Morrer na véspera
Sobre a nossa incapacidade de amar sem cobranças
Mal conhecemos a pessoa e, passado o primeiro encontro vis-à-vis, já nos outorgamos o direito sobre a vida dela. Tremendo engano. Esquecemos que não somos propriedade de ninguém senão de nós mesmos. E que todos temos um passado. Ignorância seria — com o perdão do trocadilho — ignorar esse fato e pensar que o objeto de nosso desejo tenha de estar inteiramente disponível para o nosso deleite.
No entanto, desprezamos os conselhos de amigos, as diretrizes paternas, as instruções dos manuais da conquista e falhamos nesse intento. Parece que temos um pendor natural para o sofrimento. Fazemos tudo ao contrário. Parece que buscamos elementos que justifiquem a nossa dor, o nosso desespero, a nossa angústia. Carência?
Por que as pessoas mexem com a gente, quando estamos quietinhos em nosso canto, e nos inundam de sonhos, cores, expectativas — para depois nos deixar no vácuo? O sentimento incipiente que nutrimos pelo crush nosso de cada dia está sujeito às mudanças de desejo e humor, mas fazemos planos e já temos vontade de reencontrá-lo. Por que as pessoas relativizam as coisas? Será que exageramos na dose?
“O amor começa por uma metáfora”, escreve Milan Kundera no romance que considero seu chef-d’œuvre: A Insustentável Leveza do Ser (1984). Podemos até deixar uma impressão poética no primeiro encontro, mas será que estamos imunes ao mata-embrião, aquele impulso que interroga o amor, avalia-o, investiga-o, examina-o? Kundera desconfia de que todas essas perguntas que ocupam espaço na cabeça dos seres apaixonados ameaçam destruir o amor no seu próprio embrião. Por vezes nos sentimos inábeis para gostar de novo: sem frescuras, sem dúvidas, sem cobranças. “Se somos incapazes de amar, talvez seja porque desejamos ser amados (…) em vez de chegar a ele [o amor] sem reivindicações, desejando apenas sua simples presença”, arremata Kundera.
Certa feita, escrevi que a amizade é a tradução do amor sem o componente da cobrança, sem a carga da dívida de compromisso e sem o aniquilamento das vontades individuais. Poderia o amor entre dois amantes ser assim: leve? Poderia o amor entre duas pessoas assemelhar-se ao “amor desinteressado” de Tereza por Karenin, sua cadela de estimação? “Tereza aceitou Karenin tal qual é, não procurou torná-la sua imagem, aceitou de saída seu universo de cachorra, não desejou confiscar nada dela, não sente ciúmes de suas tendências secretas. Se a educou, não foi para mudá-la (…), mas apenas para ensinar-lhe uma linguagem elementar que lhes facilitasse a convivência e a compreensão.”
Por que é tão difícil entender isso? “O problema é que costumamos confundir a ideia de amor com apego”, esclarece Jetsunma Tenzin Palmo, monja budista nascida na Inglaterra, em entrevista ao canal O Lugar. Imaginamos que essa atitude demonstre que amamos quando, na verdade, trata-se de uma estima excessiva que causa sofrimento nas relações. Quanto mais nos prendemos a um parceiro, mais temos medo de perdê-lo. Quanto mais agarramos o outro com força, mais nós padecemos e nos ferimos.
Idealmente, as pessoas deveriam se unir já com um sentimento de plenitude dentro de si. Sentindo-se preenchidas, completas. E então ficar juntas para apreciar isso no outro em vez de esperar que o companheiro supra essa sensação de bem-estar que não têm sozinhas. O desafio é adquirir a capacidade de enxergar o outro, desejá-lo e admiti-lo como é, inclusive com as suas fraquezas e precariedades.
Linguagens e traduções. Quem define a paixão? Quem traduz o amor? Não queremos bebericar o amor; queremos amar em grandes goles. Não queremos amar a conta-gotas, não queremos o amor gotejante, em doses homeopáticas. Queremos amor que afoga, queremos amor que jorra em vultosas golfadas. Exageros.
Como diria uma sábia amiga minha, “exageros são característica de quem vive com fervor e paixão”. Ela acredita que é preferível sofrer, amar, chorar e sorrir a passar pela vida sem cicatrizes. Afinal, quem pode nos julgar por termos essa intensidade? Minha amiga conclui: “é melhor sentir essa dor do que ser indiferente ao amor”. Parece que de nada adiantou ler A Insustentável Leveza do Ser. Continuo pesado.