O poder do medo

Nicole Roth
O Centro
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5 min readMay 6, 2017

O medo é o pai da moralidade. Ao menos é o que pensava Nietzsche. Na visão do filósofo alemão, o medo funcionava como uma espécie de freio para o ser humano — uma ideia que para ele estava especialmente ligada ao conceito de religião e Cristianismo, uma doutrina constantemente criticada por ele. Nietzsche entendia que o receio de sofrer as consequências por seus atos, fossem eles imorais, ilegais ou simplesmente questionáveis, era o que muitas vezes mantinha a conduta moral do ser humano. Ou, nas palavras imortalizadas por Clark Gable como Rhett Butler em …E o Vento Levou, “You’re like the thief who isn’t the least bit sorry he stole, but is terribly, terribly sorry he’s going to jail.”

É compreensível e quiçá, saudável, desconfiar daquele que precisa crer em um deus todo poderoso, que pode lhe aplicar um castigo a qualquer momento, para lhe dizer o que é certo e o que é errado. Por outro lado, o que fazer quando o medo do castigo — seja ele divino, de origem humana ou até mesmo mental, para aqueles que ainda sentem a consciência pesar quando fazem algo considerado errado — não é mais o suficiente? E quando há pessoas que se encontram em posição de alimentar e usar o medo como justificativa para cometer atrocidades sem ter que se preocupar com represálias?

O medo como um combustível de conflitos não é algo novo. O ser humano já demonstrou, repetidas vezes, temer aquilo que não compreende — e já demonstrou, também por diversas vezes, uma tendência a responder a esse medo com violência. O exemplo comum dessa atitude, tão clássico quanto inevitável, é o Holocausto, que fez do povo judeu seu bode expiatório para os problemas da Alemanha do anos 30 e 40. O medo da pobreza, das consequências de terem saído como um povo vencido na I Guerra Mundial, certamente teve seu papel em fazer o cidadão alemão médio aceitar a teoria de que os judeus eram responsáveis pelos infortúnios do país. A estranheza causada por seus hábitos, tão diferentes e únicos, fez do povo judeu um candidato perfeito para o genocídio orquestrado e levado a cabo pelos nazistas.

Medo e poder é uma combinação explosiva. Ter o poder de incitar o medo em uma população, em um momento em que ela — ou parte dela — está suscetível a aceitar qualquer saída, desde que não tenha mais de sentir medo, então, é uma explosão de proporções estratosféricas.

O poder talvez seja a exceção que comprove a regra de Nietzsche. Aqueles que o detém por vezes demonstram que não temem as consequências de seus atos ou palavras. Nietzsche, aliás, considerava a busca pelo poder algo intrínseco no ser humano, que ele associava à independência e dominância. Para ele, essa vontade de subir ao poder superava até o instinto de sobrevivência — o que, para o filósofo alemão, explicava os mártires que estão dispostos a morrer por uma determinada causa.

Quando um líder de uma nação chega ao poder se utilizando, entre outras propostas, da promessa de erguer um muro entre dois países, associando uma determinada nacionalidade ao aumento nos índices de criminalidade de seu território, é um sinal dos tempos. Quando centros de comunidades judaicas recebem dezenas de ameaças de serem bombardeados nos primeiros meses de governo desse líder, é um sinal.

São sinais de que o medo está ganhando espaço, e o direito de ir e vir, o exercício da compreensão do diferente, da pessoa que está ao nosso lado, estão sendo deixados de lado. Quando uma potência que antes era conhecida por acolher pessoas de todos os povos e crenças escolhe fechar as portas para populações de países inteiros, ainda que baseada em atos extremos praticados por uma minoria de seus habitantes, é um sinal de que estamos escolhendo o medo. Vivemos em tempos de refugiados e migrantes. Todos os dias, dezenas de migrantes e refugiados continuam sua trajetória, sempre temendo o “não” do próximo país a quem vem pedir abrigo. Temendo cruzar a próxima fronteira.

A criação de limites e barreiras em resposta ao medo também não é nenhuma novidade. O medo nos leva a querer proteger aqueles que percebemos como “nossos”, o que por sua vez nos leva a uma ideia de “nós” versus “eles”. Essa dualidade surge toda vez que buscamos reforçar divisas, que separamos um grupo maior em grupos pequenos — sim, as diferenças estão lá, mas elas estão lá para serem celebradas e cultivadas.

É preciso lembrar que o medo é uma via de mão dupla: aqueles que foram marginalizados, seja porque podem vir a representar alguma ameaça para a população desse ou daquele país, seja porque pessoas que são percebidas como seus “semelhantes” já o fizeram, também têm medo. Eles são ensinados, muitos, desde cedo, a ter medo daqueles que os oprimem — e, assim, percebem esse grupo de pessoas como algo diferente, algo a ser temido.

O medo funciona em movimentos circulares, os temores de um alimentam os temores de outro. Somos ensinados a ter medo daquilo que não entendemos — é preciso que nos ensinem a compreender e ouvir, ou ainda haverão muitos muros em nosso futuro.

Mas, para não dizer que não falei de flores: o ímpeto de erguer paredes e fechar as portas para “os outros” não é unânime. No Brasil, a chamada nova lei da migração busca dar igualdade de direitos aos imigrantes que chegarem ao Brasil. Como era de se esperar, a proposta, que aguarda sanção do presidente, gerou protestos nas ruas, com toques de incitação ao ódio — em um país formado por imigrantes, vejam só.

Entre outras mudanças, a nova lei garantiria emprego, acesso livre e igualitário a serviços sociais aos imigrantes, além de outros direitos para casos específicos, como o dos sírios e haitianos. Diferente da tendência atual, é um movimento que assegura direitos, em vez de tirá-los. Ou, como disse Pétalla Timo, da Conectas Direitos Humanos, em entrevista ao El País Brasil, a proposta “revoga uma lei da ditadura, que via o imigrante como uma potencial ameaça à segurança nacional.” É um avanço na contramão do medo.

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Nicole Roth
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