 12.009/2009 regula os serviços de mototáxi e entrega por meio de motocicleta. Contudo, essa atividade não foi nem é tratada como serviço público como o transporte individual de passageiros, nem despertou as mesmas preocupações de segurança e ordenação urbana que o transporte coletivo privado de passageiros ocasionou (“vans clandestinas”).

[5] Vale ressaltar que a discussão na jurisprudência já era intensa. Cf. AQUINO, Gabriela Marcassa Thomaz de; PASQUALETO, Olívia de Quintana Figueiredo. Uberizado é empregado? O que diz a Justiça do Trabalho no Brasil: um mapeamento das decisões judiciais sobre a (im)procedência do pedido de reconhecimento de vínculo empregatício entre o motorista e a Uber do Brasil Tecnologia LTDA. In: FELICIANO, Guilherme Guimarães; MISKULIN, Ana Paula Silva Campos. Infoproletários e a Uberização do Trabalho Direito e Justiça em um Novo Horizonte de Possibilidades. São Paulo: LTr, 2019, p. 75–84.

[6] MARI, João de. Breque dos apps: confira como foi a greve dos entregadores de aplicativo pelo país. Yahoo! Notícias, 1 jul. 2020. Disponível em: https://br.noticias.yahoo.com/breque-dos-apps-confira-como-foi-a-greve-dos-entregadores-de-aplicativo-pelo-pais-234330546.html.

As opiniões expressas neste artigo são de responsabilidade exclusiva dos autores, não refletindo necessariamente a opinião institucional do CEPI e/ou da FGV e/ou as instituições parceiras.

Este artigo foi escrito por:

*Ana Carolina R. Dias Silveira— Graduada em Direito pela USP. Pesquisadora no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP (CEPI FGV Direito SP). Contato: ana.silveira@fgv.br.

*Guilherme Forma Klafke — Líder de projeto no Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP (CEPI FGV Direito SP). Contato: guilherme.klafke@fgv.br.

Este texto é resultado da pesquisa Futuro do Trabalho & Gig Economy, conduzida pelo Centro de Ensino e Pesquisa em Inovação da FGV Direito SP. A versão final contou com comentários de toda equipe: Ana Paula Camelo, Arthur Bispo, Bruno Bícego, Gabriela Thomaz Aquino e Olívia Pasqualeto.

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